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Vladimir

Acordou estremunhado com o som de uma ambulância. Olhos ainda aturdidos por ter perdido de vista a família. Sonhava que estava em casa, na Ucrânia. Acordava na rua que já era sua. Sentado na soleira de uma casa abandonada, a poucos metros do hospital.
Vladimir passava os dias por ali. Perto do quiosque. Nas escadas do centro comercial. Na sala de espera das urgências. Deslocava-se com dificuldade devido a um ferimento numa perna. Consequência de uma queda no trabalho que entretanto deixara de ter. Volta e meia, no hospital alguém se compadecia da sua mal tratada saúde e internava-o.
Quando regressava à rua, Vladimir vinha bonito. Barba aparada, cabelo cortado. Asseado, roupa diferente, não nova mas decente. Olhar mais azul e até menos triste. Depois, o tempo voltava a passar. O cabelo crescia. A barba também. O corpo sujava-se, a roupa encardia. E Vladimir voltava a parecer o que era. Perdendo o aspecto do que fora, há anos que nem o próprio já sabia situar. Antes de ter deixado a sua casa. Rumo ao sonho de ganhar bom dinheiro em pouco tempo e voltar aos braços da família.
O pesadelo começara poucos meses depois de estar a trabalhar em Espanha. O seu primeiro destino. O empreiteiro da obra deixara de pagar. Por desconhecer o idioma, Vladimir não percebera bem o que acontecera. O óbvio foi ter ficado sem dinheiro e ter sido obrigado a procurar trabalho noutra empreitada. Na altura, com o passaporte na mão, chegara a equacionar voltar para trás. Alguns companheiros de estrada convenceram-no a arriscar mais uns meses. De patrão em patrão, Vladimir acabou em Portugal. Empregado e relativamente bem. Até ao dia em que caiu do andaime onde trabalhava.
Enquanto esteve internado, a empreitada fora concluída. Ao sair do hospital Vladimir não conseguiu convencer o responsável a pagar o que lhe devia porque já ninguém sabia dele. Alguns dos seus companheiros tinham ingressado numa outra obra, mas a ele já ninguém dava trabalho. A perna de Vladimir ficara com mazelas que o incapacitavam de subir e descer andaimes.
Voltar à Ucrânia estava fora de questão. Orgulho. Um direito que não é exclusivo dos afortunados. A vergonha de voltar inválido e um peso para a família que queria aliviar toldaram-lhe o desejo do regresso a casa. Sem dinheiro, Vladimir veio viver para a rua. Perto do hospital que o cuidara. Nunca ninguém o vira pedir. Mas havia sempre quem lhe desse qualquer coisa. Muito mais do que esperava receber. Um euro, um panado no pão. Um bom dia, uma boa noite, mais 50 cêntimos.
Um dia, no hospital decidiram fazer qualquer coisa por Vladimir que não apenas curativos. Chamaram alguém de uma associação de emigrantes. E a situação de Vladimir foi analisada. Foi-lhe diagnosticado um problema grave com o álcool e um temperamento agressivo. A solução seria uma: o repatriamento. Tudo seguiu os seus trâmites. Com a demora habitual.
Vladimir esperou. Mas enquanto esperava pôs-se a fazer contas à vida. Sentia-se com mais força pois a associação dera-lhe um tecto e uma alimentação adequada. Estava mais optimista. Já não bebia, nem para aquecer, nem para esquecer. Por isso recordara o sonho que o fizera partir. A fartura que queria dar à mulher e às duas filhas. E quando tinha o bilhete quase na mão, Vladimir fugiu. Decidiu não voltar à Ucrânia. Fê-lo a pensar na família que não via há cinco, seis anos, se a memória não o atraiçoava. Acreditou novamente que podia arranjar trabalho. Teve esperança. Mas isso ninguém entendeu.


  
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Edição:

N.º 141
Ano 14, Janeiro 2005

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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