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Um diário que o pai me deu para não passar as férias sem escrever

A meio das férias grandes o meu pai deu-me uma agenda. Disse tratar-se de um diário. Nele poderia anotar tudo que quisesse sobre as coisas que me aconteciam. E pensamentos. Esses tinha eu muitos. Na verdade estou sempre a pensar e imaginar todo o tipo de situações. Agora tenho um cão que dorme aos pés da minha cama, como o Tim da Zé nos Cinco! Mas não se chama Tim. Chamo-lhe Bob. Tem um pêlo castanho, macio, um focinho bonito e uns olhos tristes. Como todos os cães. 
Apontei a data em que comecei a escrever no Diário: dois de Agosto. Confesso que não escrevo todos os dias. Por vezes passa-se uma semana. E assim escrevo espécies de resumos (os meus professores estão sempre a dizer  que é preciso ter capacidade para resumir; eles dizem...poder de síntese...acho que é assim). Gosto de escrever, ver as letras a surgir e a formar palavras e frases a querer dizer ideias, acontecimentos ou coisas. Gosto da palavra coisas. Tudo é coisas: o mar, o azul, os barcos, a areia, os sonhos à noite. Melhor dizendo, tudo não. Há coisas e há pessoas. Não chamo coisas às pessoas. O meu pai, a minha irmã, o meu primo, não são coisas. São pessoas que amo. Também amo o Sol e o mar e os pensamentos quando estes são agradáveis, mas não é o mesmo; estes são coisas. E depois há o Bob. Não é uma pessoa, mas também não é uma coisa. Seria um animal se não fosse um pensamento. Mesmo sendo fruto da minha imaginação, não o considero uma coisa. Ora! Não me quero preocupar com isto. Só sei que gosto dele. Gostar é assim como uma espécie de saber, de compreender.
Conheci a Luísa numa manhã um pouco fria. Vesti a camisola e fui para as rochas ver os caranguejos. Luísa estava a cantar e com um pau procurava chegar a uma fenda entre dois pequenos rochedos. Tinha a pele muito vermelha do Sol. Que noite deve ter passado!  No final desse dia apeteceu-me escrever sobre o assunto no diário. Acerca dos cabelos dela: castanhos e ondulados a fazer lembrar uma sereia. Os olhos, verdes e profundos. E o mar, por trás dela, quando deu por mim e me fitou com alguma surpresa. Aparentava alguma irritação por eu estar ali e foi por pouco que não lhe pedi desculpa. Toda a noite pensei nela. Esqueci o Bob.
Escrevi no diário que tinha mais ou menos a minha idade. Não sei se é assim. Foi uma impressão. Luisa falou pouco comigo. Contou que estava na praia com uma tia. Os pais trabalhavam em França. Depois perguntou se gostava de me sentar nas rochas e esperar o mar. Respondi-lhe que sim. Disse que estava ali de férias com meu pai, minha irmã e meu primo.
? E a tua mãe? ? perguntou ela de imediato, olhando desafiadoramente, fazendo com que me sentisse mal.
A minha mão morreu quando era pequeno. Tinha dois anos. Por vezes tentava descobrir-me no seu retrato. Não era nada parecido com ela. Eu não me acho parecido com ninguém; não entendo como os crescidos estão sempre a fazer essas comparações parvas. O meu pai é o meu pai, eu sou eu. A minha irmã é a minha irmã, eu sou eu.
Entre a mãe que já morreu e a que trabalha em França não encontro grande diferença. Em ambas as situações não estão connosco, não sentimos as suas mãos, não nos surpreendemos com os seus olhos nos nossos, não rimos, não nos abraçamos. Em ambos os casos muitos nãos. Morrer ou estar morto é um não. Estar a trabalhar em França é outro não. Os nãos estão dentro de nós, doem quando estamos com saudades. A saudade é um não imenso. Um não que nunca mais acaba. A minha mãe no retrato é um não que me faz chorar. Eu não sei ainda se Luísa é um não ou um sim. Espero que seja um sim. Espero...Já aprendi que entre esperar por alguma coisa e esta coisa acontecer mesmo vai uma grande distância. Por vezes do tamanho de um não.
Se calhar não escrevo mais sobre o diário que o pai me deu. Escrever põe-me sempre triste. E eu estou de férias. Já bastam as aulas, a Matemática e a História. Havia de ser sempre Ginástica...


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 127
Ano 12, Outubro 2003

Autoria:

Paulo Frederico Ferreira Gonçalves
Professor do 2º ciclo na Escola Básica S. Torcato - Guimarães
Paulo Frederico Ferreira Gonçalves
Professor do 2º ciclo na Escola Básica S. Torcato - Guimarães

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