Página  >  Entrevistas  >  Ser professor sempre foi uma profissão prestigiada

Ser professor sempre foi uma profissão prestigiada

[Entrevista realizada no âmbito da tertúlia de professores promovida pela PÁGINA – reportagem ‘Olhares sobre a Profissão’]

Acaba de participar na 2a Conferência Nacional de Professores Aposentados, organizada pela Fenprof. Na sua perspetiva, a classe docente está envelhecida?

Há um relevo geracional agora. Nesta conferência, estavam os professores aposentados, que foram os que construíram a escola pública do 25 de Abril. No caso da Galiza, seriam os que recuperámos, a partir da morte de Franco, a escola republicana, também escola pública. Essa geração, que começou o seu exercício profissional nos anos ’70, está agora a reformar-se e seria muito triste que as novas gerações de professores que entram na escola não conheçam, não respeitem e não tratem de incorporar tudo o que foi aquele modelo. Porque, às vezes, a história é injusta e perde-se a memória dos contributos das gerações anteriores, sobretudo da construção do sistema educativo público que garantia todas as liberdades, todas as possibilidades de participação, de fundamentação da democracia, etc. Tudo isso, para as novas gerações, pode parecer algo gratuito, que não houve que lutar por isso. E também não é eterno, a qualquer momento pode haver retrocessos ou perder-se, por dinâmicas de mercado, de iniciativas privadas. Penso que podemos ter avanços técnicos, mas também podemos ter retrocessos no plano ideológico.

Considera, então, que falta um ‘entendimento’ entre as diferentes gerações?

A culpa pode ser nossa, dos que nos dedicamos à formação inicial, nas faculdades, de não transmitirmos essa proximidade, quer dizer, o que foram as conquistas escolares a nível local; às vezes perdemo-nos noutros conceitos, noutras teorias, que são interessantes e úteis, mas não damos aos novos professores a perspetiva de continuidade com o que foi a história da nossa educação. Isto não quer dizer que esteja pessimista com o que está a acontecer na escola do presente. Penso que há algumas condições que dificultam este trabalho, por exemplo, a incorporação muito tardia na escola: quando começámos a democratizar o sistema educativo, de repente, apareceram muitas vagas de professores e, portanto, começava-se a trabalhar com 21 ou 22 anos; hoje há professores que podiam ser grandes educadores, mas não acedem ao ensino público antes dos 30 anos e isso gera uma certa desconexão geracional.

Se a sociedade e o mundo estão em constante mudança, não é normal a Escola também mudar também? Os próprios alunos são diferentes...

Há saberes específicos que são novos, pelos avanços tecnológicos, pelo avanço nas relações sociais, etc. Mas há coisas que permanecem e que provavelmente não se estão a trabalhar tanto na formação de professores, como todos os aspetos do trabalho de convivência na aula, algo que é completamente novo, a interculturalidade, a presença de pessoas muito diferentes nas aulas, como lidar com todos os sistemas, como fazer uma escola realmente inclusiva... Neste momento, os professores estão mais preparados do que nunca para dar respostas a essas questões, mas quem sabe não estaremos a torcer um pouco nos fundamentos ideológicos básicos, na ideia de que a escola pública é o principal garante de todos os direitos. Quer dizer, o modelo educativo compreensivo, de formar a pessoa na sua integridade, dá a impressão de estar a perder-se um bocadinho.

As condições técnicas do professorado para dar resposta às necessidades muito diversas que se podem encontrar nas aulas estão melhores. Nós demos um avanço fundamental, e espero não retrocedermos, na formação dos professores, que passou a quatro anos universitários, equiparando-se com as demais carreiras. A formação inicial, nesse sentido, melhorou muito tudo o que é formação na prática profissional. E depois, algo que eu considero também muito interessante, porque não defendo a figura do professor meramente técnico, mas o professor como pessoa que tem de pensar, repensar, investigar, e nesse sentido a nova formação inicial introduz um elemento fundamental que é o trabalho de fim de curso, onde os estudantes têm de demonstrar já umas certas competências investigadoras.

Sente alguma inquietação e desencanto nos professores?

Sim. Há muitos livros sobre o mal estar docente – com o tempo que passam no exercício da profissão, têm muito pouco para se relacionarem com os seus iguais e com as gerações anteriores. E depois, o golpe definitivo, as políticas burocráticas que estão a impor-se nos sistemas educativos, com cortes salariais e com críticas; às vezes são os próprios governos que desautorizam o trabalho dos professores. Historicamente, ser professor sempre foi uma profissão prestigiada. Toda a comunidade valorizava a profissão, valorizava o seu papel, não só com as crianças, mas inclusive como consultor para o resto da comunidade, para doenças ou para mediar qualquer litígio que tinham de terras, de partilha de heranças, etc. – sempre iam ao mestre, que era a palavra sábia que aconselhava. Esse prestígio foi-se perdendo. E são os próprios governos que muitas vezes os deslegitimam dessa função. Depois há definitivamente uma excessiva carga burocrática. E também o tema das famílias.

Eu sou partidário da integração das famílias no sistema educativo, que participem de tudo o que se está a fazer no sistema educativo e que todos os educadores estejam na mesma direção. Mas há dinâmicas de confrontação e um motivo de confrontação que por vezes aparece é ideológica; de tentar dizer aos professores que temas podem ou não tocar, seja a Educação Sexual ou o que neste momento se passa em Espanha, como se aborda o problema catalão, o problema basco, o problema galego. Evidentemente, no contexto educativo, tentamos que as crianças, dentro de um espírito crítico, dentro de todas as competências que queremos gerar, tenham também uma visão do que é o Estado, do que são as comunidades históricas, do que é a lei, etc. Se não se pode dizer isso, não sei que escola estamos a formar. As crianças, neste momento, estão mais interessadas em saber o que se passa na Catalunha do que em saber os reis católicos de há cinco ou seis séculos. Então, se se quer fazer um ensino ativo, motivador para os estudantes, trate-se aqueles temas que os preocupam.

E neste contexto, o que se pode fazer pela motivação dos professores?

Penso que é interessante os professores estarem a reforçar-se em associações, em grupos, a ter uma rede de apoio, onde vejam que coisas são realmente interessantes do ponto de vista da profissão. Temos uma experiência na raia galego-portuguesa que é extraordinária, que é a da Ponte nas Ondas [associação cultural e pedagógica]. Toda a classe docente está motivadíssima, porque ao redor de um programa anual de rádio começaram a trabalhar as relações entre os povos de um lado e do outro da raia. Daí, levam o saber dos mais velhos, as famílias participam nas escolas, e logo as crianças estão interessadíssimas. Esses saberes que adquirem e essas competências, habilidades e atitudes ficam muito mais reforçadas do que numa aula tradicional, de abrir o livro de texto, etc. Estão envolvidas nesse projeto umas 50 escolas dos dois lados da raia. E que melhor maneira de ensinar aos estudantes o respeito por outras culturas do que participar nesses projetos? Se houver projetos de colaboração que entusiasmam e motivam os professores, os estudantes e as comunidades, depois, tudo isso vai beneficiar a comunidade que habita nesses territórios.

O coletivo faz toda a diferença, não é?

Sim. Por um lado, está toda a vida sindical, que é importantíssima, para se manterem unidos na reivindicação de direitos e de condições, e depois está outra forma de agrupamento que são os movimentos de renovação pedagógica. Movimentos que podem suportar jornais pedagógicos, como é o caso da PÁGINA e, na Galiza, a Revista Galega de Educação – ter jornais de comunicação com esse perfil, que apontam a todos estes sistemas, tanto a nível didático como a nível teórico, ideológico, e que podem chegar a todos os professores, tem por trás uma associação que gera esse conhecimento e essas práticas e experiências, penso que é outra forma de alimentação entre os pares. E depois nas próprias equipas docentes. Não estaria mal pensar num sistema de transferência de professores de umas escolas para as outras baseado num projeto pedagógico, quer dizer, que o transferido fosse o coletivo. Ou seja, vou-me para esta escola, porque com estes outros dez colegas temos um projeto pedagógico para trabalhar isto ou aquilo. Outro coletivo importante é o das associações de pais, de encarregados de educação. Se há um bom funcionamento de uma associação e se ela se conecta com os professores e com outras redes, temos uma experiência educativa extraordinária. Penso que se devia incentivar esse tipo de projetos, com menos burocracia e mais promoção das experiências reais que estão a ser levadas a cabo.

Que desafios se apresentam para o futuro da condição docente? O cenário é de esperança?

Sim. Acredito que temos jovens melhor formados do que nunca. Que precisam de uma imersão no terreno, provavelmente com especialistas, sobretudo com experiências de boas práticas. Provavelmente, seria necessário estreitar mais essa relação entre a formação universitária e as boas práticas educativas que existem. No futuro, esperemos também políticas públicas que prestigiem a profissão. Creio que os governos podem dar-se conta de que cuidando da educação melhoram a sociedade em geral, esse é o valor que a educação tem e de que em algum momento se duvidou. Depois das políticas públicas que podem prestigiar a profissão, por parte dos próprios docentes, recuperar também essa criação de redes, de grupos de renovação, de intercâmbios, de formação permanente necessária para ir melhorando as suas práticas. E creio que também seria importante recuperar o modelo de escola pública (no vosso caso, do 25 de Abril) e voltar a pensar realmente nas crianças, como destinatários da educação, e na comunidade onde estão inseridas. Que as crianças desfrutem desse tempo escolar e que isso, ao mesmo tempo, reverta em benefício das comunidades em que estão inseridas.

A memória é importante?

É muito importante. Penso que os educadores deveriam escrever as suas experiências, porque somos uma profissão sobre a qual se escreveu pouco; quer dizer, há experiências extraordinárias que só se conhecem ali ao pé – como a Ponte das Ondas. Ao longo dos estudos para professores, é importante conhecer as boas práticas que existem à sua volta. Depois, é importante também trasladar o conhecimento às experiências práticas, porque sabemos o que foi feito há 100 anos, mas, e agora, como podemos nós fazer? Como podemos incrementar e atualizar esses saberes? A memória é fundamental.


  
Ficha do Artigo

 
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo