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Messenger: Stooooooooora!

Uma escola relativamente sossegada, numa pequena cidade do interior. Aquela turma de 8º ano era, desde que a assumi como directora de turma, uma turma complexa, mais do que complicada. Os fluxos de comunicação eram intensos, mas irregulares; a adesão ao trabalho era tão entusiástica como pouco consistente; os laços entre os alunos eram tão reveladores de solidariedades como de raivas explosivas; a qualidade do trabalho era tão afectada pela boa vontade como por uma apatia e preguiça que atravessavam muitas vezes o grupo.

Tão depressa se podia contar com eles para trabalhos em que se empenhavam, como, inesperadamente, todas as tarefas ficavam inacabadas, os mais pequenos pretextos serviam para interromper o que se propunham fazer e parecia que facilmente esqueciam os seus propósitos e compromissos.
Os resultados escolares tendiam a ser fracos. Como eu era a directora da turma, recebia queixas de todos os professores, e muito do meu trabalho com eles era, sobretudo, de mediação e regulação de conflitos.
Uns, porque eram tímidos e lhes custava assumir a sua origem rural; outros, porque a emigração dos pais e os cuidados de uma tia idosa ou avó os remetiam para a comunicação quase única com os amigos; com contextos de vida atravessados por climas de agressividade e mal estar, eram, na sua maioria, adolescentes que cresciam num certo clima de desagrado com a vida; jovens que estavam à defesa e para quem a escola não tinha tempo nem espaço para os escutar [Ruben Alves fala de não se ter o hábito de cultivar, para lá da oratória, a escutatória]; jovens que não acreditavam na escola, que achavam que ela não dava garantias de acolhimento nem salvaguarda das suas dificuldades.
Os professores, se não eram inimigos, também não eram amigos, e não contavam com eles para desabafar e partilhar. A linguagem, os valores, o mundo da escola eram uns; os da vida real, da vida deles, eram outros.
Um dia, para enviar indicações para um trabalho, pedi o endereço electrónico de cada um. Quando me enviavam trabalhos, começaram então a adicionar-me ao Messenger. Eu ia aceitando. Passei a estar incluída na sua rede de comunicação.
No início eram comunicações formais e banais: Então, stora, tudo bem?
À medida que eu respondia, que lhes perguntava o que estavam a fazer, o que tinham achado deste ou daquele assunto, iam comunicando com mais à-vontade.
Começou então um novo ciclo. As mensagens chegavam à noite, quando me ligava à Net. Aí eles abriam-se, deixavam-me espreitar um pouco da sua intimidade. Chegavam até mim os incidentes mais banais ou os mais sérios. A precariedade, a responsabilidade pesada com o irmão mais novo, a violência de um pai alcoolizado, o mais público e o mais reservado.
Também sobre a escola começaram a falar com alguma segurança – a escola revelava-se-me sobre um outro olhar, o deles. Casos que, no quadro cultural dos professores, eram muito graves, revelavam-se, afinal, vazios de significado. Casos que tínhamos negligenciado, podiam até ter sido significativos. Eles liam uma escola. Nós, professores, tínhamos lido outra coisa.
Um dos casos mais significativos terá sido o da Marisa. Porque não comunicava com quase ninguém, e quando o fazia tinha uma grande tendência para não perceber os limites e desenvolver comportamentos inadequados e linguagens pouco cuidadosas, até grosseiras, a Marisa era das alunas com quem se tinha mais dificuldade em trabalhar. Tinha as defesas sempre erguidas, com tendência para partir para o ataque mesmo antes de perceber o que se queria dela. A vida ensinara-lhe que se alguém se nos dirige, daí não pode vir nada de bom.
A Marisa começou com mensagens incoerentes, provocatórias até, deixando sair por vezes torrentes de raiva e revolta. Eu ia respondendo, dando tempo ao tempo para que toda aquela zanga pousasse. Os textos da Marisa começaram a ser cada vez mais consistentes. Da escrita atabalhoada passava para a escrita comunicativa. Agora a Marisa falava. A sua percepção do que se passava na escola era muito fina. Com facilidade desmontava decisões dos professores, mostrando dados da questão a que não tínhamos sido sensíveis.
Percebia-se, então, como a intransigência pode impedir a possibilidade de perscrutar um pouco mais adiante – lá onde, debaixo da indisciplina, vive o sofrimento.
E foi assim que comecei a ver, quase ouvindo o grito, o pedido de ajuda da Marisa quando escrevia: STOOOOOOOOORA!

Angelina Carvalho


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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