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Saberes escolares e saberes das crianças: um diálogo nem sempre possível

Anaís, como seus colegas, praticamente não mais produzem textos onde suas idéias possam ganhar vida e expressão. Sua professora, por acreditar na necessidade de ensinar determinados conteúdos às crianças, até sem perceber, centra sua ação pedagógica na transmissão destes conteúdos.

Acompanho, desde a classe de alfabetização, um grupo de crianças de uma escola pública e que estão, hoje, na 4ª série do Ensino Fundamental. Em maio de 2003, fui presenteada por um livro escrito por uma criança deste grupo.
Anaís, ao entregar-me o livro, disse:
- Esse é o primeiro de uma coleção que estou escrevendo. Acho que você vai gostar, tia, do título da coleção: Fronteiras da Ciência. Esse é sobre Robôs. Os outros livros vão ser sobre: Doenças; A natureza; O universo.
Ao iniciar seu texto, enfatiza:
Nesta edição nós falaremos sobre robôs. Existem robôs em desenhos e fábricas, às vezes até em casa. A marca de carros e motos Honda produziu um robô lá no Japão. Esse robô se chama ASIMO.
O livro cumpre o anunciado pela autora. Vários tipos de robôs são apresentados, descritos, analisados e desenhados. Anaís lança mão de asteriscos, como se fossem notas de rodapé, escritas nas páginas ao lado do texto principal, que trazem informações complementares ao texto.
Por exemplo:
O robô ASIMO é um robô *doméstico.
Na página ao lado, escreve: *um robô que mora na casa de seu dono.
São 24 páginas escritas de maneira interessante, criativa e informativa.
Ao final, um alerta.
ATENÇÃO:
Esse livro foi feito para mostrar a importância de um robô.
Os robôs são raros hoje em dia.
Mas você pode crê que no futuro robôs serão uma das coisas mais comuns do mundo.
Anaís é uma criança que convive com livros, de gêneros diferentes, em casa. O aprendizado da leitura e da escrita, experienciado na escola, garantiu a Anaís e aos seus colegas de turma, uma alfabetização como processo discursivo (Smolka, 1988), pois através da leitura, ouviam e entendiam o que os outros diziam e enunciavam, por escrito, seus pensamentos, sentimentos e vivências. Mas, no ano passado, na 3ª série, liam e escreviam muito pouco na escola. As crianças discordam desta minha afirmação, pois ao conversarmos sobre o que lêem e escrevem, na escola, disseram-me: a tia passa um dever atrás do outro e a gente copia tudo no caderno. A nossa mão fica doendo!
Anaís, como seus colegas, praticamente não mais produzem textos onde suas idéias possam ganhar vida e expressão. Sua professora, por acreditar na necessidade de ensinar determinados conteúdos às crianças, até sem perceber, centra sua ação pedagógica na transmissão destes conteúdos. Os textos, copiados pelas crianças, são para marcar os verbos ou os adjetivos ou substantivos ou ainda para desenvolver nos alunos e alunas a interpretação. Os exercícios de leitura e escrita propostos são, prioritariamente, de reconhecimento e produção (Geraldi, 1997) contribuindo muito pouco para a continuidade do trabalho realizado nas séries iniciais, onde as professoras empenham-se em realizar um ensino de conhecimento e produção (idem).
O saber-fazer da professora de Anaís, referendado pela maior parte do grupo de professoras que atuam nas turmas de 2ª, 3ª e 4ª séries, busca a ?padronização e uniformização? das ações cotidianas realizadas com as crianças.
Anaís está escrevendo seus livros em casa. O que pesquisou, leu e escreveu não fez parte do discutido em sala de aula. Os modos como as professoras compreendem o conhecimento, o próprio processo ensinoaprendizagem dificulta, em algumas séries, o diálogo e a aproximação entre os saberes das crianças e os saberes valorizados pela escola.
A complexidade do cotidiano escolar revela os conflitos, contradições e tensões existentes. Embora em algumas turmas ? da classe de alfabetização à 4ª série ? as professoras desenvolvam uma prática pedagógica compromissada com desejos, experiências e histórias dos alunos e alunas, em outras, a ação pedagógica ainda prioriza a transmissão de conteúdos escolares selecionados previamente considerando, muito pouco, quem aprende, para que se aprende e por que se aprende.

Bibliografia:

GERALDI, W. Portos de passagem. 4ª ed. São Paulo. Martins Fontes, 1997.
SAMPAIO, C.S. Aprendi a ler (...) quando misturei todas aquelas letras ali... Campinas, SP. Tese de Doutorado, UNICAMP, 2003.
SMOLKA, A. L. B. A criança na fase inicial da escrita ? a alfabetização como processo discursivo. Campinas, SP. Cortez, 1998.


  
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Edição:

N.º 142
Ano 14, Fevereiro 2005

Autoria:

Carmen Sanches Sampaio

Carmen Sanches Sampaio

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