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Eu não fiz história, fiz memória

«Quando Portugal Ardeu» (Oficina do Livro, março de 2017) conta histórias e segredos da violência política no pós-25 de Abril. Miguel Carvalho, autor e grande repórter da revista Visão, considera que o livro é um contributo para a memória não se perder no tempo, para questionar uma história dada como fechada e para lembrar as vítimas desse período conturbado. O livro conta episódios dos tempos em que Portugal esteve à beira da guerra civil – e se o título da obra, numa primeira leitura, pode levar ao engano quem pretende saber mais sobre os incêndios no país (o que aconteceu, segundo o autor), certo é que as quase 600 páginas dão conta de que em 1975 nem só o verão foi quente. O calor prolongou-se pelas estações seguintes…

 

Não teve dúvidas quanto ao título do livro?

Não. O título saiu logo de chofre. Houve duas ideias testadas, mas era tudo muito à volta disso. Foi mais problemático decidir o subtítulo.

 

O livro esteve em gestação durante muitos anos…

Sim. Isto não é independente das minhas memórias familiares. Tive, e tenho, familiares sempre muito comprometidos politicamente, à esquerda e à direita. E, obviamente, uma criança que cresce a ouvir falar daqueles tempos, mesmo que não tenha maturidade para compreender tudo, vai absorvendo como uma esponja. E desde que cheguei ao jornalismo que tinha o desejo de esgravatar um pouco mais estes temas. Sempre me interessaram as questões da memória e, à medida que fui crescendo profissionalmente, tive esta costela sempre muito presente; imaginava que um dia poderia chegar a fazer não sei bem o quê sobre aqueles tempos. E a verdade é que fui acumulando papelada. E mesmo em serviços que não tinham nada a ver, se me surgia uma pessoa que tinha uma relação com estes tempos, eu ia conversar com ela, à parte, para saber o que tinha para contar. Como sou um maluquinho dos papéis, fui arquivando: rede bombista, PSD, PCP, mais um número de telefone, mais um apontamento, etc. E andei a fazer isto 20 anos. Portanto, o mais fácil foi decidir quando escrevia.

 

E porquê agora?

Fui escrevendo algumas histórias sobres esses tempos para a Visão, que me ajudaram a abrir o leque de opções e de horizontes. Mas o clique foi aquilo a que hoje chamamos de ‘geringonça’. A partir do momento em que comecei a ver algumas barbaridades escritas, não só nas redes sociais, onde já é habitual haver barbaridades, mas em algumas colunas de opinião aparentemente sérias, fui olhando para alguns argumentos e decidi que a avançar seria agora, porque mesmo gente que viveu aqueles tempos estava a escrever coisas inimagináveis sobre aquilo.

 

Consegue estabelecer um paralelo entre esses tempos e o atual?

Consigo. Ainda andava o António Costa em negociações com o Bloco de Esquerda e o PCP, e o que era publicado em colunas de opinião e sites andava muito próximo dos argumentos incendiários e primários de ‘75/76. Além de não terem qualquer base, em muitos casos, são ofensivos, pouco democráticos e maniqueístas. Gente a escrever que o melhor era dizer aos filhos que chegou a altura de emigrar e que vinha aí a ditadura do proletariado e o estalinismo… Pensei que estava tudo doido. No pós-25 de Abril, isso era um fósforo que incendiava uma série de coisas; no Portugal de hoje, ou de há dois anos, se não teve consequências maiores, e podia ter tido, é a prova de que amadurecemos algumas coisas, respeitamos as diferenças, os argumentos políticos, as ideologias e, apesar de tudo, algumas coisas escritas em colunas de opinião bem frequentadas. Confesso que a minha maior surpresa foi ter três edições no espaço de três meses, e estamos a falar do livro de uma pessoa que não é mediática. A minha interpretação é que há algo da nossa memória coletiva que não está preenchida, e tenho recebido muito esse feedback: pessoas que vão às apresentações do livro e, entre outras coisas, dizem que nunca tinham visto isto assim; que pedem para assinar o livro para os filhos, porque querem que eles saibam o que elas viveram – e estou a falar de pessoas de esquerda e de direita, aqui não há distinção. Aparecem pessoas que acham que havia um vazio que este livro preencheu e todas as semanas chegam-me histórias e emails de pessoas que acham que tem de se fazer um segundo volume…

 

E tem essa perspetiva?

Decididamente, não tinha. Mas as sessões, os emails e as mensagens que me chegam têm obrigado a que pelo menos pense nisso. Não é nada que eu tenha conversado sequer com a editora. Para já, não, definitivamente, mas chega-me tanta coisa nova que efetivamente poderia aqui estar... Não sei se não terei obrigatoriamente de pensar nisso, porque, de facto, as pessoas acham que ainda há uma série de vazios para preencher.

 

Porque é que este período não foi mais explorado ou divulgado?

Já achava quando parti para o livro e confirmei: porque houve uma determinada narrativa sobre aquele período – que é a narrativa vencedora, quer a gente queira quer não – que foi sendo construída e aqui e ali reciclada, que permite que algumas biografias continuem imaculadas, sem o devido questionamento, nem a devida investigação sobre aquele período. Houve mesmo, sobretudo durante o cavaquismo, quase que uma política de Estado no sentido de não esgravatar muito aquele período e manter duas ou três celebrações que ajudassem a preencher a memória e pouco mais. E ainda hoje, algumas figuras politicamente muito consideradas têm um pavor imenso em mexer e em que se mexa naquilo. Tive muitas recusas de pessoas que eu achava que, eventualmente, podiam dar um contributo para o livro, mas acharam que não se devia mexer – ‘o que está, está bem’. Mas a verdade é que os ecos que chegam são para fazer mais, porque há mais e para as pessoas que estiveram envolvidas em algumas daquelas barricadas se sentirem minimamente reconhecidas, porque se faz alguma memória sobre um tempo que também viveram e que acham que não está preenchido pela historiografia, nem sequer reconhecido o contributo que deram para a democracia. Portanto, acham que isto foi uma forma de as homenagear e essa foi também uma das intenções.

 

 

A democracia dava os primeiros passos… Os medos que existiam justificavam uma violência desta dimensão?

Hoje, sobretudo algumas figuras da direita, têm um discurso maniqueísta em relação aos excessos do pós-revolução ou daquilo a que vulgarmente se chama o PREC [processo revolucionário em curso]. Acho que era inevitável, depois de 48 anos de ditadura, que algumas coisas passassem as fronteiras e muitas coisas excessivas fossem feitas. Mas uma coisa são excessos naturais a seguir a um período como aquele, outra coisa são algumas violências que foram cometidas e, sobretudo, o calibre de alguns discursos que as pessoas faziam, sabendo que estavam a mentir e que estavam a manipular sem pensar nas consequências. E isto foi feito à esquerda e à direita. A questão é que aquilo que resultou na rede bombista de extrema-direita foi muito mais além e conseguiu, da parte de algumas forças ditas democráticas, um colaboracionismo que ainda não está percebido em toda a sua dimensão, nomeadamente, o papel que o PS desempenhou. A cumplicidade que o PS teve com alguns setores ligados à rede bombista ainda está por conhecer na sua dimensão real. E no dia em que percebermos a verdadeira dimensão desse compromisso, vamos perceber melhor que aquele período não foi tão a preto-e-branco como alguns setores gostam de fazer crer. Eu não embarco no discurso de que estivemos à beira de uma ditadura comunista; estivemos, sim, como dizem alguns dos protagonistas do livro, mais perto de uma nova ditadura de direita – independentemente e sem desculpar, obviamente, os excessos que foram cometidos à esquerda. O livro pretende preencher um vazio nesse capítulo, mas não esgota tudo o que ainda se poderá dizer sobre esse período.

 

Quatro décadas depois, isto pode ainda ir muito mais além…

Sim. O livro tem 18 capítulos. Inicialmente tinha pensado em 22 e eram capítulos que aprofundavam um bocadinho isto, que iam um bocadinho mais longe em relação ao grau de compromisso que o PS teve com alguma desta gente, mas o livro já estava grande demais. É um tema a que quero voltar, não sei muito bem em que formato, mas há de facto matéria – não só aquilo que eu próprio deixei de fora, como o que me vem chegando, e todas as semanas me chegam coisas. Há muita gente viva, ainda, e esse é outro problema: fui entrevistar gente, em alguns casos, já na casa dos 80/90 anos, e é importante que essa memória não se perca. Gente que, apesar da idade, tem a memória muito fresca e muito lúcida sobre aquele período e que pode juntar a isso documentação. E se isso não se fizer no espaço de dois ou três anos, é uma memória que se pode perder. Acho que a memória coletiva merece isso. Porque ao contrário do que pretendem fazer-nos crer, não foi um período de bons e maus. Foi um período com muitas zonas cinzentas, com excessos de um lado e do outro. E quanto mais factos, testemunhos e narrativas tivermos sobre esse período, melhor e mais aprofundadamente vamos perceber porque é que temos a democracia que temos e porque é que alguns continuarão sempre imaculados, mas com muitos esqueletos no armário.

 

Há sempre ciclos na história que se vão repetindo. E hoje em dia há coisas a acontecer que levam muitos a pensar em formas mais radicais de estar em sociedade. Isto da memória é importante, mas parece que o mundo tem memória curta…

Sim, de uma forma geral, porque os erros repetem-se. E o jornalismo tem um papel extremamente decisivo nisso. Mas acho que, apesar de tudo, se conseguirmos fazer uma pedagogia da memória, estaremos a prevenir mais violência, a prevenir a idiotice sobre determinadas coisas, a evitar um bocadinho mais que as coisas se repitam. Um dos momentos simbólicos e emocionantes que este livro gerou foi uma homenagem pública a Rosinda Teixeira, um nome absolutamente desconhecido da memória coletiva, que foi a mulher assassinada pela rede bombista em São Martinho do Campo. Fez-se uma sessão pública de homenagem, no sítio onde ficava a casa que foi incendiada e onde ela morreu, e que hoje é um descampado. Colocámos uma placa. A iniciativa surgiu de uma pessoa de lá, que tem as suas convicções políticas, mas que não fez uso disso – um emigrante que há alguns anos regressou à terra e quis ajudar a que se perpetuasse a memória daquela vítima de tempos políticos conturbados, ‘para que as pessoas mais jovens não esqueçam, porque se fizermos isso estamos a prevenir que as coisas voltem a acontecer’. Foi esse o grande objetivo. E a placa lá está, para lembrar.

 

Muita gente quebrou o silêncio 40 anos depois. Como descobriu as pessoas certas para o livro?

Não procurei intencionalmente grandes protagonistas. Muita gente me pergunta se não pedi nenhuma entrevista ao [Ramalho] Eanes, que é uma figura que, apesar de tudo, atravessa vários capítulos do livro. Respondo que essas figuras já escreveram a sua história, várias vezes aliás, já fizeram a sua narrativa, e ir entrevistá-las não acrescenta nada. Procurei muita gente que não tinha falado ou que, tendo falado, estivesse tão enfarinhada naquilo que pudesse explicar melhor este ou aquele episódio, sem estar à procura das luzes da ribalta. Mas há, de facto, algumas pessoas que nunca tinham dado entrevistas sobre aquele período e que estiveram com as mãos na massa. Que recolheram e investigaram muita coisa, nomeadamente a nível policial, e que não dirigiram as coisas do ponto de vista ideológico – isso para mim também era importante, que pudessem falar com a máxima distância possível. Essas, sim, foram absolutamente decisivas. E elas próprias acharam que este era o momento, que já passou tempo suficiente; outras recusaram por acharem que não passou tempo suficiente. Costumo dizer que a memória é de longa duração, que o passado tem longa duração, queira a gente ou não. E ele está aí. Eu não fiz história, fiz memória.

 

Qual foi a história mais marcante?

Não sei se consigo dizer isso assim. Há uma figura muito importante, o coronel Ferreira da Silva, que é uma das tais pessoas que falou pela primeira vez ao fim destes anos todos e que é uma mina para um jornalista. Além do testemunho, trouxe muita documentação – fez diários daquele tempo; de cada vez que se encontrava com alguém, fazia um relatório para si próprio, para se prevenir e não ser objeto das instrumentalizações políticas da época. Como figura, talvez a mais importante. Histórias que me marcaram do ponto de vista emocional, a da Rosinda Teixeira, bastante. E descobrir Einar Braathen, um jovem socialista norueguês que vem conhecer a revolução e acaba a levar 12 tiros em Braga. ‘Miguel, ainda bem que me vai permitir recordar isso, porque a experiência portuguesa foi uma coisa que me marcou profundamente’. Nós não damos muito valor ao que conquistámos nesse período e até nos esquecemos de que fora de fronteiras muita gente valorizou imenso aquilo que se fez aqui e ainda hoje considera um exemplo para o mundo. Se calhar, há imensos testemunhos por aí fora, que um dia era importante recolher…

 

É um jornalista de referência e nesta investigação desoculta partes da história desconhecidas de muitos. Alguma vez temeu algum tipo de consequência?

Não. Várias pessoas me perguntam se tive alguma ameaça, mas só houve uma vez umas chamadas anónimas, sem especial significado. Na sequência do livro, até hoje, zero. Tem havido exatamente o contrário: pessoas que querem contribuir com mais uma história e que me desafiam a escrever o segundo volume, com outras histórias. Em Braga surgiu a ideia de pegar no vídeo que apresentamos em todas as sessões, exibi-lo nas escolas e ir lá falar sobre isso aos miúdos. Já fui a Leça da Palmeira fazer isso, e há mais convites nesse sentido. Ver isto a multiplicar-se, a dar origem a outras sementes, é o melhor que podemos ter. É ótimo!

Maria João Leite (entrevista)

Ana Alvim (fotografia)


  
Ficha do Artigo

 
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