Natural de Lisboa (1946). Filha do grande escritor Mário
Dionísio (1916-1993). Tal como ele, licenciada em Filologia Românica
pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professora do ensino secundário,
como o tinham sido também seu pai e sua mãe, leccionou em diversas
escolas da capital (Maria Amália, Camões, Cidade Universitária,
Gil Vicente). Autora de antologias de textos literários e de livros
didácticos para a disciplina de Português, desse nível
de ensino.
Pertenceu aos grupos de teatro da Faculdade de Letras e do Ateneu Cooperativo
(1969-70). Fundou o grupo «Contra Regra» (1983) e colaborou com
«O Bando» e o «Teatro da Cornucópia».
Participou em exposições colectivas de artes plásticas
(a primeira das quais em 1965) e fez algumas exposições individuais
(1981, 1998, 2001). Colaborou na imprensa ? Diário de Lisboa,
A Capital, Seara Nova, Combate ? tendo sido co-editora, com Jorge Silva
Melo, do jornal Crítica (1971-72).
A sua actividade literária desdobra-se pelo romance, teatro, crítica,
antologia, biografia e tradução. Recebeu um Prémio Literário
(Pen Club) com o livro Histórias, Memórias, Imagens e Mitos
duma Geração Curiosa (1981).
Intensa actividade cívica, social e política: entre muitas outras,
foi dirigente sindical (SPGL, 1977) e é, presentemente, a grande dinamizadora
da Associação Cultural "Abril em Maio".
Eduarda Dionísio é uma mulher cativante, no discurso e na escrita,
cheia de memórias de uma geração generosa e empenhada,
até ao tutano, nas esferas social, cultural e política. Se os
dias do PREC «não abalaram o mundo» marcaram, pelo menos,
e para sempre, as nossas vidas. Enquanto escritora, não deixa de nos
recordar (entre a nostalgia e algum desalento, mas com uma clarividência
penetrante e serena, que o distanciamento histórico possibilita) esse
turbulento viver colectivo, pleno de mutações, rupturas e clivagens.
Ainda hoje, Eduarda Dionísio nada tem a ver com o status quo?
Pode-se dizer que nasceu num "berço de ouro" literário?
De ouro acho que não, mas literário sim. Houve duas coisas que
facilitaram eu começar a escrever, sem saber aliás que o fazia.
Foi o facto de o meu pai escrever e muitos dos seus amigos também. E
ter frequentado a Escola Francesa (depois Liceu Francês) onde os meus
pais me puseram para fugir à Mocidade Portuguesa e à Religião
e Moral; os métodos aí usados puseram-me mais em contacto com
os textos literários, o que raramente acontecia na escola portuguesa.
Encontro bastantes paralelismos entre o seu percurso
e o do seu pai, nos campos académico, profissional e artístico.
Essa filiação foi (in)cómoda?
Tem o lado cómodo. Aliás, escolhi o curso de ?Românicas?
porque tive medo de não ter tempo livre para fazer as coisas que gostava
se fosse para um curso que desse muito trabalho. Foi pura preguiça. E
o lado incómodo: resistir àquelas ideias de que era o meu pai
que ?me fazia a cama?.
Apesar de já em 1968, ter conduzido um inquérito, com Almeida
Faria e Luís Salgado de Matos, «junto de artistas e intelectuais
portugueses» sobre a Situação da Arte e, por outro lado,
ser uma mulher com uma profunda participação associativa, sinto-a
afastada do campo literário, designadamente da Associação
de Escritores.
Completamente e cada vez mais. Nunca quis pertencer à Associação
Portuguesa de Escritores porque não sou escritora. Escrevo livros, mas
não sou profissional nem tenciono vir a sê-lo. Sou professora de
profissão. Mesmo que (agora) não goste, é o que tenho de
fazer por mais três anos, até me reformar. De facto, a partir dos
anos 80, o mundo dos escritores (como outros) deixou de me interessar: a literatura
começou a impor-se como um qualquer produto comercial, com técnicas
de marketing. Veja-se o lançamento dos livros? Quando eu comecei
a escrever, os livros não eram ?lançados? em cerimónias
sociais, eram ?distribuídos? pelos editores. Os vendedores
iam pô-los nas livrarias e até liam bocados das obras aos livreiros
para os convencer a comprar. Duvido que isso agora se faça. Por outro
lado, quando comecei a publicar não eram as vendas que ?mandavam?:
recebia-se pela edição, não pelas vendas. Acho inacreditável
que as pessoas achem normal que assim seja.
A situação a que se refere está
a jusante do processo editorial, não tem a ver propriamente com a produção
da escrita.
Também a produção me interessa menos. Vejo serem promovidos
escritores que, ou não me interessam nada, ou não são novidade
nenhuma - ao contrário do que ouço dizer, ou vejo escrito, o que
só é possível porque não se leu o que se publicou
antes. Acho esquisito que se considere uma grande novidade a escrita de Saramago
por não ter pontos e vírgulas nos sítios normais, por os
seus parágrafos terem várias páginas. Nos anos 60, não
sei quantos escritores fizeram isso. Ele pode fazê-lo à vontade,
só acho estranho que os críticos literários apresentem
isso como uma novidade e até como razão do prémio Nobel.
Acha que a ausência de crítica literária,
em Portugal, contribui para isso?
Acho que sim. Mas a crítica em Portugal foi sempre muito fraca. O Gaspar
Simões tinha um trabalho persistente junto do público, mas isso
não quer dizer que a sua obra fosse extraordinária. Mas era uma
referência. Eu até podia ficar contente se ele dissesse mal dos
meus livros, ao passo que agora ninguém diz mal? porque não
dizem nada. E se disserem mal, não fico contente nem triste. A crítica
literária estava nesses tempos desligadas do mercado. O Gaspar Simões
não dizia bem ou mal conforme lhe pagavam ou por ser habitual dizer bem
ou mal de determinado escritor, mas segundo o que achava. Agora os editores
andam a chagar os jornais para que saia a crítica ao livro tal ou façam
uma entrevista ao autor. Faz parte da sua ?profissão?. Por
tudo isto, não encontro espaço no meio literário português.
Apesar de tudo tem uma produção literária
grande.
Não? Em relação ao livro Tina M. provas de contacto
(2001) abri uma excepção numa decisão que tinha tomado
- não publicar mais nenhum livro, mas apenas fotocopiar textos. Cada
vez menos as pessoas compram livros com o meu nome na capa, portanto, para quê
estar com o trabalho de editar? Para quem? Se as pessoas querem ler uma coisa
que eu tenha escrito, podem-se fazer fotocópias. Este livro, sobre a
Tina Modotti, vejo-o como umas fotocópias de luxo de um editor de quem
eu gosto muito, o Vítor Silva Tavares (& etc.).
Tornou-se biógrafa?
Fascinou-me o que ela passou, os países por onde andou, as pessoas que
conheceu, as questões de que deve ter ouvido falar e aquilo de que deve
ter falado ela, o que fotografou e aprendeu? Penso que é uma personagem
simbólica de um dos maiores dramas do século XX - o comunismo.
É uma personagem lindíssima que viveu, umas vezes dando por isso
e outras não, um dos grandes dramas políticos e sociais e culturais
do século XX.
É um livro com uma estrutura muito curiosa,
nomeadamente aquele glossário de pessoas e locais?
Achei engraçado fazer um dicionário dos sítios por onde
ela andou e das personagens que andaram à volta dela. E é engraçado
porque, havendo no meio do livro uma peça ?literária?
(que algumas livrarias catalogam como poesia, mas é só porque
as linhas não chegam até ao fim), ele pode também ser útil
para quem não se interessa muito por literatura visto que tem alguma
documentação, os ?bastidores? da literatura.
É uma das poucas escritoras que tem abordado
com profundidade o período de transição da ditadura para
a democracia. Nele participou de forma intensa e os seus textos reflectem muito
esse ambiente (da euforia ao desencanto). Reconhece essa relação
entre ficção e realidade?
Aquilo foi escrito um pouco mais tarde, como é evidente. Naquela
época de que falo nem havia tempo nem apetite para escrever? Eu
estive completamente mergulhada na escola e no Sindicato dos Professores e não
havia um minuto para escrever literatura, o tempo era passado a viver todas
aquelas mudanças, agarrados à rádio? Só quando
tudo estava já perdido - não no sentido do ?retorno ao fascismo?
(isso acho impossível), mas perdida a ideia de uma outra sociedade em
que as pessoas participassem todas e em que o trabalho manual e o trabalho intelectual
se fundissem e o aprender e o ensinar fosse a mesma coisa - lá por 78,
79 (não foi preciso vir a AD [Aliança Democrática] para
as pessoas perceberem que aquilo já não ia acontecer em tempo
útil ou decorrente daquele processo, a não ser que houvesse um
outro?), só aí encontrei um tempo para escrever de outra
maneira? Só quando se percebeu que os grupos estavam derrotados,
como grupos, e que já não havia nada a fazer? naquele momento?
Escreveu passada a onda?
Também porque escrever na ?crista da onda? era perder tempo.
Escrevi, sim, milhares de comunicados? não parei a pena, mas o
que escrevia era apenas dirigido aos meus colegas, aos moradores do mesmo sítio,
ou aos militantes dum sindicato ou dum partido? A literatura seria para
quem? Naquele momento para ninguém, só para as pessoas que não
andavam metidas em nada? E as pessoas interessantes estavam metidas em
coisas?
Considera que os seus livros de ficção,
sobre essa época, têm o «carácter de testemunho histórico-social
de um Portugal conturbado»?
Testemunho subjectivo. É o meu ponto de vista sobre aquelas coisas. Eu
digo sempre que não sou escritora, escrevo para que conste, o que não
se escrever não consta. É engraçado como as pessoas se
foram desligando daqueles livros porque já não são aquelas
questões que as fazem viver, lhes dão prestígio, ou as
fazem subir? e portanto deixaram de ter interesse para muitos? até
para aqueles que viveram aquilo intensamente? porque há um confronto
com coisas desagradáveis e as pessoas desabituaram-se de lidar com isso.
Passemos à escola. O seu livro Histórias,
Memórias, Imagens e Mitos duma Geração Curiosa é
também um manancial de registos (alguns quase etnográficos) sobre
a primária, o colégio interno, o ensino doméstico, a universidade?
A escola foi uma zona muito importante da minha vida, os meus pais eram os dois
professores e as conversas ao almoço e ao jantar eram sempre sobre a
escola. Porque eles viviam completamente embrenhados naquilo. Quando acabei
a faculdade, a minha opção de vida foi ser professora, portanto,
desde os 3 anos de idade que vivo dentro da escola? nunca fiz uma pausa,
é tão forte como a vida doméstica, ou mais.
A descrição dos castigos, físicos
e psicológicos, emerge em várias passagens, como a do aluno obrigado
a andar «com orelhas de burro, sozinho pelo largo da igreja e pela rua
principal»?
Na escola onde andava não se usavam esses métodos, mas ouvia-os
contar? Eu era bem comportada, por isso não sofria castigos?
O que me faz aflição na escola é criarem-se relações
entre professor e aluno que não são as relações
que essas mesmas pessoas teriam com outras pessoas, no prédio, na rua
ou no café. Acho estranho que agora na Assembleia da República
se esteja a discutir «o estatuto do aluno» (isto de o aluno ter
um estatuto!). O aluno é uma pessoa. As coisas na escola têm de
ser decididas por quem está lá e em função das relações
entre pessoas, o que não quer dizer indisciplina, nem falta de respeito,
pelo contrário. Também acho estranho «o estatuto de professor»
pelos mesmos motivos? e que os professores reivindiquem (a quem?) mais
?autoridade??
Sinto-a desencantada em relação à
escola?
As pessoas que mexiam com os saberes escolares, e sabiam o que estavam a fazer,
desapareceram em nome da ?tarefa superior? de «pôr ordem
no caos». Nunca tive noção de caos nas escolas durante o
25 de Abril? Gosto de confrontos e de pensamentos que se opõem,
mas não de caos. Agora é que eu sinto o ?caos?. Agora,
quando se diz que estamos no ?estado de direito?. O desencanto tem
a ver com isso, com a impossibilidade de se poder mexer nas coisas? Deixou
de existir a vontade de encontrar coisas novas e difíceis, de procurar?
A partir do momento em que os meus alunos me diziam para ditar apontamentos?
fui para os cursos da noite? disse «não posso mais estar
com pessoas de 15 anos que me exigem que dite apontamentos», como a professora
do lado que voltou também a ditá-los ou que sempre os ditou?
É isto que me desencanta na escola, mais do que os ?resultados?
que são publicados nos jornais?
Frustração também no que respeita
aos manuais escolares, para si que tentou, também nesse domínio,
caminhos alternativos?
Na disciplina de Português, pelo menos, o mais importante é o contacto
com os textos sem a barreira das terminologias e das leituras de quem os escolhe.
Há livros escolares que têm lá os textos, mas custa-me olhar
para eles porque os textos são pormenores nas páginas cheias de
quadros, setas e cores? O trabalho de análise deve ser deixado
a quem estuda, não tem de ser oferecido (ou melhor: ?vendido?)
por quem faz os manuais. Qualquer dia os textos até já vêm
sublinhados? A leitura continua a não acontecer, podem fazer-se
os exames com altas classificações lendo apenas os resumos das
obras e sabendo o que o professor disse sobre ela (ou um livrito qualquer).
Também me afligem os ?manuais? impressos a azul ou castanho
para serem mais ?atraentes?, e sem margens sequer para as pessoas
os anotarem? O lucro assim é maior, é verdade?
Sente que a literatura perde estatuto no currículo?
Antigamente, as pessoas aprendiam quase tudo dentro da escola. Fora da escola
circulavam poucos ?saberes? que não fossem da área
do ?saber fazer?. Agora tudo o que há fora da escola (Comunicação
Social, Internet, etc.) ?fornece? imensos saberes que andam, de
uma maneira geral, longe da literatura e valorizam outras linguagens. A escola
diz querer estar em ?concorrência? com o que está fora
da escola, o que faz, aliás, com que nunca se encontre solução
para a escola ? uma coisa é estar em combate, outra é estar
em concorrência ? e nesse papel de ?concorrente? não
encontra também ela lugar para a literatura? Cá fora, as
pessoas ganham a vida e são importantes sem saberem literatura e sem
gostarem dela?
Era bom que a escola pudesse combater um certo tipo de cultura que é
dominante na sociedade?, mas não o faz também porque a ?respeita?,
quer apenas, quando quer, ?fornecer? uma cultura ?melhor??
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