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Uma ideia lúcida de democracia

"Ensaio sobre a lucidez" de José Saramago não é um manifesto contra o sistema democrático. Pelo contrário, enaltece a sua sinceridade enquanto ideia de sociedade, desde que depurada do exercício subjectivo do poder. A este nível, Saramago assume-se argutamente subversivo, ao minar os mecanismos pelos quais as famílias politicas e partidárias se perpetuam, tacitamente, no poder.
O voto em branco surge como um pretexto para questionar o funcionamento de uma democracia e, simultaneamente, o instrumento responsável através do qual, o cidadão exerce o seu dever cívico de intervir na vida pública, sem se alhear abstendo-se, e não se comprometendo com um sistema viciado ao alinhar por um determinado partido. A democracia actual sabe lidar com grevistas, manifestações, interrupções de estradas, protestos no parlamento, bastando mandar investir contra estes as cargas policiais q.b., e ameaçar com posteriores processos judiciais os infractores à legalidade. No romance em questão, o protesto é pacífico, responsável, eficaz e dentro de toda a legalidade: o voto em branco de quase noventa por cento da população da capital. O statu quo percebe que está perante uma forma tremendamente eficaz de atingir os alicerces de um sistema que a pretexto da democracia, acaba por ceder a interesses instalados, privilegiar grupos e discriminar grande parte da população. È a ordem estabelecida que está em causa. Mas que ordem? A ordem democrática, obviamente, responderam de imediato os elementos do governo, os coniventes com o sistema e todos que de uma maneira geral dele tiram proveito. E face aos "brancosos" (termo depreciativo com que o governo passou a denominar todos aqueles que votaram em branco), urde-se uma teoria da conspiração, a legitimar medidas radicais: concretamente estados de sítio e outros paroxismos de abuso de poder. No "Ensaio sobre a lucidez" a democracia ocidental (chamar-lhe-emos assim) assume-se como uma ditadura terrível, sempre em nome da defesa dos cidadãos.
O voto em branco foi o único instrumento que o cidadão encontrou para se fazer ouvir, dado que as outras formas de protesto não surtem efeito pois, ou são insuficientes, ou ilegais. Note-se a passagem sobre a manifestação silenciosa da população em direcção às residências do Primeiro - Ministro e do Presidente da República; quando se esperavam todo o tipo de protestos, nem uma palavra se ouviu. Só uma multidão silenciosa mas resoluta, um silêncio ensurdecedor e que se concretizara já no massivo voto em branco. Estas formas de manifestação e de reivindicação não vêm no manual dos governos democraticamente eleitos, desorientando os burocratas e os que só jogam no politicamente correcto e na margem, determinada pelos próprios, do incorrecto aceitável.
O voto em branco levanta a questão complexa da relação entre representado e representante, a responsabilidade destes últimos no exercício do poder e da governação. Quando usado em doses maciças, obriga a que se encontrem soluções, se renove o sistema, criem-se mecanismos para que a reprodução de elites partidárias, sociais e económicas não se verifique. Os "brancosos" põem o regime democrático entre a espada e a parede. Mas com Saramago, nem tudo o que parece, é. Porque neste lúcido romance, os verdadeiros democratas são aqueles que a democracia pretende atingir. Uma pretensa democracia, de amigos, de recompensas, de vingançazinhas pessoais, uma democracia para meninos mimados brincarem aos governos. Uma democracia que até podia ser a nossa.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 138
Ano 13, Outubro 2004

Autoria:

Paulo Frederico Ferreira Gonçalves
Professor do 2º ciclo na Escola Básica S. Torcato - Guimarães
Paulo Frederico Ferreira Gonçalves
Professor do 2º ciclo na Escola Básica S. Torcato - Guimarães

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