O novo Regime de Autonomia, Administração e Gestão dos Estabelecimentos Públicos da Educação Pré-escolar e dos Ensinos Básico e Secundário está em fase de implementação nas escolas. Apesar de na maioria delas o processo de selecção do director – peça chave de todo o processo - estar já concluído, em algumas o concurso ainda não foi aberto e noutras arrasta-se há meses. De acordo com o Ministério da Educação, o objectivo do novo diploma é reforçar a participação das famílias e das comunidades na direcção dos estabelecimentos de ensino, favorecer a constituição de lideranças fortes e reforçar a autonomia das escolas.
Os sindicatos de professores, no entanto, afirmam que o novo modelo de gestão foi aprovado sem se sustentar numa avaliação prévia do anterior regime e sem dar ouvidos às críticas ao projecto formuladas quer por parte de especialistas em administração escolar quer do próprio Conselho Nacional de Educação. A Federação Nacional de Professores, FENPROF, estrutura sindical mais representativa dos professores portugueses, considera mesmo que o novo regime jurídico configura um retrocesso no funcionamento democrático da escola pública, recentralizando poderes, impondo soluções únicas em áreas onde até agora as escolas podiam decidir de forma autónoma e pondo em causa os princípios da elegibilidade, colegialidade e participação.
Para ficarmos com uma ideia mais concreta acerca das implicações do novo diploma no funcionamento das escolas, entrevistámos alguns dos intervenientes que mais atentos estiveram a este processo. Entre eles, Manuela Mendonça, co-coordenadora do Sindicato dos Professores do Norte (SPN) e membro do Secretariado Nacional da Fenprof, onde é responsável por um grupo de trabalho nesta área; Licínio Lima, professor e investigador do Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional da Universidade do Minho; e João Barroso, também ele reputado docente e investigador da área das ciências da educação e autor de um parecer sobre esta polémica legislação. Para ler nas páginas seguintes e debater nas escolas.
Ricardo Jorge Costa (entrevistas)
Inês Andrade (fotografias de João Barroso) e Teresa Couto (fotografias de Licínio Lima e Manuela Mendonça)
JOÃO BARROSO
“Houve a vontade expressa do ponto de vista político de assumir uma posição de ruptura com o diploma anterior”
João Barroso é Professor Catedrático da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. É actualmente presidente do conselho directivo da FPCEUL. Por solicitação do Ministério da Educação realizou o estudo “Autonomia e Gestão das Escolas” (1987), e coordenou, entre 1999-2002, o estudo “Reforço da autonomia dos estabelecimentos dos ensinos pré-escolar, básico e secundário”. Foi coordenador e responsável científico pelo programa de avaliação do modelo de gestão instituído pelo Decreto-Lei 115-A/98. No ano passado, redigiu um parecer sobre o actual regime de autonomia, administração e gestão das escolas. É dele que damos conta nesta entrevista.
No parecer que elaborou questiona, antes de mais, o sentido e a oportunidade desta iniciativa legislativa. Pode comentar?
Começando pela oportunidade, diria que uma iniciativa legislativa desta natureza poderia ser feita de duas maneiras: ou fazendo uma revisão do anterior diploma – o 115-A/98 – na perspectiva de melhorar e de operacionalizar determinados aspectos da legislação, ou através de diplomas regulamentares, como tem sido feito. Se o objectivo era marcar uma ruptura com a legislação anterior, então a única forma era criar um outro diploma. Essa foi a opção que o Governo tomou e é nessa perspectiva que ela deverá ser lida. Isto significa, portanto, que houve a vontade expressa do ponto de vista político de assumir uma posição de ruptura com o diploma anterior, que era considerado insuficiente ou continha deficiências que prejudicavam a sua operacionalização. Na minha opinião, houve um sentido político superior à simples alteração do regime de gestão em vigor.
Na análise que faz dos respectivos conteúdos inicia o seu comentário pelo Conselho Geral, referindo não se perceber a vantagem, pelo menos de um ponto de vista de clareza conceptual, de substituir a Assembleia pelo Conselho Geral...
Eu sou francamente favorável à existência de um órgão de participação comunitária na gestão das escolas, posição que venho defendendo desde há bastante tempo. Mas o que está aqui em causa não é a existência ou não de um órgão de participação comunitária, mas sim a substituição de uma designação – Assembleia, que tem, aliás, uma tradição em Portugal e que remete claramente para os órgãos de participação, pela de Conselho Geral – que é importada sobretudo do mundo da gestão empresarial e que, no caso presente, era importada da designação que foi utilizada para o regime jurídico do ensino superior. Do ponto de vista semântico há claramente a vontade de assumir uma designação que remete mais para o universo da gestão empresarial do que para o universo político da participação comunitária. Quanto à composição do Conselho Geral, na altura em que elaborei o parecer, no início de 2008, a questão mais polémica era a obrigatoriedade de a presidência ser necessariamente exterior à escola.
Impedindo que um professor pudesse ocupar esse cargo...
Sim, mas isso foi revisto no diploma final. E ainda bem, já que essa medida – também ela importada do regime jurídico do ensino superior, onde o Conselho Geral é obrigatoriamente presidido por uma entidade externa – não faz sentido no contexto das escolas secundárias e dos agrupamentos, que são unidades de carácter comunitário em que a presença do poder e do saber dos professores é extremamente importante.
No que se refere à figura e à natureza do cargo de director, diz que a existência de um órgão de gestão unipessoal ou colegial não é, em si mesma, uma questão fundamental para a garantia da democraticidade, para a qualidade e para a eficácia do exercício das funções...
Sim, nesse aspecto não tenho uma visão maniqueísta. Acho que há situações onde pode ser importante a influência da gestão unipessoal, inclusivamente em órgãos colegiais, e noutros casos onde isso pode ser claramente um convite a uma gestão autoritária e prepotente. Continuo, por isso, a defender a possibilidade que estava contemplada no 115-A/98 de as escolas optarem por uma ou outra modalidade, assumindo claramente a responsabilidade dessas escolhas. É verdade que no anterior diploma essa possibilidade existia e praticamente nenhuma escola optou por ela, mas isso não permite fazer uma leitura simplista de que as escolas querem, pelas boas razões, a gestão colegial. Sabemos que em muitas escolas o facto de não se optar por uma gestão unipessoal pode ser entendida como uma questão corporativa e de defesa de interesses, noutros casos não. Considero assim que, embora fosse necessário exigir alguns critérios de fundamentação, deveria ser dada a possibilidade de escolha às escolas.
Relativamente à eleição do director, critica o procedimento concursal prévio à eleição e diz mesmo que “além das dúvidas que podem ser levantadas quanto à legalidade de tal procedimento”, ele determina uma “perversa zona de ambiguidade e um constrangimento absurdo”. Pode comentar?
Eu tive oportunidade de fazer um estudo de avaliação sobre a aplicação do decreto 172/91, que previa, aliás, uma solução muito próxima dessa. No debate parlamentar realizado na altura, os deputados do Partido Socialista denunciaram essa ambiguidade e opuseram-se a ela, mas o diploma actual veio recuperar mais ou menos a mesma fórmula – que sofre dos mesmos defeitos que apontava no meu estudo, isto é, de ser uma solução híbrida: não sendo possível acabar com a eleição, pelo menos pretende-se condicioná-la. Por um lado cria-se a lógica do concurso, que é de alguma forma “cego” às diferenças de ajustamento entre a pessoa e o lugar, e por outro lado quer-se manter a escolha política que é feita pelos membros de um órgão colegial. Há aqui, portanto, uma certa ambiguidade, uma legitimação contraditória. Por isso pergunto-me por que razão se opta por um sistema tão complicado, a não ser que, evidentemente, se queira condicionar a decisão final do voto livre dos membros do conselho. Contudo, apesar da ambiguidade, e em última análise, nada deve impedir esta leitura, que é a correcta, de que cada membro do conselho possa decidir em plena liberdade.
Outros dos pontos que analisa dizem respeito à composição e à presidência do Conselho Pedagógico e aos contratos de autonomia. Relativamente à primeira questão refere que não faz qualquer sentido que ele integre, por exemplo, o representante dos pais e encarregados de educação, principalmente tendo em conta a existência deste Conselho Geral…
Desde sempre achei que a grande vantagem do Conselho Pedagógico era assumir-se como um órgão técnico-profissional. Nesse sentido teria de ser constituído por professores, e nomeadamente por professores que desempenhassem funções de coordenação e de supervisão na escola, fossem membros de equipas pedagógicas, etc. A entrada dos pais e do pessoal não docente para os conselhos pedagógicos foi implementada para tentar colmatar uma insuficiência da legislação de 1976, que não previa qualquer lugar para a participação dos pais. Esse “remendo” acabou por ficar como uma conquista das associações de pais e dos encarregados de educação. Na minha opinião, porém, seria muito mais vantajoso clarificar que o lugar de participação dos pais é na Assembleia da Escola ou no Conselho Geral e que o Conselho Pedagógico deveria ser entendido como um órgão técnico-profissional com competências estritas nesse domínio.
No que se refere aos contratos de autonomia, refere que a solução adoptada põe em evidência o carácter evasivo da própria definição de autonomia. Quer comentar?
Os contratos de autonomia foram sempre uma pedra no sapato do ministério, desde Marçal Grilo, porque eles pressupõem que haja uma reestruturação prévia da relação entre a administração central e a escola que nunca chegou a ter lugar. Um contrato de autonomia que se celebra no âmbito de uma administração burocrática, centralizada e autoritária é um absurdo. Na altura de David Justino, a realização dos contratos transformou- se numa questão política, em fim de mandato, e no contexto conhecido da Escola da Ponte. Com a actual ministra procedeu-se à assinatura dos primeiros 22 contratos mas com um elemento novo que à partida não estava previsto – o de aparecerem claramente articulados com o processo de avaliação das escolas, em curso. Desse ponto de vista o contrato deixa de ser um instrumento para a definição de autonomia e passa a ser, sobretudo, um instrumento para a avaliação das escolas. Além disso, a experiência tem mostrado que as escolas “ganharam” pouco com os contratos e eles acabaram por, na prática, consagrar aquilo que já existia de uma maneira não tão assumida mas mais clandestina. Onze anos depois de terem sido consagrados (Decreto-Lei 115-A/98) o que foi feito é praticamente nada.
Refere no seu parecer, aliás, que a atenção dada às questões da gestão reforça precisamente o sentido de que os problemas relacionados com a autonomia resultam da deficiência do modelo de gestão, o que, afirma no documento, não corresponde à verdade…
Sim, a questão da autonomia aparece aqui para “embrulhar” aquilo que é o objectivo central deste diploma, que é o controlo da gestão. E, desse ponto de vista, o diploma está feito exactamente para blindar qualquer veleidade de autonomia que as escolas possam ter a esse nível. A autonomia é, no fundo, a roupagem que permite tornar esta discussão mais atractiva e a proposta legislativa mais persuasiva.
O que mostram as experiências em outros países?
É preciso dissociar a questão da autonomia das escolas da gestão escolar. No que diz respeito à autonomia, este é um tema chave nas políticas educativas europeias e transversal quer ao espaço europeu quer ao espaço extra-europeu, tendo-se transformado, desde há uns dez anos, numa espécie de solução “pronto a vestir” para os problemas da escola. Claro que em torno deste aparente consenso existem lógicas completamente diferentes, porque há quem defenda uma autonomia da escola como primeiro passo para a sua privatização e para a criação de mercados educativos, mas também os que defendem a autonomia como uma prática democrática e como um valor que permite que a democracia seja posta em prática nas escolas. A autonomia não é um fim, mas um meio. Por isso ela deve ser definida em termos políticos e não como uma simples modernização da gestão.
E no que se refere à gestão?
A questão da gestão é diferente porque as políticas são muito condicionadas pela história da administração da educação em cada país. Em Portugal, a discussão sobre a gestão não se pode fazer nos mesmos termos do que em França, em Inglaterra, na Alemanha ou na Suécia. Porque temos uma história própria nesse capítulo. Neste sentido, a política de gestão que se adopta hoje não pode fazer tábua rasa da evolução da história da escola portuguesa, em particular desde 1974. Uma história totalmente original e excêntrica relativamente àquilo que era a prática corrente nos restantes países europeus. É preciso encontrar uma solução neste contexto.
Mas pode-se, de algum modo, antecipar as consequências desta legislação para aquilo que poderíamos designar como a actual matriz da escola pública?
Eu não acho que seja um decreto-lei que irá fazer diferença. Aliás, estou a terminar um estudo que percorre a legislação escolar desde 1986 até agora, e chega-se à conclusão de que os decretos-lei passam, as escolas ficam e acabam por se adaptar à legislação de maneira diversa. Não é, portanto, um decreto-lei que irá mudar a realidade. Há muitos outros aspectos, para além desta legislação, que estão a mudar a realidade. A questão da gestão não se resume ao decreto 75/2008. As questões ligadas à avaliação do desempenho de professores, por exemplo, são capazes de ter mais implicações naquilo que é, na prática, a gestão escolar do que esta legislação.
LICÍNIO LIMA
“O novo regime reforça a centralização e contribui em larga medida para a erosão da colegialidade e da participação interna nos órgãos escolares”
Investigador e Professor Catedrático do Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional da Universidade do Minho, Licínio Lima considera que o novo regime vem reforçar o poder do director sob a estrutura da avaliação escolar e afirma que, ao contrário do que pretende fazer crer, o Ministério da Educação não está preparado, do ponto de vista político e administrativo, para transferir mais competências para as escolas. “Creio que para isso não valeria a pena estar a alterar o 115-A de 1998”, diz Lima.
Um dos três objectivos referidos no preâmbulo aponta para a necessidade do “reforço da participação das famílias e comunidades” na direcção das escolas, indiciando um défice de participação comunitária. Concorda com esta ideia?
É difícil analisar esta questão de uma forma simplista. Apesar de tudo, a investigação demonstra que, de facto, o índice de participação não é propriamente muito activo, quer por parte dos professores quer por parte da restante comunidade educativa, nomeadamente dos alunos, face aos quais essa participação é intermitente e genericamente passiva. Não me parece, no entanto, que seja este novo regime a inverter a situação, porque no fundo ela deriva das características essenciais da administração escolar portuguesa, caracterizada por uma elevada centralização do ponto de vista político e administrativo. A direcção das escolas está, no essencial, fora das próprias escolas – aquilo que há muito designo por direcção atópica das escolas – está nos órgãos centrais e desconcentrados do Ministério da Educação. Neste sentido, seria contraditório esperar que houvesse elevados níveis de participação activa no contexto escolar.
O que traz então de novo este documento para fazer face ao referido défice de participação democrática?
Aquilo que este diploma poderá eventualmente trazer de novo é um maior protagonismo no que toca à intervenção autárquica. Sou, desde há muitos anos, um defensor da representação das autarquias nos órgãos de gestão da escola. Se as autarquias leva- rem a sério esta competência – e ouço dizer que em alguns casos o fazem, embora noutros se fale já em agendas políticas na aproximação às escolas, em todo o caso legítimas, desde que se cumpram as regras – admito que haja momentos de maior participação e de intervenção, seja na eleição do director, seja na constituição do Conselho Geral. Globalmente, porém, não vejo de que forma os actores escolares, e desde logo os actores da comunidade em geral, venham a ter uma participação muito mais activa do que até agora. Porque, no essencial, nada vai mudar. A política continua centralizada, a direcção mantém-se atópica, e o Conselho Geral, ao contrário do que afirma o documento, não é um órgão de direcção política estratégica. Devo dizer, a esse propósito, que não sou particularmente contra a existência de um órgão de gestão unipessoal. Dada a actual cultura profissional e organizacional, porém, julgo que essa não será a melhor escolha. Mas se tivermos um director democraticamente eleito e amplamente subordinado a um órgão político forte dentro da escola, teremos um executivo, unipessoal ou não, subordinado politicamente ao órgão máximo democrático representativo da escola, que seria um órgão de direcção.
Isso conduz-nos a outro dos objectivos do diploma: favorecer a “constituição de lideranças fortes”. Uma avaliação externa das escolas realizada em 2006/2007, porém, concluía que 91 por cento tinha uma apreciação de “Muito Bom” e “Bom” no domínio da “organização e gestão escolar” e 83 por cento idêntica apreciação no capítulo da “liderança”. Até que ponto este diploma traz alguma luz nova a esta questão?
Nenhuma investigação da qual tenha conhecimento, incluindo as próprias avaliações externas das escolas, permite traçar um diagnóstico que aponte para a existência de lideranças escolares fracas. Pelo contrário, costumo dizer que as escolas funcionam bastante bem, com lideranças bastante atentas e responsáveis, não obstante as intervenções do Ministério da Educação, através dos seus órgãos centrais e regionais. Acredito inclusivamente que caso essa intervenção estivesse menos presente e fosse menos asfixiante, eventualmente as escolas poderiam até funcionar melhor. Não percebo, de resto, por que razão a alegada falta de liderança haveria de coincidir com uma liderança colegial. As lideranças colegiais, também o diz a investigação, têm constituído um elemento muito importante na gestão das escolas portuguesas. Nada permite concluir que uma liderança individual seja melhor ou pior do que uma liderança colegial. O que habitualmente conduz a este tipo de conclusão são as perspectivas ideológicas ligadas à Nova Gestão Pública, aquilo que designamos por perspectivas gerencialistas, uma lógica individualista da gestão importada sobretudo das teorias gerencialistas e económicas, oriundas de certos ideários políticos. De resto, creio que em qualquer dos casos, ainda que o legislador queira garantir boas lideranças individuais nas escolas, isso seja difícil, ou mesmo impossível, por via jurídico-formal.
Que tipo de implicações pode este tipo de liderança trazer à vida democrática das escolas?
Um dos problemas destas lideranças individuais num contexto fortemente centralizado é que, previsivelmente, os directores irão dispor de maiores poderes e prerrogativas sobre o interior das escolas, mas sairão mais fragilizados no diálogo com o ME. Até aqui havia um órgão colegial, na figura do conselho executivo, que, apesar de tudo, era mais forte em termos de diálogo com as instâncias do ME, representando mais claramente a comunidade escolar. Além disso, haveria, em princípio, menor propensão para tomar decisões erradas, porque quando quatro ou cinco pessoas trabalham em conjunto têm tendência para debater mais os problemas e diminuírem essa margem de erro. O director agora está sozinho, é um órgão unipessoal solitário. E quando ocorre um erro nas lideranças individuais ele tende a tomar maiores proporções.
Outra das principais metas do novo regime é “reforçar a autonomia das escolas”. Ela sai de facto reforçada com a nova legislação?
O decreto 75/2008 é uma mera variação do 115-A/98. Em termos de autonomia não acrescenta coisa nenhuma, porque a escola portuguesa continua refém da figura dos contratos de autonomia – o mesmo é dizer que está completamente fora dela. Basta recordar que com o anterior regime se assinaram 22 contratos, à luz do 75/2008 não houve um único contrato a ser celebrado. Neste capítulo, o artigo 58, referente à atribuição de competências, é espantoso, porque é tão genericamente limitado e elementar em termos de atribuição de autonomia que a pergunta certa a fazer seria: mas como podem funcionar as escolas na ausência desta pequena transferência de competências?
O que está aqui então verdadeiramente em causa?
Creio, sem dúvida, que é o reforço da direcção individual, o reforço do poder do director sobre a estrutura da organização escolar. Nesse sentido, chamo a atenção para dois elementos muito importantes. Em primeiro lugar, o director passa a nomear e a demitir livremente os responsáveis dos departamentos curriculares, de acordo com o seu próprio critério, o que representa uma mudança profunda em relação aos processos de democracia e de colegialidade das estruturas ligadas ao conselho pedagógico e às estruturas de representação e coordenação dos professores nos seus departamentos. Por outro lado, no caso das escolas agrupadas, poderá existir um coordenador de estabelecimento – mas que em caso algum será um representante desse estabelecimento junto do director e da escola sede; pelo contrário, será um representante do director do agrupamento junto ao seu próprio estabelecimento de ensino. Em termos estruturais e morfológicos, as alterações do 75/2008 são reduzidas. Onde as alterações são de facto maiores é no discurso político-ideológico relativamente à abertura da escola ao meio, dando maior protagonismo às autarquias e aos actores comunitários. Mas a abertura da escola ao meio não depende apenas disso – e a investigação também assim o demonstra – mas sim de muitos outros factores e projectos. E de algo essencial, que é a maior abertura do ME à definição de políticas no interior das escolas.
Que consequências poderão advir para aquilo que poderemos designar como a actual matriz da escola pública portuguesa?
Em primeiro lugar, julgo que o Conselho Geral não trará mais poder e mais autonomia às escolas, e penso que rapidamente se chegará a essa conclusão. Por outro lado, o cargo de director pode ser muito poderoso internamente, mas muito débil e enfraquecido externamente. Ao contrário do que se afirma no decreto 75/2008, ele não será o rosto de cada escola, mas tenderá, isso sim, a ser o rosto do ME dentro de cada escola. A par disto temos ainda o Conselho das Escolas - caracterizado como um órgão consultivo do ministro da educação e como fórum de participação nas políticas educativas, mas que na verdade serve para clarificar orientações políticas relativamente às escolas. Em resumo, considero que o novo regime reforça a centralização e contribui em larga medida para a erosão da colegialidade e da participação interna nos órgãos escolares, através de uma aposta numa gestão unipessoal, que reforça muito a figura do director. De substantivo, não se deverá contar com nada de novo relativamente à autonomia e democracia nas escolas, pelo contrário.
Uma mudança, portanto, que não vem alterar o substancial...
Sim, porque não é possível uma escola mais democrática, mais autónoma e mais participativa se a lei orgânica do ME continuar a mesma. Não há uma transferência significativa de competências relativamente às escolas, e desse ponto de vista o novo regime é uma desilusão e mera retórica. Objectivamente, o ME não está preparado, do ponto de vista político e administrativo, para transferir mais competências para as escolas. Creio que, nesse caso, não se justificaria alterar o 115-A de 1998.
MANUELA MENDONÇA
Novo regime é “um retrocesso no funcionamento democrático da escola pública”
Manuela Mendonça é co-coordenadora do Sindicato dos Professores do Norte e membro do Secretariado Nacional da Federação Nacional de Professores. Nesta entrevista, faz o ponto de situação da implementação do novo regime de autonomia e gestão das escolas e explica porque razão os sindicatos desta federação estão contra o novo diploma.
Qual é, em síntese, a opinião da Fenprof face ao novo regime de autonomia e gestão das escolas?
A Fenprof considera que ele representa um retrocesso no funcionamento democrático da escola pública. É um regime que faz regressar a figura do director às escolas portuguesas, numa lógica de recentralização de poderes, assente numa clara cadeia de comando que começa nos serviços do ME e acaba nos coordenadores das estruturas pedagógicas intermédias. Para o Governo, este modelo é uma peça fundamental para a consolidação de uma concepção de escola coerente com a concepção de professor que o novo Estatuto da Carreira Docente (ECD) configura. Para garantir professores obedientes e acríticos, há que reduzi-los à dimensão de funcionários, controlando fortemente a sua actividade. Isso não se compagina com a democracia na direcção e gestão das escolas.
Que aspectos consideram mais negativos?
A imposição de soluções únicas a todas as escolas, retirando-lhes os poucos espaços de autonomia de que dispunham ao nível da sua organização interna; o fim de vários processos eleitorais, restringindo a participação dos actores escolares na direcção e gestão da sua escola; o fim da tradição de colegialidade na gestão escolar do pós 25 de Abril, impondo a todas as escolas um órgão de gestão unipessoal, seleccionado através de um processo híbrido de concurso e eleição; a concentração de poderes de decisão no director, último elo da cadeia hierárquica do Ministério da Educação (ME) em cada escola. O director condicionará todo o processo de avaliação, nomeará coordenadores de departamento, de conselho de docentes e de estabelecimento, seleccionará e recrutará o pessoal docente nos termos dos regimes legais aplicáveis e decidirá a colocação dentro dos agrupamentos de escola. Supostamente, esta concentração de poderes pretende dar ao director meios para que ele possa “desenvolver o seu projecto”. Mas não é o projecto educativo da escola – para cuja concepção, desenvolvimento e avaliação se convoca a participação da comunidade educativa representada no Conselho Geral – que compete ao director executar e fazer executar? Estamos, enfim, perante a consagração de uma espécie de autonomia do chefe, em detrimento da autonomia da escola.
Que implicações tem essa autonomia do chefe, como refere?
Quando o horário e local de trabalho, a avaliação e a carreira dependem da decisão de um chefe, é melhor pensar duas vezes antes de fazer seja o que for que o possa contrariar... Quanto mais dependentes estivermos, mais condicionados nos sentiremos. Numa Conferência organizada no âmbito da segunda Presidência Portuguesa da União Europeia, em 2000, a representante do Governo sueco, fazendo o balanço de dez anos de um programa de reforço da autonomia das escolas no seu país, concluía que este ia ser revisto porque em vez de contribuir para aquele objectivo, tinha, afinal, reforçado a “autonomia do chefe”, constatando-se que a desejada maior participação dos actores escolares não tinha acontecido e que, pelo contrário, os professores intervinham cada vez menos na vida da escola. Já para o Governo português, a preocupação é retirar espaços de intervenção e de participação aos professores. Subjacente a esta alteração legislativa, como a outras, está uma desconfiança, quase obsessiva, em relação à classe docente. Estranha ideia esta de quem nos governa, de que no sistema educativo português há dois interesses inconciliáveis: de um lado o dos professores, do outro o das escolas e dos alunos…
Esta é uma matéria em que as diversas organizações sindicais estão de comum acordo – tal como aconteceu recentemente relativamente a outras questões – ou há posições divergentes?
Sobre esta matéria, não há posições comuns. A Plataforma Sindical constituiu-se como uma frente de luta contra o ECD mas, mesmo a este nível, a convergência está mais no que se recusa e não tanto no que se propõe. Por exemplo, relativamente à avaliação do desempenho, todos os sindicatos recusam o modelo imposto pelo ME, mas propõem em alternativa soluções diferentes. Enquanto a Fenprof defende uma avaliação entre pares, participada e co-construída pelos próprios professores, a FNE, tanto quanto sei, defende uma avaliação externa. Relativamente à gestão das escolas, a Fenprof e a FNE têm há muitos anos posições diferentes sobre várias questões. Por exemplo, em relação à unipessoalidade do órgão de gestão. Por essa razão, não foi possível uma convergência de posições no âmbito da Plataforma.
De que forma têm reagido, em geral, as escolas e os professores a este processo?
O facto de esta alteração legislativa ter coincidido com a implementação do modelo de avaliação do desempenho retirou centralidade e prejudicou o debate sobre o novo regime. Basta ver que o processo de selecção do director ocorre no meio de um ano lectivo que ficará para a história como um dos mais conturbados na educação em Portugal. Um ano em que os professores fizeram a maior manifestação e a maior greve de sempre.
Isso significa que os professores não se envolveram na implementação do modelo?
Não, os professores acabaram por intervir no processo, mas fizeram-no centrando a sua preocupação não no modelo e no que ele representa, mas essencialmente nas pessoas, no perfil dos candidatos ao cargo de director. De acordo com os contextos, ora se mobilizaram para garantir que o anterior presidente do conselho executivo se candidatava, ora procuraram encontrar um candidato que constituísse uma alternativa ao anterior detentor do cargo. Há um número significativo de directores que se candidataram por pressão dos colegas ou de outros elementos da comunidade escolar e que têm manifestado publicamente a sua discordância relativamente ao modelo. Mas independentemente das pessoas que ocupem os cargos e da preocupação que possam ter em atenuar os efeitos negativos daí decorrentes, o que está em causa é a configuração do modelo e as suas implicações. Muitos professores só agora se começam a aperceber disso.
O processo de selecção do director está terminado em todas as escolas?
Na grande maioria das escolas sim, mas há ainda escolas onde o concurso não foi aberto e outras em que os processos de selecção se arrastam há meses. Mas apesar de ainda estar em fase de instalação, os efeitos negativos da aplicação do decreto-lei 75/2008 são já visíveis em muitas escolas.
Que efeitos são esses?
Para além de irregularidades processuais várias, algumas objecto de acções judiciais, o que me parece mais relevante é um acréscimo de conflitualidade, a deterioração do clima de escola e a partidarização da gestão escolar. E aqui há situações muito diversas que vão de pressões e tentativas de manipulação de membros dos Conselhos Gerais Transitórios para votações favoráveis a determinado candidato, ao controlo de todo o processo pelo poder autárquico, em função de interesses político-partidários.
Que diligências tem efectuado a Fenprof junto dos restantes partidos políticos com assento na Assembleia da República no sentido de reverter este diploma?
A Fenprof editou recentemente o Livro Negro das Políticas Educativas do XVII Governo Constitucional, com o qual procura contribuir para a avaliação das reformas impostas nesta legislatura e que tem vindo a apresentar aos partidos políticos concorrentes às próximas eleições, tendo em vista a assunção de compromissos que permitam corrigir essas políticas.
Que receptividade tem obtido e que compromissos conseguiu?
Estas reuniões ainda estão a decorrer. Há receptividade dos partidos à esquerda do Partido Socialista para reverter este processo, caso venham a estar em condições de influenciar a próxima governação. Temos consciência de que à direita vai ser mais difícil obter compromissos nesta área, porque o que este regime consagra são, no essencial, as propostas do PSD. Apesar de não surpreender, não deixa de ser irónico que o Governo de José Sócrates altere a legislação do Governo de António Guterres, com as propostas do PSD. A única diferença, que assinalo e não desvalorizo, é que para o PSD o director pode não ser um professor. Tudo o resto é decalcado do que este partido tem vindo a defender, pelo menos desde o início dos anos 90.
Independentemente destes contactos e dos seus resultados, que outras iniciativas irá tomar a Fenprof no sentido de fazer recuar o Governo?
No plano jurídico, e com base num parecer do ex-Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional Guilherme da Fonseca, estão em curso duas iniciativas: um pedido da fiscalização sucessiva e abstracta da constitucionalidade do diploma e um requerimento ao Ministério Público para que proceda à interposição de acção de impugnação de normas por ilegalidade. No plano político, a Fenprof intervirá junto do próximo Governo, contestando a necessidade e a oportunidade desta alteração legislativa, assim como a validade das soluções impostas. Continuará a procurar as melhores soluções para a governação democrática das escolas e a bater-se por um ordenamento jurídico que respeite a sua autonomia, que promova dinâmicas participativas, que consagre a elegibilidade dos órgãos e a colegialidade do seu funcionamento, em suma, que reforce a democracia nas escolas.
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