Página  >  Edições  >  N.º 163  >  O telefonema

O telefonema
Quando liguei para o número que a directora de turma do Rui me deu, estava um pouco ansiosa. Queria muito falar com ele pessoalmente para um trabalho que estava a fazer sobre jovens que, como o Rui, partem antes do tempo sem se despedir nem fechar a porta, deixando no ar uma leve esperança de que vão voltar, esperança para eles e para a escola.
Atendeu-me a avó. Tinha uma voz cansada de quem carrega um corpo pesado de artroses e muitos dias sofridos, de quem chega ao telefone a arfar e a arrastar os chinelos enquanto limpa ao avental as mãos molhada da barrela.
Disse-lhe quem era e que tinha sido a directora de turma do Rui quem me tinha dado o número do telefone e perguntei se o Rui estava. Disse que não, que ele já tinha faltado à escola no dia anterior e que também ia faltar neste dia. A mãe do Rui, disse ela, estava doente há uns tempos e ultimamente estava com muitas hemorragias; o Rui tinha ido, no dia anterior, com a mãe, no autocarro para "a Caixa", Centro de Saúde, porque ela estava muito fraca e ele foi ajudá-la. E tinham lá estado toda a manhã mas disseram para ir ao hospital e foram, mas lá disseram para ir ao IPO.
Então o Rui tinha ido com ela neste dia para o IPO e não sabia quando iam voltar. E estava muito aflita porque a mãe do Rui estava sozinha com os três filhos ? não sei se divórcio, abandono ou morte do pai das crianças ? e estes últimos tempos, com as faltas por doença, tinham começado a descontar no ordenado e ela, avó, queria muito ajudar mas só tinha a reforma e mal dava para ela e para os seus medicamentos, e ela queria muito que o Rui não faltasse à escola nem desse problemas, mas ele era assim, um revoltado, um revoltado com a vida, porque a vida não tinha sido nada boa para ele e ele tinha muita raiva. Mas talvez eu pudesse ajudar, dizia a avó com uma esperança na voz, num último apelo de quem já não sabe a que mais recorrer; é que ele precisava muito de uma ajuda, que ele até era bom, mesmo amigo da mãe.
E eu via o Rui, amparando a mãe doente, nos autocarros cheios e morosos, nas angustiantes esperas no Centro de Saúde, no Hospital, no IPO, engolindo sozinho o medo, o desespero, a raiva e a revolta, e tão longe, tão longe daquela escola que a esta hora escrevia de novo o seu número de faltoso no Livro de Ponto e onde uma directora de turma, preocupada, tentava encontrar, entre os colegas o espaço de mais uma oportunidade para o Rui, esse irresponsável e desinteressado, desesperançado da escola e da vida.
Pedi desculpa pelo incómodo e agradeci. Do outro lado a avó, com voz trémula e comovida, agradeceu repetidamente, não sei muito bem se por eu ter falado no Rui, se pela réstia de esperança que o meu telefonema lhe trouxera. Ele é bom, muito bom, repetiu, só tem muita revolta.
Despedi-me mas não tive coragem de voltar a telefonar.

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 163
Ano 16, Janeiro 2007

Autoria:

Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo