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In memoriam Arthur Penn

Para o autor de “Vício de Matar”, um filme só fazia sentido se reflectisse as preocupações e as tensões sociais, embora pudessem não estar directamente repre sentados factos ou situações políticas. Com “Bonnie and Clyde”, Arthur Penn deu início ao que veio a chamar-se New Hollywood. 

Apesar de a ocorrência poder ser longínqua e de a pessoa em causa não ter qualquer tipo de parentesco connosco, há mortes que nos afectam, que causam dor: porque dessa pessoa um dia ouvimos uma ária, lemos um verso, vimos uma fotografia ou um quadro, assistimos a uma defesa extraordinária ou à primorosa execução de um golo, visionámos um filme. É o caso, para mim, de Arthur Penn (1922-2010), realizador de cinema, norte-americano, democrata. A trajectória artística de Penn começa no teatro desde os tempos de liceu (contrariando a opinião do pai, que tudo fez para que ele seguisse as suas pisadas: ser relojoeiro). Durante a guerra, na base de Fort Jackson, funda e dirige um pequeno grupo em colaboração com o futuro produtor Fred Coe. Em 1945-46 trabalha como actor, na companhia de Joshua Logan, com Mickey Rooney e Paddy Chayefsky. Depois de ter estudado em Itália, nas universidades de Florença e Arthur Penn Perugia, regressa a Nova Iorque. Em 1951 é contratado pela NBC-Tv como realizador, dirigindo, a partir de 1953, algumas transmissões para a série First Person, produzida por Coe. Depois de ter aperfeiçoado os seus dotes no famoso Actor’s Studio, de Lee Strasberg, passa para a CBS, onde durante quatro anos escreve e realiza cerca de duzentos teleplays para programas tão importantes como Philco Playhouse, Goodyear Playhouse e Playhouse 90. A sua primeira encenação de êxito na Broadway é em Two for the Seesaw, de William Gibson.
Nesse mesmo ano, 1958, transfere-se para Hollywood, iniciando-se no cinema com um western anti-convencional e visionário, The Left-Handed Gun (Vício de Matar), inspirado num drama televisivo de Gore Vidal, The Death of Billy the Kid. A figura do lendário fora-da-lei, na excelente interpretação de Paul Newman e nos módulos problemáticos de uma espécie de indagação narrativa, assume a máscara ambígua e violenta de uma sociedade primitiva que Hollywood até então tudo tinha feito para adocicar. Mas o insucesso financeiro (o filme é desprezado pelo público americano e incensado pelo europeus, em especial pelos franceses) força-o a regressar à televisão e ao teatro, onde obtém os aplausos de crítica e público com um outro drama de Gibson, que em 1962 já é filme: The Miracle Worker (O Milagre de Anne Sullivan). O confronto, inclusive físico, entre uma professora e uma criança cega e surda-muda (interpretadas, respectivamente, por Anne Bancroft e Patty Duke) para vencer o isolamento e a incapacidade de comunicar, permite que Penn construa uma imagem humanitária, mas não resignada, da América, mediante um grande exercício de estilo concentrado na interpretação das protagonistas e nas reinvenções da técnica de origem televisiva: três câmaras em acção durante a sequência mais difícil e longa (9 minutos). Em Mickey One (1964), uma parábola kafkiana sobre o pesadelo maccarthyista ainda na memória de todos, e The Chase (Perseguição Impiedosa, 1965), com um xerife honesto (Marlon Brando) e o seu «duplo», um rebelde, o universo moral do cineasta configura-se como a fuga impossível de um indivíduo, uma perene luta contra o destino imposto por uma sociedade frequentemente racista e brutal.
Arthur Penn, sensível aos temas da revolta juvenil, realiza, com Bonnie and Clyde (1967) e Alice’s Restaurant (O Restaurante de Alice, 1969), duas obras modernas e maneiristas, dando início ao novo curso de Hollywood, aquilo que veio a chamar-se “New Hollywood”. A procura de uma visão poética da História, vivida através de dramas pessoais, fá-lo regressar ao western com Little Big Man (O Pequeno Grande Homem, 1970) e The Missouri Breaks (Duelo no Missouri, 1976), com a dupla Brando-Nicholson, onde a habitual traição ao género produz efeitos distintos: o primeiro é um êxito estrondoso; o segundo é um fiasco comercial. Após uma longa pausa dedicada ao teatro, regressa ao cinema, em 1981, com Four Friends (Quatro Amigos), uma terna mas desencantada reflexão sobre as esperanças juvenis dos anos 60.
Penn refugia-se muitas vezes no teatro porque o cinema nem sempre lhe oferece a oportunidade de levar até ao fim as suas ideias. E, para ele, um filme só faz sentido se reflectir as preocupações e as tensões sociais, embora possam não estar directamente representados factos ou situações políticas. Tem um estilo bastante fragmentário e provocador (derivado de um godardismo bem assimilado: Godard e Truffaut são os cineastas que prefere), que é frequentemente passado através de histórias “exageradas” ou em sequências convulsas de histórias vistas como o tributo inevitável que a América paga pela sua paz social – as brutalidades visuais, acentuadas pela cor em “sub-tons” azulada e lívida, de The Chase são expressão não só de um estilo, mas também de um modo muito pessoal de entender o cinema. Outros filmes e outros trabalhos para televisão preenchem a carreira de Penn, mas estes de que falámos são os que melhor transmitem a sua marca. Vamos sentir saudades dela.

Salvato Teles de Menezes


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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