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Uma das histórias do meu tio

Um dia, há anos, um primo meu veio ficar na minha quinta. Usava sotaina, porque era missionário. Abraçámo-nos. Vinha passar uns dias comigo para apanhar ar puro.
Fiz-lhe muitas perguntas sobre África, mas não me soube dizer grande coisa. Pois só agora pensava ir para lá. Ardendo de curiosidade, fui a uma livraria, de livros em segunda mão, e comprei um volume intitulado «Guia do Missionário», que descrevia métodos variados. E muitas vezes nos sentámos na varanda, meu primo e eu, lendo este livro até ao cair da noite. A coisa mais interessante era a maneira como os negros gostavam de missionários. É claro que o mundo é feito por toda a espécie de pessoas. Algumas satisfazem-se com um bife, para outras jantar sem padre não é jantar.
Assim líamos e tornávamos a ler até a luz diminuir, apesar de os mosquitos nos continuarem a morder e o frio da noite a gelar os ossos. Por vezes, o nosso ardor era tão grande que parávamos de ler e eu dizia ao meu primo:
«Escuta, Bernardo, tu vais convertê-los, não vais?»
«Vou», respondia ele.
E eu abraçava-o e ficámos ambos profundamente comovidos.
Foi assim que, pouco a pouco, aprendi tudo o que dizia respeito a África. Sabia tanto sobre leões que poderia ter sido acordado no meio da noite sem perigo de me esquecer de nada que a eles dissesse respeito. A selva tornou-se-me tão familiar como os campos de que sou dono.
Muitas vezes discutimos a melhor maneira de abordar um negro, a fim de conseguir uma conversação rápida e sem atritos.
Fazíamos até ensaios de tempos a tempos. Colocava-me no meio da varanda, fingindo de negro, e Bernardo tentava converter-me. Devo admitir que ele sabia do ofício e que às vezes, apesar de eu prevaricar, me convertia deveras. Mas eu também desempenhava bem o meu papel e, ocasionalmente, Bernardo ficava encharcado em suor, antes de conseguir converter-me.
Em meados do Verão estávamos tão exímios que decidimos trocar os papéis, cabendo a vez de Bernardo fazer de negro. Fê-lo com relutância ao princípio, mas depois aquiesceu, admitindo que o exercício lhe dava uma melhor compreensão da mentalidade do negro. Com a prática, tornei-me de tal modo perito que conseguiria converter cinquenta negros num dia, e porventura mais, caso o tempo estivesse bom.
Em Agosto parámos. Era admissível que Bernardo passasse os dias nisto, mas eu tinha outras coisas a fazer. Era tempo das colheitas e da debulha... Durante uns tempos, não lhe dei muita atenção; eu ia para os campos e ele ou colhia arandos ou se sentava no baloiço do jardim. Uma noite, ao jantar, alvitrei que a melhor época para converter negros era o Outono e, se levássemos em conta os seus hábitos culinários, chegaríamos à conclusão de que eles ficariam satisfeitos com uma refeição vegetariana de vez em quando. Assim, se lhes dessem arandos em vinagre e massa seca a provar e lhes ensinassem a prepará-los, talvez eles apreciassem menos missionários e, ao mesmo tempo, ficassem mais saudáveis, porque afinal que vitaminas pode haver num missionário? Apesar de não ter muito tempo disponível, ofereci-me até para preparar todas as provisões para a viagem de Bernardo. Mas o tempo foi passando, não sei bem como, e Bernardo ficou.
Como as noites se tornassem longas, começámos a jogar xadrez. Por vezes, quando Bernardo comia um dos meus cavaleiros ou bispos, eu dizia que, se não se convertesse um negro antes do dia de São Martinho, tornar-se-ia muito mais difícil depois, porque os negros não gostam de começar nada no princípio do ano.
Principiámos então a jogar à bisca, mas também às cartas Bernardo tinha uma sorte incrível. Ao notar um valete no meu miserável jogo, dizia quanto se assemelhava a um negro.
«Para converter um negro como este», dizia eu, «deve começar-se o mais cedo possível. Se é adiado, nunca há tempo, aparece sempre algo, e não há coisa pior que um negro meio convertido.»
Notem que eu utilizei sempre muito tacto e subtileza ao abordar este problema, mas em Outubro tive um acto falhado e fiz uma observação irreflectida. Nunca me hei-de perdoar tal coisa.
Nesse dia jantámos mais cedo. 'Em casa, evidentemente, devido à estação. Bernardo pediu-me o sal. Eu disse: «O sal é branco e o negro é preto.»
«Que estás a insinuar?», perguntou Bernardo, parando de comer a sopa. Cheio de raiva, ataquei um pedaço de carne e não respondi.
«Se incomodo, vou-me embora», disse Bernardo.
Levantou-se e saiu para o jardim. Vi-o encaminhar-se em direcção ao lago. Sentou-se na borda, de costas viradas para a casa. Ofendido. Não reagi. Acabei a refeição, acendi o cachimbo e fingi que nada acontecera. Até assobiei um pouco, para levantar a minha moral.
Estava já escuro e não havia sinais de Bernardo. Comecei a preocupar-me. E também a sentir remorsos ? sempre era o Bernardo. Saí e pus-me a chamá-lo baixinho: «Bernardo!»
Silêncio.
«Bernardo! Que estás a fazer? Pensando melhor, ainda tens muito tempo. Os negros, provavelmente, convertem-se a si mesmos.»
Não houve resposta. Já seriamente preocupado, corri ao lago. Céus! não estava lá ninguém. Apenas as canas oscilavam sobre um fundo insondável.
Desde esse dia que não sei se Bernardo escorregou e se afogou ou foi para África.
Esta incerteza mata-me.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 144
Ano 14, Abril 2005

Autoria:

Mrozeck
Escritor
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
Mrozeck
Escritor
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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