Criada em 1990, a Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE) é uma associação científica e profissional que pretende contribuir para a afirmação das Ciências da Educação como espaço de reflexão, confronto e diálogo, através da produção e divulgação de conhecimento. Professores e investigadores estão juntos nesta missão de refletir sobre a Educação em diferentes contextos, de fortalecer o trabalho científico e de investigação e de reafirmar o prestígio das Ciências da Educação.
Há 25 anos, as Ciências da Educação tinham ainda pouca expressão no contexto do Ensino Superior. Com a Revolução de Abril de 1974 abriram-se as portas ao acesso de todos à Educação, antes muito restringido em função de classes sociais, levando a uma procura maior da educação escolar. Aumentou, por isso, a necessidade de mais pessoas formadas para a Escola, de mais profissionais do ensino, ultrapassando a velha ideia de ‘professor missionário’.
“Na conceção do professor como profissional inscreve-se uma visão da formação que vai muito além das disciplinas lecionadas pelos professores e que rompe com a ideia de que, por exemplo, para ser bom professor de Matemática basta saber Matemática. É preciso que o professor saiba das suas componentes específicas, mas também tenha uma visão mais ampla. E essa visão global exige as Ciências da Educação: a História da Educação, a Filosofia da Educação, a Sociologia da Educação, a Psicologia da Educação e por aí fora... As Ciências, no plural, da Educação”, explica Almerindo Janela Afonso, recentemente reeleito presidente da SPCE.
Havia, portanto, uma certa “emergência” na criação de um espaço de diálogo e de interação das diferentes Ciências da Educação, numa altura em que estas estavam a expandir-se e a tentar consolidar-se, quer na formação de professores, quer, mais tarde, na formação de licenciados e pós-graduados em Educação. Num congresso realizado na Universidade do Porto, organizado por Bártolo Paiva Campos, com o intuito de ser feito um ponto da situação, surgiu a ideia da criação da SPCE, o que viria a acontecer em 1990. Bártolo Paiva Campos é um nome importante das Ciências da Educação e da política educativa em Portugal – “foi um dos relatores da Lei de Bases do Sistema Educativo, aprovada em outubro de 1986” –, tendo sido o grande impulsionador da ideia da Sociedade, juntamente com outros “pioneiros” como Rui Grácio, Rogério Fernandes, Stephen Stoer, Albano Estrela, Luíza Cortesão, entre muitos outros.
“Considero essa a primeira geração da criação e do reforço das Ciências da Educação em democracia. Antes do 25 de Abril havia resquícios das Ciências da Educação, sobretudo da pedagogia, etc., mas sem nenhuma comparação em termos de liberdade académica, de investigação ou de amplitude na formação de profissionais da Educação”, destaca Almerindo Janela Afonso.
Os desafios e as críticas
Os primeiros anos da SPCE foram de grande prestígio para as Ciências da Educação, fruto do aumento da procura de formação e da existência de saídas profissionais, fator que favorece o reconhecimento social de qualquer profissão. “Estávamos numa fase de expansão da escolaridade: em 1986, passámos para nove anos de escolaridade obrigatória”, recorda Almerindo Janela Afonso, lembrando ainda os tempos em que no estágio do 5o ano os professores já regiam disciplinas na escola e já tinham salário. “Hoje a situação é completamente diferente: já não há salário no ano de estágio e temos mais de 40 mil professores desempregados. Isto tem uma repercussão nas Ciências da Educação!”
O prestígio das Ciências da Educação acompanhou os movimentos da sociedade, entrando em relativo declínio “a partir do momento em que alguns fatores conjunturais se alteraram” – no início dos anos ’80 noutros países e mais tarde em Portugal. “Quando os conservadores chegam ao poder, por exemplo, nos Estados Unidos da América ou em Inglaterra, levam o neoliberalismo como agenda económica.” E nessa mudança, os professores passam a ser acusados de utilizarem pedagogias muito progressistas. “Começou um ataque ideológico dos conservadores, que quiseram controlar mais os professores em função do que eles achavam que eram as disciplinas fundamentais para a competitividade económica e para a manutenção de certos valores.”
Em Portugal, esse movimento foi entrando gradualmente, “até que chegamos ao último Governo que, do meu ponto de vista, claramente adotou, nalguns casos até radicalizando, as agendas neoliberais e neoconservadoras”. E o presidente da SPCE destaca a imposição dos exames, o cerceamento da autonomia profissional dos professores, o enclausuramento dos professores no didatismo das disciplinas consideradas fundamentais e a desvalorização, ao nível do currículo escolar, de todas as disciplinas mais críticas, com uma visão mais humanista.
“Uma das primeiras vozes a divulgar esta agenda conservadora foi a professora Filomena Mónica, com o livro «Os filhos de Rousseau», onde acusava os pedagogos progressistas – portanto, os professores e os docentes e investigadores das Ciências da Educação – de terem uma visão idílica da Educação, de serem muito idealistas e de estarem a provocar atrasos educacionais importantes, por não estarem a adotar as pedagogias, as metodologias e os conteúdos que deviam ser ensinados. Rousseau é um autor iluminista que tinha uma visão positiva sobre o ser humano. Hoje, a direita tem uma visão pessimista sobre a natureza humana”, considera Almerindo Janela Afonso, frisando que “as Ciências da Educação começaram a ser afetadas, em termos de prestígio social, a partir do momento em que começaram os ataques ideológicos neoliberais e neoconservadores sobre a Educação e os profissionais da Educação”.
Pluralidade e heterogeneidade
Uma das missões da SPCE é manter o prestígio das Ciências da Educação e o reconhecimento da sua importância. Dentro dos seus recursos, a Sociedade tenta contrariar a tendência e mostrar o papel importante que as Ciências Sociais e Humanas (e portanto as Ciências da Educação) assumem nos dias de hoje. E o fomento da reflexão e do debate crítico é um instrumento fundamental.
Há vários desafios pela frente e entre eles estão a garantia da qualidade do trabalho científico, assegurando o seu rigor metodológico, e o zelo pelas questões éticas da investigação. A SPCE tem, por isso, uma Carta Ética “que mostra que há uma preocupação em garantir uma qualidade de postura e de atitude dos investigadores face ao mundo, face aos seus contextos de ação e interação e face à própria investigação”.
A Sociedade atua junto dos seus membros, seja através da publicação de artigos e livros, seja na promoção de reflexões e atividades. Dada a vastidão das Ciências da Educação, a pluralidade das suas contribuições não se esgota. Há “pluralidade e heterogeneidade de olhares. Acolhemos todos os olhares e temos uma postura democrática, procurando dialogar com diferentes sensibilidades, sem marcar ortodoxamente uma determinada posição”, garante Almerindo Janela Afonso.
A SPCE é assim um espaço onde se reflete sobre Educação, nos seus mais variados contextos, que passam pelos formais, como a escolas, e pelos não formais, como por exemplo os departamentos de formação de associações, empresas ou outros. “Há uma sensibilidade grande para alargar o campo da Educação a outros espaços educativos, não formais, que começam a disputar a própria legitimidade da escola e que têm uma importância cada vez maior na formação das novas gerações e nas mudanças que estão a ocorrer no mundo atual”, defende.
À espera da ‘quarta geração’
A Sociedade tem um conselho consultivo composto por nomes prestigiados do campo das Ciências da Educação e diversas secções (de caráter mais disciplinar) ou grupos de reflexão e de investigação (de caráter mais interdisciplinar), que promovem o debate e atividades em áreas como a Educação Comparada – em janeiro vai decorrer uma Conferência Internacional em Lisboa. Para além desta e do GRI Interdisciplinar em Educação para a Saúde, que são os mais recentes, em breve serão criadas duas novas secções: Pedagogia Social e Educação Não Formal. Além dos representantes locais e regionais em Portugal, a SPCE conta também com representantes em países lusófonos, como o Brasil, Cabo Verde, Angola e, brevemente, Moçambique. “Queremos alargar o diálogo aos países lusófonos, para ampliar a comunidade das Ciências da Educação. É também uma forma de gerarmos e aproveitarmos as sinergias que resultam deste diálogo intercultural mais amplo.”
Outro desafio importante é levar sangue novo para a SPCE, para fortalecer o que Almerindo Janela Afonso chama de “quarta geração” das Ciências da Educação. “Temos colegas desta geração em vários órgãos da Sociedade, que começam a ganhar um grande prestígio académico entre os pares, não só a nível nacional, mas também internacional, e que estão inseridos/as em importantes redes e projetos de investigação. Acredito que esta nova geração, que já está dentro das Ciências da Educação, possa continuar a dar contribuições inovadoras – não necessariamente nos mesmos moldes, porque os problemas que se colocam são outros, mas com uma forma de fazer que contenha alternativas mais criativas e transformadoras.”
ORA DIGA LÁ… ALMERINDO JANELA AFONSO
Como foram os primeiros 25 anos da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação?
Foram anos de grande impulso para o trabalho de investigação e de docência e de grande prestígio das Ciências da Educação. Havia procura de formação e saídas profissionais. Foram anos de crescimento em termos de representação e de reconhecimento social, entrando em declínio a partir do momento em que começaram as políticas economicistas e os ataques ideológicos neoliberais e neoconservadores sobre a Educação e os profissionais da Educação. Em Portugal, isto é concomitante com o aumento do desemprego e o abaixamento da natalidade, que começou a repercutir-se na procura da Educação, por exemplo. Menos crianças nas escolas, excesso de professores, escolas a fechar… Tudo isto abre um caminho sinuoso para tudo que sejam Ciências Sociais e Humanas.
E atualmente, é dada às Ciências da Educação a importância devida?
Não, e a nossa principal missão é manter o seu prestígio e a sua imprescindibilidade no campo científico e profissional. Com a adesão e contribuição dos associados e associadas e dentro dos escassos recursos que temos, tentamos contrariar este espírito do tempo hostil às Ciências da Educação. Inscrevo-as sempre no campo mais vasto das Ciências Sociais e Humanas porque, para sermos seres humanos mais completos, temos de ter uma visão e conhecimento do mundo que não dispensam os contributos destas e de outras ciências.
De uma forma geral, o que pensa o presidente da SPCE sobre o estado da Educação?
Procuro ter uma visão realista. Há algumas conquistas que são produto de um trabalho contínuo feito nestes anos de democracia. É disso exemplo a realização quase plena da igualdade de oportunidades de acesso à escola. Mas se estamos a cumprir este objetivo da escolaridade básica obrigatória, não estamos a conseguir que todas as crianças tenham sucesso – há ainda uma percentagem muito significativa de abandono e de insucesso escolares. É preciso investir e dar continuidade a determinadas políticas que são fundamentais para sustentar um projeto de sucesso para todos/as. Refiro-me ao que Pierre Bourdieu chama mínimo cultural comum, aquilo que no nosso nível de desenvolvimento societal é considerado fundamental para qualquer cidadão ou cidadã. Este mínimo tem de ser para todos/as e, do meu ponto de vista, este grande objetivo – que é a missão histórica de uma escola de massas democrática – ainda não foi cumprido. Continuamos a oscilar e não decidimos de uma vez por todas que a prioridade das prioridades tem de ser a educação pré-escolar e o ensino básico. Mas há muitas outras conquistas democráticas realizadas e a realizar.
Há, portanto, mais desafios pela frente...
Há novos desafios a esta democratização. Nos últimos anos tem havido uma reintrodução de mecanismos de reelitização da escola e, com a crise, verificou-se um aumento das desigualdades no interior da própria escola. Vimos a polarização social aumentar, os mais ricos a ficarem mais ricos e os pobres a ficarem mais pobres, e isto tem repercussão ao nível da escola porque a sua função de reprodução social e cultural volta a ser muito evidente. Portanto, a escola democrática está em perigo se não fizermos nada. Temos uma escola multicultural, com todos os grupos sociais presentes, o que é bom em termos democráticos, mas depois não sabemos lidar com essa diversidade de uma forma mais justa e democrática. Já tínhamos feito algumas conquistas importantes, com políticas de inclusão, de igualdade de oportunidades, de compensação educativa, etc., mas nos últimos anos regredimos. Há, portanto, um conjunto de velhos e novos desafios que têm de ser repensados no sentido de reinventar a Escola Pública. A Escola Pública não vai desaparecer, mas está confrontada com grandes dilemas e precisa de ser reinventada do ponto de vista das suas funções, dos seus recursos, da sua organização, da sua capacidade para lidar com o futuro…
E qual é o papel da SPCE nesta matéria?
O nosso papel é juntar, congregar, fortalecer o espírito colegial e, ao mesmo tempo, lembrar que há objetivos educacionais que não podem ser esquecidos. Gostaríamos de ter mais meios para exercer esta missão de forma mais consistente e duradoura. Mas temos feito o que é possível, com os recursos que temos.
Que expectativas para o futuro da Sociedade?
As expectativas passam pela nova geração, que tem uma qualidade de trabalho e de reconhecimento muito grande entre os pares, que tem novas formas de fazer as coisas, que está mais internacionalizada, que domina melhor as línguas e que tem uma experiência já grande, apesar de ser mais nova. Acredito que passe por aí um novo impulso às Ciências da Educação, que têm também de ser reinventadas de algum modo, praticando de forma mais consequente a interdisciplinaridade, aderindo sem concessões a princípios éticos e de rigor teórico e metodológico, e incentivando o trabalho conjunto com todos os profissionais de Educação e ensino, nunca esquecendo que as Ciências da Educação são elas próprias uma conquista civilizacional que não pode ser apagada ou invisibilizada por pressões conservadoras conjunturais.
Maria João Leite (texto e entrevista)
Ana Alvim (fotografias)
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