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O Livro das Ilusões

Dedicado à Isabel

Este artigo tem uma história. A Maria José falou à Isabel de O Livro das Ilusões, o último de Paul Auster, dizendo que tinha a definição de cinema mais próxima que conhecia. A Isabel contou-me a conversa e deu-me a fotocópia da passagem que lhe tinha sido oferecida. Por estas e por outras é que não troco de escola por nada. E ...vou partilhar convosco este texto.
?Não que eu tivesse alguma coisa contra o cinema, mas a verdade é que os filmes nunca haviam sido muito importantes para mim e, em quinze anos de ensino e escrita, não sentira uma única vez a menor vontade de falar de filmes. Gostava deles como toda agente gosta - como uma diversão, como um papel de parede animado, como uma coisas em grande valor nem significado. Por muito belas ou hipnóticas que as imagens por vezes pudessem ser, a verdade é que não me satisfaziam tão poderosamente como as palavras. Sentia que o cinema mostrava demasiado, que não deixava espaço suficiente à imaginação do espectador. E o paradoxo estava no facto de que o cinema, quanto mais se aproximava da simulação da realidade, mais falhava na representação do mundo- o qual está em nós tanto como à nossa volta. Era por isso que intuitivamente, eu sempre preferi o preto e branco à cor, o mudo ao sonoro. O cinema era uma linguagem visual, um modo de contar histórias através da projecção de imagens num ecrã bidimensional. A adição do som e da cor criava a ilusão de uma terceira dimensão, mas, ao mesmo tempo, roubava às imagens a sua pureza. Já não eram as imagens que tinham de fazer todo o trabalho, e, em vez de transformarem o filme no medium híbrido perfeito, no melhor de todos os mundos possíveis, o som e a cor debilitaram a linguagem, que , supostamente, deveriam ter fortalecido. Naquela noite, na minha sala de estar de Vermont, enquanto observava as façanhas de Hector e dos outros actores, ocorreu-me de súbito que estava perante uma arte morta, um género inapelavelmente defunto e que, como tal, nunca mais seria praticado. E no entanto, apesar de todas as mudanças que desde então haviam ocorrido, a obra, a obra daqueles artistas continuava tão fresca e revigorante como quando fora exibida pela primeira vez. E isso acontecia porque eles tinham compreendido a linguagem que estavam a falar. Eles tinham inventado uma sintaxe do olho, uma gramática de pura kinesis, e, tirando os figurinos, os carros, o mobiliário, pitoresco porque antiquado, em pano de fundo, não havia, naquelas obras, nada que pudesse envelhecer. Aquelas obras eram o pensamento traduzido em acção, a vontade humana expressando-se através do corpo humano, e, portanto, aquela era uma arte para todos os tempos. A maior parte dos filmes mudos mal se dava ao trabalho de contar uma história. Eram como poemas, como representações  de sonhos, como uma intrincada  coreografia do espírito. E, porque estavam mortos, provavelmente interpelavam o espectador actual de um modo mais profundo do que o público do seu tempo. Nós víamo-los através de um grande abismo de olvido, e eram precisamente as coisas que os separavam de nós que os tornavam tão cativantes: a sua mudez, a ausência de cor, os ritmos acelerados, convulsivos. Sim, eram obstáculos e, como tal, dificultavam a nossa visão, mas, ao mesmo tempo, aliviavam as imagens do fardo da representação. Erguiam-se entre nós e o filme e, portanto, já não tínhamos de fingir que estávamos a olhar para o mundo real. O ecrã plano era o mundo e existia em duas dimensões. A terceira dimensão estava na nossa cabeça.?
Para terminar, além de escritor Paul Auster é também argumentista e realizador. Escreveu o argumento de Smoke, de Wayne Wang, com quem co-realizou Brooklyn Boogie, e realizou  Lulu on the Bridge a partir do seu romance homónimo.

P.S. O Livro das Ilusões está editado em Portugal pela ASA.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 122
Ano 12, Abril 2003

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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