Deambular pelos serviços de urgência dos hospitais
pode ser um exercício doloroso. Mesmo quando não estamos lá
para ser atendidos. Mais do que pretender fornecer um retrato técnico
ou estatístico, o que se propõe na reportagem deste mês
é uma curta viagem pelas histórias e ambientes que preenchem diariamente
as salas de espera das urgências de dois hospitais do Porto. Tão
iguais e, ao mesmo tempo, tão diferentes.
14:15, Hospital de São João
Um hospital gigantesco, com quase oito quilómetros de
corredores. Foi construído na década de 50 para ser um dos hospitais
centrais do país. Hoje, é um edifício que prova já
não ser viável, facto que se reflecte no serviço de urgência,
desajustado para as solicitações de um sistema de saúde
de um país que se quer "europeu e moderno".
Está uma tarde de calor intenso e um cheiro quente de
transpiração, misturado com o odor característico dos hospitais,
entranha-se e baralha os sentidos. Parece não haver ar condicionado.
À falta de melhor, vai-se usando jornais e outros apetrechos como leques
improvisados. Sentada num dos bancos da sala de espera, uma senhora queixa-se
do calor e limpa o suor que escorre da testa de um menino com uns sete anos.
Ao lado, aquela que parece ser a avó afaga a criança com um semblante
pesaroso. Seja ou não da influência do lugar, certo é que
ali os lamentos parecem ouvir-se tristes. Abafados, como que a quererem rebentar
em lágrimas. Nem as crianças que correm, alheias à preocupação
dos adultos, parecem conseguir contrariar o ambiente melancólico que
se vive.
Na porta que dá acesso ao corredor interior das urgências
um homem barafusta por não poder entrar, mesmo alegando ser familiar
de um doente que se encontra em tratamento. Impressiona nele a magreza extrema,
associada a um ar de descuido geral, quase indigente. O funcionário de
serviço explica ao homem que não é possível aos
pacientes terem mais de uma pessoa a acompanhá-los, mas ele não
desarma e tenta forçar a entrada. O desespero de causa faz com que consiga
os seus intentos, apesar dos esforços do vigilante em suster o seu avanço,
mas é trazido de novo para o exterior sem grande demora. "Veja lá
se tem mais calma!", exclama com firmeza um dos enfermeiros. "Daqui a pouco
já entra...". Conformado, o homem senta-se mesmo junto à porta,
deixando-se cair com o peso do corpo encostado à parede, num desânimo
indescritível.
A crença no divino manifesta-se por oposição
à fé na ciência. Vestida de negro da cabeça aos pés,
uma velha senhora vai murmurando orações com um terço de
contas que desfila por entre os dedos. Quando chega ao fim, reinicia o processo.
"Mais vale prevenir, não vá o diabo tecê-las",
parece pensar a anciã, solitariamente abandonada a um canto. Enquanto
uns esperam pacientemente, outros desesperam. Manuel Carvalho é originário
de uma freguesia rural da Maia, nos arredores do Porto, e aguarda que os médicos
dêem alta à sua mulher, que ali se dirigiu com fortes dores no
estômago. Está há duas horas à espera e só
lamenta não ter dinheiro para ir a uma clínica privada. Ao menos
lá, garante, "podia esperar confortavelmente num quarto, com televisão
e ar condicionado. Aqui é do pior..."
O corropio de ambulâncias provenientes das mais diversas
cidades e vilas lembra que o S. João - apesar da construção
e melhoramento dos hospitais distritais - continua a funcionar como um hospital
central, e que aqui chegam doentes em estado grave de todo o norte e centro
do país. É dramático assistir à sua chegada, principalmente
quando nos damos conta que lutam contra a morte, em silêncio, recolhidos
impotentemente sobre o seu próprio sofrimento. Foi o que aconteceu naquela
tarde de calor sufocante. Um momento, apenas, mas que ilustra bem a ténue
fronteira entre a vida e a morte, transformada por esta circunstância
numa quase banalidade. Apesar do frenesim do pessoal médico, o homem,
vítima de um acidente de carro, já não dava sinais de vida
quando foi tirado da ambulância. A morte chegou de repente, perante o
olhar impávido de uns, amargurado de outros.
"A primeira pessoa que trouxe sem vida ao hospital era meu
parente. Dessa vez chorei.", admite Luís M., bombeiro voluntário
de uma corporação do interior norte do país, que se escusou
a fazer mais comentários. O sentimento de impotência perante a
fatalidade da morte incomoda. E deve incomodar em particular quem trabalha quotidianamente
com ela. "A partir de certa altura deixa de se reagir a essas situações
e encara-se a morte como uma inevitabilidade. Mesmo quando fazemos tudo para
salvar as pessoas e elas nos morrem nos braços", explica o médico
F.M., que, à semelhança do que aconteceu ao longo deste trabalho,
preferiu falar sob anonimato, numa espécie de "lei da rolha" a que ninguém
pareceu escapar. Coincidência ou não, é curioso o facto
de todos eles serem clínicos jovens.
21:50, Hospital de Santo António
Sentado numa das cadeiras da sala de espera das urgências,
um homem olha cabisbaixo para o chão, com os braços apoiados nas
pernas, enquanto entrelaça os dedos nervosamente. Ao lado está
uma senhora mais velha, aparentemente mais relaxada, sentada na diagonal, virada
para o homem, numa posição que sugere um amparo latente. Tem o
olhar fixo em qualquer ponto da sala que não é possível
determinar e não parece dar conta do movimento em seu redor. A certa
altura, o homem começa a chorar baixinho e sai para o exterior. A mulher
acompanha-o e conforta-o com palavras imperceptíveis, pondo-lhe o braço
em volta dos ombros. As outras pessoas olham-nos, uns mais discretamente do
que outros, mas todos com um terrível ar de compaixão. Trocam-se
comentários quase inaudíveis, suspira-se, sofre-se com eles.
Nisto, chega uma ambulância. As pessoas desviam o olhar
momentaneamente, seguindo com atenção os passos dos bombeiros
e dos enfermeiros que trazem para o interior um homem combalido, cujas dores
são perceptíveis pelos gemidos de agonia que solta. Perfuração
do baço, ouço um dos bombeiros explicar à senhora que está
por trás do balcão de atendimento, que faz a triagem dos pacientes
que vão chegando. Sem querer, ouço toda a história. Os
hospitais são locais onde a intimidade é frequentemente exposta.
Um costume bem português, esse de contar as desgraças alheias como
forma, talvez, de confortar as nossas próprias.
Meia hora mais tarde instala-se a confusão. Um grupo
de cinco ciganos chega num mercedes preto e, apressadamente, traz um dos seus
para o interior da sala de urgências. As mulheres estão em histeria,
gritam e choram. A certa altura, o polícia de serviço adverte
um dos elementos do grupo que o carro não pode ficar estacionado ali
à porta, já que aquele local se destina exclusivamente a ambulâncias.
Protestos. "Então o senhor não vê que o homem ?tá
a morrer?". Palavra puxa palavra, e só a ameaça da chamada
de reforços policiais demove o patriarca cigano, que, mesmo assim, "arruma"
o carro desajeitadamente junto à rampa de acesso.
Definitivamente mais calmo é o ambiente no corredor
interior das urgências, onde tudo está impecavelmente limpo e não
se vê os doentes arrumados em macas junto às paredes como antigamente
acontecia. As casas de banho têm igualmente um aspecto cuidado e cheiram
a desinfectante perfumado - a pinho, se não me engano. Os pacientes e
os respectivos acompanhantes esperam ordeiramente nas pequenas salas de espera
de cada especialidade. Tudo somado, até parece um daqueles hospitais
americanos que vemos nas séries de televisão.
À entrada da sala de estomatologia um homem de meia
idade espreita com curiosidade para o interior. Com as mãos atrás
das costas, como que a querer demonstrar que não pretende violar a privacidade
alheia mas tão só "botar um olhinho", mira e remira, procurando
o melhor ângulo para a devassa. "Anda cá ver", exclama para uma
mulher, também ela de meia idade, que, no entanto, não parece
interessada no convite. "Estão a enfiar um tubinho pela goela abaixo...".
Um interesse mórbido subitamente interrompido pelo fechar da porta, sem
qualquer cerimónia, que por pouco não encontrava o nariz curioso.
Uma enfermeira que presenciava a cena à distância acena com a cabeça
num gesto reprovador. O homem apercebe-se e senta-se com um ar meio envergonhado.
Noutra das salas, alguns médicos conversam e aproveitam
para fumar um cigarro. O tema é a recente decisão do ministério
da Saúde em restringir a prática da clínica privada aos
médicos do serviço público, salvo autorização
prévia nesse sentido, atitude que muito parece ter irritado aqueles profissionais.
Depois de aperceberem da presença do jornalista, e mesmo estando de acordo
em falar à reportagem, excusam-se a identificar-se. Dois abandonam entretanto
a sala.
"Antigamente era o caos nas urgências. Desde que o ministério
da saúde redimensionou a rede e passou a incluir os centros de saúde
locais no atendimento aos casos de urgência, a procura nos hospitais diminuiu
substancialmente e a qualidade do serviço aumentou em proporção",
explica J.M., na opinião de quem os portugueses são "muito assustadiços".
"Correm para as urgências assim que lhes começa a doer o dedo do
pé...", ironiza.
De acordo com as estatísticas, é ao fim-de-semana
que o número de atendimentos dispara. São principalmente idosos
e jovens vítimas de acidentes de viação ou de excessos
nocturnos. E as estatísticas parecem confirmar-se, a avaliar pela chegada
de um jovem escoltado pela polícia, alvo de um assalto aparentemente
violento. Os comentários ficam a cargo de um dos guardas que acompanhava
o rapaz, em amena conversa com o seu colega de plantão no hospital. As
pessoas seguem a conversa com atenção e vão fazendo comentários
previsíveis sobre a crescente insegurança vivida na cidade. A
cidade com as suas histórias tristes, miseráveis, que muitas vezes
passam por um banco de urgência do hospital. Ou que por lá moram,
como o sem-abrigo com ar ensonado, alheio a todos estes acontecimentos, que
só procura quem lhe dê um cigarro para voltar ao leito de cobertores
e jornais instalado junto à porta.
Ricardo Jorge Costa
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