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O coletivo docente continua a acreditar

[Entrevista realizada no âmbito de uma tertúlia de professores promovida pela PÁGINA – reportagem ‘Olhares sobre a Profissão’]

Sente que a profissão docente está envelhecida?

Sinto, e a minha experiência nos últimos anos, de visita a várias escolas, denota isso. O mais grave é que não têm grande esperança de futuro, porque só uma cultura intergeracional pode criar uma perspetiva e uma esperança, apostando efetivamente naquilo que a educação pode – e a educação não pode tudo, como dizia o Paulo Freire, mas pode muita coisa. O que aconteceu à profissão docente nos últimos dez anos, o desgaste que os diferentes contextos levaram para a escola e o facto de o professor ter tido uma multiplicidade de papéis – nos quais alguns se revêm, mas outros entendem que deveria haver outras profissões na própria escola –, tudo isto denota o desgaste e as pessoas pensam que já não têm força nem capacidade para fazer. Os professores viram que não havia ninguém na retaguarda, a quem passar o testemunho, e sentem a sua impotência, a sua menorização e o seu desprestígio (também social) em relação àquilo que tinham almejado para a sua profissão. Ou seja, são as diferentes circunstâncias negativas que caíram sobre a profissão docente.

As condições de trabalho podem causar inquietação?

Há muitos estudos sobre o desgaste, o mal-estar, o burnout na profissão docente. Mas acho que o pior que aconteceu à profissão foi exatamente não ver o futuro e o testemunho a passar para os mais novos. Porque acreditamos que a educação e a cultura são os pilares fundamentais da sociedade e que nós construímos uma escola democrática. Aquilo em que acreditámos foi uma realidade no contexto nacional: a massificação, a democratização e tentar que a escola fosse democrática e solidária, que não deixasse ninguém de fora; apesar de ser transbordante em termos de multiplicidade de funções, como diria António Nóvoa, a escola acolheu a diferença. E valorizou-a. No início ela teve dificuldade em conviver com essa diferença, porque apercebeu-se que nós, os professores, éramos diferentes, diversos, mas que cada um dos garotos era irrepetível e único também. Acho que pusemos em prática aquilo que sonhámos, mas, sobretudo a partir de 2005/2006, começámos a ver ruir e a não ver o futuro a construir-se dentro da própria escola democrática. Acho que, por exemplo, a gestão democrática foi uma das machadadas que os professores viram acontecer e que, de facto, não estava nos seus horizontes. Nós acreditávamos que o espírito e as conquistas de Abril continuavam a manter-se, mas nos últimos anos vimos que as coisas começaram a denegrir-se.

Como se pode fazer a passagem de testemunho, para uma melhor dinâmica entre gerações?

Nós fomos treinados, formados e ensinados numa cultura individualista. Com o 25 de Abril, entendemos que a igualdade de oportunidades era um caminho a almejar e tínhamos de criar oportunidades para isso, porque não é a mesma coisa trabalhar no interior ou em escolas que têm todas as condições. E apesar de algumas dessas fragilidades terem sido atenuadas, muitos dos contextos mantiveram-se. Ainda assim, acreditámos que era possível concretizar aquilo que almejávamos: igualdade, liberdade, justiça social e melhores condições de vida para todos. E aqui, não tenhamos dúvidas, a escola foi um ascensor social terrível, no bom sentido da palavra – ajudou, efetivamente, muitas famílias, muitas crianças a terem acesso àquilo que jamais pensavam que teriam.

O acesso e algum sucesso educativo criou também uma sinergia muito grande entre quem chegava à escola e quem já tinha alguma experiência dos ideais defendidos pelo 25 de Abril. E esta chama manteve-se até a um passado relativamente recente. Daí que eu achava que os mais velhos aceitavam perfeitamente que a vinda dos mais novos significava sangue novo em termos curriculares e de trabalho colaborativo dentro dos grupos profissionais. Por outro lado, começámos a ver que a comunidade educativa se começou a abrir. A partir do início do século XXI, acreditámos que o apoio à família, por psicólogos e por outros atores que começaram a entrar na escola, começava a transformar a comunidade escolar numa comunidade educativa. Havia uma participação muito maior e um trabalho colaborativo desenvolvido na relação escola-família-comunidade.

Neste momento, o coletivo está fortalecido ou não?

Acho que tem algumas fissuras, mas é um coletivo que continua a acreditar. E a prova é que os professores começaram a ter consciência de que são um elemento imprescindível na vida da sociedade. Não desvalorizam qualquer outro tipo de profissão, mas acreditam que a educação e a cultura são, efetivamente, pilares fundamentais da sociedade.

Há motivos para desesperança relativamente ao futuro?

Acho que houve algumas desesperanças, nomeadamente quando tocaram em aspetos que as pessoas interiorizaram. Simplesmente foram envenenados pela relação que se criou quando os professores foram menorizados e desprestigiados, com o problema da avaliação e o problema da progressão ao nível das carreiras. E o trabalho da supervisão e outros, que podiam ser ótimos em termos de trabalho colaborativo, foram envenenados por haver um aproveitamento político da menorização dos professores.

Quais os desafios para o futuro?

Continuo a acreditar que os desafios estão dentro da própria escola, mas também fora dela, ou seja, com uma consciência cívica maior, com a valorização do trabalho docente e também com o levar a pedagogia social e outros atores sociais para dentro da escola. Porque, afinal, a escola não é mais do que o reflexo da própria sociedade. E muitos dos problemas que se vivem hoje dentro da escola estão a montante. Portanto, o trabalho educativo é um trabalho de todos, mas os docentes podem ter aqui um papel fundamental, uma vez que, através do seu exemplo, através da relação que estabelecem com os garotos, podem ser, e devem ser efetivamente, o fermento de uma sociedade mais livre e democrática.

Maria João Leite


  
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