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Cary Grant, simpatia e chá britânico

?O meu nome de família é Leach, ao qual, no meu baptismo, acrescentaram Archibald Alexandre, sem me darem oportunidade para protestar. Ao longo de mais de metade dos meus 58 anos apareci cautelosamente atrás da fachada de um homem chamado Cary Grant... John Monk Saunders, um amigo e autor de ?Nikki?, uma peça que interpretei em Nova Iorque, sugeriu que tomasse o nome da personagem que interpretava nela: Cary Lockwood. Bem; Cary estava bem mas Lockwood não: havia já um actor chamado Harold Lockwood sob contrato com o estúdio. O que viria com Cary? Era o tempo dos nomes curtos Gable, Brent, Cooper...Uma secretária trouxe uma lista telefónica e abriu-a. Grant saltou-me à vista e assim ficou?.
Duas coisas houve que em Cary Grant brilharam mais do que a lua: a sua assombrosa capacidade de permanência e a sua facilidade para se mover como peixe na água dentro das mais díspares personagens. Rei indiscutível da comédia americana da comédia americana no seu melhor momento, foi também o amante romântico ideal com que contaram as estrelas femininas durante mais de trinta anos, em dramas de ?fazer chorar as pedras da calçada?.
Todos os actores em Hollywood que fizeram comédia, fazem... e, atrevo-me a dizer, farão dele mestre. Diz-se que Tom Hanks o reviu plano a plano. Mas já foi obsessão para Tony Curtis, Burt Reynolds... Num dos filmes deste, ? Ladrão por Excelência?, Lesley Ann Down  pergunta-lhe: ?Estás a imitar Cary Grant?? e Burt responde-lhe: ?Não. Estou a imitar Tony Curtis quando imita Cary Grant?
Este é o tipo de coisas que se dizem apenas dos grandes, daqueles que se tem a certeza que o público reconhece de imediato.
Quando ainda hoje se vê nos seus filmes ?a arrastar a asa? a mulheres que na altura tinham metade da sua idade - Audrey Hepburn, Sofia Loren...- dizemos:  ?Bolas, que bem que ele estava...?
A sua carreira nunca teve altos e baixos, como os outros ?galãs?. Ao longo dos 75 filmes que interpretou desde 1932, nunca baixou o seu estatuto. Ainda em 1964, a Warner qui-lo para interpretar o professor Higgins de ? My Fair Lady?. Recusou-o. Dizendo que quem devia fazer era Rex Harrison, que o tinha criado no palco. ?Não só não o farei, como não irei ver o filme se não for feito pelo Rex? disse Cary.
Mestre indiscutível da ?screwball comedy?, não o impediu de fazer um dos melhores filmes de ?suspense? da história do cinema: ?Notorious? de Hitchcock, com Ingrid Bergman,  onde percorre todas as escalas possíveis do ?suspense?.
Ficou célebre o texto  de Kate Buford, incluído na ? Film Comment?, de Maio de 1992, sobre a relação de Cary Grant com Hitchcock:
? Estou só diante da câmara. Não há mais ninguém no plano. Suponhamos agora que vou fazer uma coisa muito simples : dizer uma deixa para alguém fora de campo. Suponhamos, talvez, que estou a falar com Grace Kelly. Mas Grace está, neste momento, no andar superior experimentando um  vestido. Estou a representar a cena apenas para o realizador, digamos, Hitchcock, que me observa atentamente, e para o operador de som, que está à escuta com o mesmo cuidado.
Tenho uma frase para dizer. Digo-lhe: ?A que horas posso vê-la amanhã??. Hitchcock quer que eu tome uma bebida enquanto digo a frase. Deste modo, levanto ao mesmo tempo o meu copo de chá gelado, o que apresenta alguns problemas. Se o levanto demasiado cedo pareço um homem gritando para um barril. Se o ponho em frente da boca, estrago a minha expressão. Se o pouso com força, mato uma palavra da banda sonora. Se o não faço, parece irreal. Tenho de levar o copo a um ângulo calculado para não provocar reflexos nas lentes. Agora, tenho de o segurar de uma certa maneira para que o gelo no copo não interfira com o som. Tem de ser absolutamente calmo para evitar que o gelo tilinte no vidro, pois os substitutos de celofane não podem ser usados num grande plano. Finalmente, tenho de me lembrar de manter a cabeça levantada porque tenho um queixo duplo. Agora, temos tudo a funcionar. Mas não, há ainda um problema. O meu cotovelo tem de se curvar para o meu corpo não obstruir a vista da câmara?. Há alguém por aí para dizer que ser actor de cinema é fácil?
Pois é, por isso é que ele disse uma vez: ?Todos querem ser Cary Grant. Até eu quero ser Cary Grant?.

P.S. Eu sei que é uma edição americana, eu sei que é muito difícil de encontrar e cara, mas se tiverem a oportunidade de a apanharem ... não percam o ultimo livro de Peter Bogdanovich ?Who the hell?s in it?! São 500 páginas e 25 retratos de actores americanos. De Lilian Gish a Marilyn passando por Bogart, Cary Grant, James Stewart, Brando, Monty Clift? Como aperitivo. ?É isso o que é e será a cultura pop: o que fica connosco quando envelhecemos é, para sempre, as pessoas e aquilo com que crescemos. Sentimos saudades não só do passado do artista, mas do nosso próprio passado?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 142
Ano 14, Fevereiro 2005

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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