Full Professor na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais (ESECS), do Instituto Politécnico de Leiria, Ricardo Vieira é mestre em Antropologia Social e Sociologia da Cultura, doutor em Antropologia Social, pós-doutorado em Serviço Social e agregado em Antropologia da Educação. Trabalhou com Raul Iturra e Pierre Bourdieu, entre outros, e em 2000 foi galardoado com o Prémio Rui Grácio, da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE), para o melhor trabalho de investigação em Educação realizado em Portugal. Coordenador do mestrado Mediação Intercultural e Intervenção Social (ESECS), investigador do Centro de Investigação em Ciências Sociais (CICS) e membro da Rede de Ensino Superior em Mediação Intercultural (RESMI), Ricardo Vieira é autor de vários livros e artigos – recentemente, com Ana Maria Vieira, publicou «Pedagogia Social, Mediação Intercultural e (Trans)formações» [ProfEdições, 2016]. A conversa com a PÁGINA decorreu em torno desta temática.
A Escola Superior de Educação de Leiria (ESEL) foi a primeira escola pública a oferecer formação superior em Serviço Social, uma área que convoca vários conceitos-satélite – educação social, animação comunitária, trabalho social, mediação intercultural – e que esteve na origem de muitos cursos entretanto criados. O Ricardo Vieira foi um dos responsáveis por esse movimento…
Exatamente! Eu fui professor no Ensino Básico durante cinco anos. Estava em Lisboa, onde comecei a dar aulas, e como sou da zona de Leiria, de alguma forma foi o voltar à terra. Vim para a ESEL em 1987, tendo entrado por concurso público. A ESEL tinha aberto dois ou três anos antes e herdado a formação dos magistérios primários, como em todos os distritos do país. Basicamente tinha 300 alunos – hoje tem 2000… A ESEL foi a primeira escola do país a mudar de nome, com novos estatutos publicados no seguimento do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (Lei no 62, de 2007). Mas antes, eu já tinha feito várias movimentações – como ator social cá dentro – no sentido de que era preciso mudar o nome da Escola, justamente porque em 1993 criámos o primeiro curso fora da formação de professores para o 1º Ciclo e de educadores de infância, herdada do Magistério Primário. Portanto, nós abrimos o curso de Relações Humanas e Comunicação no Trabalho (hoje Relações Humanas e Comunicação Organizacional), um bacharelato que com a alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo permitiu a transformação em licenciatura. Mas o ‘boom’ na área das Ciências Sociais, e virado para a Pedagogia Social, foi em 2000. Nesse ano, nós propusemos vários cursos novos; aliás, fui eu que propus a maior parte deles. O de Serviço Social, por exemplo, que andou no ministério para trás e para a frente, porque era um domínio exclusivo do privado – só se formavam assistentes sociais em Lisboa, Porto e Coimbra, nos Institutos Superiores de Serviço Social, e, portanto, nunca nenhuma universidade, nenhum politécnico, tinha dado este passo. Nós fizemos essa proposta, que veio rejeitada, inicialmente, pelo ministério da altura [Guilherme d’Oliveira Martins], dizendo que o curso era de cariz universitário e que nós éramos politécnico.
Essa diferenciação entre universitário e politécnico continua acesa, ao que parece.
Eu escrevo todas as semanas contra essa separação, como é feita em Portugal. Sempre fui contra essas dicotomias e todas as discriminações que são feitas na carreira... Um pouco como no Ensino Básico e no Secundário, entre escola profissional e escola “X”, como se fossem dois caminhos que não pudessem vir a cruzar-se… Ou no Estado Novo, a escola comercial e industrial... Isso semre me incomodou! Está tudo muito certo, desde que as pessoas não sejam obrigadas a correr por vias adstritas e paralelas, sem cruzamentos. É uma coisa horrível! E depois vêm com exemplos da Alemanha e de outros lados... Mas alguém vai pôr um filho a escolher o seu futuro, definitivamente, aos 12 anos? O meu filho, que está farto de ler livros disto e daquilo, diz-me hoje, com 19 anos, “pai, eu ainda não sei o que quero; se calhar, chego ao final e vou fazer outra coisa qualquer...” O que ele está a dizer é que é muito novo para escolher!
Voltando ao ‘boom’ das Ciências Sociais...
Quando o ministério nos responde que não, “porque o curso é de natureza universitária e vocês são politécnico”, nós, estrategicamente, pedimos pareceres aos professores Veiga Simão e Almeida e Costa, que tinham estado ligados à criação do ensino politécnico em Portugal e jogámos no tabuleiro do ministério: se há dois caminhos, politécnico e universitário, e o ministério decidiu que Medicina era universitário – não percebo bem porquê; se é o curso mais prático de todos, desse ponto de vista seria politécnico – e Enfermagem ficou politécnico, então não há dúvidas de que Antropologia, Sociologia e Psicologia são universitários e Serviço Social é politécnico. E com este argumento ganhámos a primeira escola pública do país a ter Serviço Social! A seguir, este curso nasceu um pouco por todo o lado. As escolas superiores de educação e outros politécnicos abriram cursos de serviço social, e as universidades também – por exemplo, a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação de Coimbra abriu serviço social passados dois anos. Portanto, esse ‘boom’ começou com Serviço Social, Educação Social, Animação Cultural, Comunicação Social e Educação Multimédia…
Uma grande transformação numa escola que nasceu para a formação de professores e educadores…
Exatamente. Uma escola que estava ligada à formação de professores transformou-se numa escola muito virada para a Educação Social, para o Serviço Social e para a Comunicação Social, e mais tarde alargaria mesmo o próprio nome, passando a chamar-se Escola Superior de Educação e Ciências Sociais (ESECS). Eu estou muito orgulhoso disso e de termos sido a primeira escola do país com as três áreas principais da aplicação Pedagogia Social.
Que são?
Educação Social, Serviço Social e Animação Cultural. E foram essas três grandes áreas que nós conseguimos materializar em cursos – entretanto, a Animação Cultural não abriu por falta de procura. Portanto, não havia mais nenhuma escola que tivesse estes três domínios fundamentais da Pedagogia Social juntos. Tenho a impressão de que alguns colegas não se aperceberam dessa mais-valia que tínhamos conseguido a pouco e pouco.
Portanto, a Pedagogia Social é a base dessas áreas…
Para mim, a Pedagogia Social é a matriz teórica quer da Educação Social, como profissão que trabalha com grupos marginais, com crianças, com jovens, com idosos, no sentido do empoderamento, da autonomização, de uma educação para a vida e não apenas de uma educação escolar, quer do Serviço Social, que tem uma história mais assistencialista, de trabalho no ‘fim da linha’, com o toxicodependente, etc. A Educação Social é mais ligada à prevenção, ao que é possível fazer antes de o indivíduo se tornar toxicodependente, e neste sentido é mais educadora. E é a base, também, da animação sociocultural.
A Pedagogia não é toda ela social? O que justifica um quadro teórico autónomo?
A Pedagogia Social como matriz teórica nasce justamente porque a pedagogia, no sentido mais lato, estava – e está – muito escolástica, muito escolarizada, no sentido do ler, escrever e contar. Muito embora, a Lei de Bases do Sistema Educativo e as reformas que se seguiram venham a abrir domínios que são da Educação Social – a formação pessoal e social é educação social. Aliás, toda a educação é social, disse Émile Durkheim no século XIX... Só que a formação de professores também tem uma história e sempre menorizou determinadas áreas. A educação física ora conta, ora não conta... Com o ministro Crato, as áreas centrais voltaram a ser claramente ler, escrever e contar... Mas, se nós pensarmos em termos de abertura, com a Lei de Bases de 86 vinha claramente uma abertura à Educação Social: a formação pessoal, a educação para a cidadania, o desenvolvimento pessoal e social, que depois foram designadas áreas curriculares não disciplinares; e mesmo o DPS como disciplina... Estamos a falar de Educação Social na escola. Embora, na altura, se calhar ninguém tivesse dito isso e os professores fossem pouco experientes na matéria…
E provavelmente pouco sensíveis…
Exatamente. Pouco sensíveis, eu acho. Não estamos aqui a culpar os professores, mas há um grande treino, de muitos anos, a ensinar disciplinarmente, cada um no seu campo…
E com programas cada vez mais extensos e mais complexos…
Isso, e ‘cada macaco no seu galho’... Nós sabemos que desde o século passado se vai falando de interdisciplinaridade, de trabalho de projeto... Mas não passa tudo de conversa, não é? É certo que se deram saltos grandes, mas a formação dos professores – e estou a falar na minha própria escola – é muito didatista: didáticas, metodologias de ensino... Uma pedagogia muito escolar. Por isso, o José Alberto Correia, que também colabora com a PÁGINA, fala muito da importância de desescolarizar a escola, porque a escola ‘aluniza’ crianças, jovens…
Um discurso que às vezes é mal entendido e que alguns confundem com o do fim da escola…
Exatamente. Do Ivan Illich, que é de meados do século passado – escolas para quê? Não, nós não estamos a matar a escola, estamos a dizer que é possível, efetivamente, naquelas oito horas que a rapaziada lá está, educar mesmo para tudo, e educar socialmente também. O que é que a escola fez? Educação ambiental, educação para o património, educação para a sustentabilidade, educação comunitária... Tantos nomes, e tudo é educação social; tudo é Educação, numa só palavra. Mas foi preciso nascer a expressão Pedagogia Social, com vista a uma educação social que, em termos de história, foi sendo colocada para além da Escola. Ou seja, havia a Escola e depois, fora da escola, emergiu uma área de Educação que ainda hoje – erradamente, acho eu – alguns dizem que é a dimensão não formal. Porque estão a ver o mundo a partir da Escola, e o mundo visto a partir da Escola é muito pequenino, de vistas curtas. Porque a escola laica, em Portugal, só nasceu com o Marquês de Pombal: foi mais ou menos ontem à noite, e os humanos até ao Marquês sempre se safaram, não é? [risos] Portanto, a Escola traz a dimensão formatadora, do espírito do Estado-nação. Se recuarmos ao Estado Novo, temos lá a Educação Cívica, que é Educação Social, mas essa Educação Cívica não era o que hoje se entende por Educação Para a Cidadania, porque hoje a gente está a falar de libertar as pessoas através da Educação.
Que é um pau de dois bicos…
É um pau de dois bicos porque com a Educação do Estado Novo havia formatação social; a educação não libertava. Como diz Paulo Freire, a educação prendia as pessoas a um modelo pré-concebido de ser rapaz ou rapariga, homem ou mulher, de ser pessoa. A Pedagogia Social emerge na Alemanha, ou em Espanha, com muito mais força do que em Portugal, justamente para dar resposta à educação de adultos, à alfabetização, à educação comunitária, muitas vezes com a animação sociocultural. Se pensarmos no pós-25 de Abril, em todas as aldeias e paróquias nasceram associações que normalmente se chamavam ARC (Associação Recreativa Cultural de...) – na margem sul do Rio Tejo, nos concelhos do Barreiro, Seixal, Montijo e Almada, há uma grande tradição de associativismo, que, de alguma forma, é educação social.
Tradição ligada aos movimentos operários…
Muito ligada aos movimentos operários. E não tinham apenas futebol; tinham jornal, animação, dança, escola de música. Portanto, de alguma forma, eram o centro social e cultural da comunidade que trabalhava fora da escola. O grande problema sempre foi – e é – a Escola demasiado desligada destas coisas, a que foi chamando atividades não curriculares, atividades extracurriculares… E isto remete para outra ideia muito interessante, que é a mediação. O expoente máximo da mediação intercultural é a mediação comunitária, e não é ao acaso que as escolas se foram juntando em agrupamentos, com críticas positivas e negativas, e os territórios escolares foram aparecendo como expressão – em vez de escola, território escolar. E depois a emergência de programas/projetos educativos com base nos problemas dos territórios educativos…
O território é uma realidade mais local, mais social…
Exatamente. E, portanto, não aquela ideia do currículo nacional, igual para todos; ou uma parte igual para todos, mas depois a escola ligada ao rio Liz, aqui em Leiria, porque não?, à poluição e a outras coisas…
Ao desenvolvimento social…
Também... Mas atenção, hoje, se falarmos com alguns professores, e as pessoas que estão na gestão têm esse discurso bem mais elaborado do que eu, falam de território educativo, de projeto educativo... Mas falta dizer uma coisa – é que o projeto educativo ganhou moda nas escolas. É a dimensão social que a Pedagogia Social defende, digo eu; é a própria Pedagogia Social dentro da escola, mas meio subalternizada, porque a gente sabe que aquilo é uma moda e que, às vezes, é copy-paste: muda-se a data, o ano, o número de alunos… Desculpem, colegas (muitos diretores vão ler isto), mas às vezes é mesmo assim... A gente tem ‘N’ alunos e ‘N’ edifícios, inputs e outputs, e vamos eleger para este ano, ou para três ou quatro, a promoção do desenvolvimento local através, sei lá, do encontro de gerações... Uma coisa bonita, mas a gente sabe que – salvo raras exceções, de escolas com projetos fantásticos, que as há – isto é uma moda para inglês ver.
Um faz-de-conta…
O que estou a dizer é que é preciso ir muito mais longe. Esse projeto que já não se chama projeto escolar, mas projeto educativo, que pretende envolver famílias e a comunidade, precisa ser pensado de uma forma comunitária, ou seja, desenhado não apenas pelo agrupamento escolar, mas sentando à mesa os grandes atores sociais da região, ou do município, sentar à mesa os autarcas, os diretores de escola, o Ensino Superior, as associações culturais, o hospital, os transportes... Isto chama-se mediação comunitária. E criar um outro projeto, supraescolar, que é um projeto comunitário, de Educação Social. Há experiências interessantes sobre isto. A Isabel Baptista [diretora da PÁGINA] esteve ligada a projetos muito interessantes no âmbito deste tipo de redes…
Pelo menos na Trofa… [Trofa Comunidade de Aprendentes]
Na Trofa, é isso! Pelo que a gente ouve, às vezes, as pessoas não estão a perceber, mas isto é muito simples... Eu lembro-me de ter 15 anos, andava num liceu aqui na cidade e queria ir-me embora, para a minha aldeia, que era a 25 quilómetros. Mas eu acabava as aulas às 7 horas e o autocarro já tinha saído e, então, ou ia de boleia ou só no sábado de manhã! E o que é que eu fiz, com outro colega? Putos de 15 anos, começámos a falar com as pessoas que iam para outras terras – “e se a camioneta fosse às 7h30?” – e descobrimos que toda a gente ganharia em ir meia hora mais tarde... Fizemos um requerimento, o horário da camioneta mudou e ainda hoje se mantém igual…
Voltando ao projeto educativo… Parece estar muito desvalorizado, ao ponto de não ser cumprido em algumas escolas, ou mesmo de não existir… Depois há planos anuais de atividades, planos curriculares, planos de melhoria, planos de ação estratégica…
É só ilhas! Um projeto educativo devia ser aglutinador disso tudo, mas sobrecarregam-nos com pequenas coisas, ilhas que nunca chegam a fazer um arquipélago... O que eu estou a dizer é que, além desse projeto educativo, devia haver um projeto socioeducativo, onde os vários problemas da comunidade fossem pensados com a escola, com as autarquias, com a comunidade. Nesse sentido, sim, era uma gestão democrática e um pensar em diálogo, e não apenas o vereador que chega e diz isto e aquilo. Porque, muitas vezes, nesses tais territórios está tudo muito desagregado e a mim cheira-me – não sei se há quem já tenha feito esta história – que a passagem das escolas a agrupamentos, a território educativo, está muito inspirada num modelo americano, inglês e por último francês, que veio dar origem ao programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP). É um tema que vem dos anos 80 e que é interessante por causa dos bairros com imigrantes. Em escolas ditas mais problemáticas, que os franceses chamaram ZEP (Zone d’Éducation Prioritaire), colocaram especialistas de mediação, de pedagogia social, a trabalhar com os professores em equipas multidisciplinares. Em Portugal, está em curso a terceira geração TEIP e era suposto que, se chegam a essas escolas mais verbas, fossem empregues no trabalho de mediação com a comunidade e, eventualmente, para contratar pessoas do trabalho social. Porque uma criança que vai para a sala de aula não cai lá de paraquedas e muitas vezes leva para a escola problemas sociais da família. E o professor, por muito boa vontade que tenha, não consegue conhecer todos os meninos a ponto de conhecer as suas famílias. Volto a dizer que há professores fantásticos, mas este trabalho de relação Escola-Família-Comunidade é muita coisa para uma pessoa só, para um professor só.
Daí a necessidade de uma equipa de técnicos, e não apenas de psicólogos?
Exatamente. Aliás, a legislação que criou os Serviços de Psicologia e Orientação [Decreto-Lei no 190, de 17 de maio de 1991], quando trata a composição da equipa técnica, refere também docentes habilitados com cursos de especialização adequados – ‘especialistas de apoio educativo’ (1º e 2º ciclos) e ‘conselheiros de orientação’ (3º Ciclo e Secundário) – e técnicos de serviço social. O nome é muito claro, Psicologia e Orientação; se fosse hoje, provavelmente, podia ser Pedagogia Social ou Orientação Social. Nós psicologizamos muito a formação de professores e o trabalho nas escolas: se o aluno é normal, eu trabalho com ele porque sou professor; se não é normal, preciso de um psicólogo na escola; com um aluno-padrão, eu trabalho com ele; os outros, eh pá, arranjem-me alguém para tratar deles... Quer dizer, isto nunca foi pensado a sério, que é pensar em professores, em grupos de docência menos carenciados e dar-lhes formação e especialização para que acompanhem as crianças no pátio, façam trabalho de mediação sociopedagógica, vão às famílias... Porque o professor não pode ir para casa das famílias; o espaço dele é a sala de aulas…
O professor não pode ser mediador?
Vou já responder. Só para salientar que, portanto, o decreto que ‘produziu’ o psicólogo – que já está afirmado – é o mesmo que fala dos técnicos de serviço social (DL 190/91). E, felizmente, vão aparecendo alguns, aqui e acolá... Mas só nos TEIP! E o que eu defendo é que a escola é tão complexa, hoje, que não é só nos TEIP que precisamos de outros técnicos sociais a trabalhar com os professores. A educação escolar tem de ser pensada em rede com associações, instituições, grupos, etc., e o professor não pode fazer a mediação, a comunicação ou a ligação com isso tudo. Voltando à pergunta... Se formos ao computador pesquisar ‘mediação’, aparece em primeiro lugar a mediação de conflitos, e depois, mediação familiar (quem fica com a casa, o carro, os filhos...), mediação imobiliária, mediação de seguros... Mas não é dessa mediação, que nasceu na escola de Harvard, ligada aos negócios, ao mundo laboral e à resolução de conflitos, que estamos a falar. Eu sei que na escola também há conflitos e que, às vezes, o professor também é mediador desses conflitos. Portanto, a mediação de conflitos é importante, mas, antes de resolver conflitos, a Escola existe para Educar e para arranjar formas de convivência, como diz Isabel Baptista. A Escola tem de promover a convivência e, neste sentido, há espaço para, em alguns territórios, não ter só psicólogo, mas também outros técnicos, que podem ser mediadores sociopedagógicos ou socioculturais. Mas têm de ter formação na área.
Ou seja, se um agrupamento quiser contratar um mediador e um educador social…
As escolas têm de pensar no seu projeto de acordo com as suas dificuldades. Por exemplo, há escolas que constituíram gabinetes de apoio ao aluno e à família (GAAF), que podem afetar um professor ou dois, reduzindo-lhes o trabalho, e juntar o psicólogo, que tem uma dimensão mais clínica, mais ligada a determinadas patologias, e que também trata de problemas depressivos. E depois haver um mediador ou dois, que podem ser assistentes sociais, ou educadores sociais, ou animadores sociais – têm é de ter preparação em mediação sociocultural, intercultural, que não passe só pela resolução de conflitos, mas, também, por competências de escuta ativa, de entendimento do outro, de construção de lugares de entendimento, de pontes e travessias entre culturas, de prevenção, de empoderamento e autonomização, de transformação…
Portanto, a mediação não tem a ver apenas com diferenças de raça, de cultura, de religião…
Não, não! Com todas as diferenças. É que quando se fala da diversidade na escola, muitas vezes, ela é vista como deficiência. O problema é esse, nós estamos a dizer que ser diferente não é ser deficiente, só que as diversidades são tantas: imigrantes é uma coisa; etnias é outra; desigualdades sociais, outra; estilos cognitivos, outra; ser canhoto, outra; ser homossexual é outra... E a Escola, hoje, ao ser obrigatória para todos, tem de tudo lá dentro. Mesmo o próprio discurso acusa a fragmentação, que não deve existir na educação global; a escola e a família, a escola e a comunidade, a escola e a sociedade... Mas então a escola não é sociedade? Os bombeiros não são sociedade? A banda filarmónica não é sociedade? Nós estamos formatados neste discurso de ‘cada macaco no seu galho’ e precisamos de aprender a trabalhar em rede, uma prática alimentada por uma pedagogia que não é apenas escolar, mas também social – aprender a viver juntos, que é um dos quatro pilares da educação explorados no relatório «Educação, um tesouro a descobrir», coordenado por Jacques Delors para a UNESCO [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura].
Um relatório do fim do século passado (1996) que perspetivava a educação para o século XXI.
Outra coisa estrondosa! Estamos no século XXI há 16 anos e já ninguém fala desse relatório... Falam de crescimento, crescimento, mas ninguém fala de desenvolvimento, ninguém fala desses quatro pilares: aprender a conhecer, uma pessoa tem que ter teoria; aprender a fazer com o conhecimento; aprender a viver juntos com os outros; aprender a ser é levantar o braço e discordar até do professor, se for preciso. Estes são os quatro pilares que a UNESCO definiu para a educação no século XXI, que estão cheios de princípios da Pedagogia Social e da Educação Social, porque falam da Pedagogia da Convivência, de que fala também Isabel Baptista, entre outros. Ou seja, em termos de discurso, os sistemas educativos foram-se abrindo à educação global e, portanto, à inclusão da Educação Social, que nasceu paralela à Escola, porque a Escola não ligava nada à vida e tínhamos uma vida na escola e uma escola da vida distintas. Mas falta-nos dar passos grandes para que a teoria explícita nos regulamentos e na lei não fique a milhas da realidade. E muitas vezes o que se diz está muito longe daquilo que se faz.
Na prática, falta levar a Educação Social para dentro da Escola.
Exatamente. E levar a Educação Social para a Escola é transformar a Escola. Portanto, se toda a educação é social e se a Educação Social deve estar na Escola, a Escola tem que ter educadores sociais. E alguns professores podem ser educadores sociais, tirar especializações... Não podemos é pensar a escola apenas em blocos de não sei quantos minutos e em mandar os meninos para casa com uns quilos de trabalho escolar. Depois nem há educação social, nem familiar, porque não há tempo. É só escolinha, como eu digo, no pior sentido da palavra.
Em tudo isto, qual deve ser o papel dos professores?
Como é sabido, hoje em dia tende-se a que o professor não seja um ‘encher de cabeças’, tende-se a motivar a criança a partir dos seus interesses. E isso também é mediação, porque o professor está a construir uma forma de ela aprender; em vez de lhe impor uma fórmula matemática, leva-a a descobrir o teorema de Pitágoras. Neste sentido, o professor já não é transmissor, é um mediador de aprendizagens que leva o aluno a construir pontes entre a novidade e a sua base cultural, o seu saber, o seu conhecimento. Agora, é um mediador social? Também diagnostica algumas coisas, mas depois, se o agrupamento não tiver uma equipa multidisciplinar, onde haja mediadores, entre os quais educadores sociais, muito dificilmente vejo a educação a ser global, para todos, inclusiva, identificada com o território social.
Que opinião tem sobre os agrupamentos?
Aquilo foi só um trabalho matemático, de excel... Dá a sensação de que quem os idealizou tem uma filosofia e, depois, quem os materializou trabalhou com régua e esquadro. As escolas estão distantes e as pessoas não se assumem como fazendo parte do mesmo território educativo. As pessoas não fazem coisas em que não acreditam, e se não acreditam no seu projeto educativo, não se envolvem, dão as suas aulinhas e vão-se embora. É preciso uma grande dose de paixão, mas os professores vão-se desapaixonando, porque lhes vão retirando o tapete aqui e acolá e lhes vão pedindo ainda mais coisas…
Embora nos discursos se perceba que a mediação deve ser libertadora e empoderadora, em determinadas circunstâncias não pode funcionar como normalizadora e reguladora?
Pode... Vou dar um exemplo concreto para esta questão, que é muito interessante. A nossa escola é membro fundador de uma rede nacional, que se chama Rede Ensino Superior e Mediação Intercultural (RESMI), onde estão representados basicamente todos os politécnicos e universidades portuguesas. A rede é feita com o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), que, há tempos, apareceu a sugerir mudar o nome da rede, por estratégias políticas europeias, para Rede Ensino Superior para a Mediação e Integração. Eu disse logo ‘não contem comigo para essa missa, porque isto é contraditório. Nós andamos a falar de uma escola inclusiva e a inclusão não é igual à integração, senão dizíamos escola integradora, e a escola integradora é a escola formatadora – limar as arestas dos meninos todos e corrigir os meninos todos para entrarem no sistema’. Ora bem, claro que os meninos têm de se transformar, mas a escola também, para não ser apenas para alguns. Para responder à pergunta, a mediação intercultural implica a flexibilidade de quem recebe e de quem chega, sejam imigrantes, sejam os refugiados sírios, ou quaisquer outros, e busca encontrar um terceiro lugar e construir terceiras pessoas; como num casal, tem de haver concessões das duas partes. Portanto, a mediação é uma ferramenta para que não haja engano das populações e não seja sempre a voz autoritária da cultura hegemónica e do professor a dizer que é inclusivo, mas está a formatar para serem todos iguais... Na sua grande utopia, a mediação é uma filosofia e uma prática construtora de terceiros lugares entre posições que, por vezes, são muito fundamentalistas. É uma espécie de tradução, de comunicação e negociação, com as famílias, com as comunidades. A família não vai à escola? Então vai a montanha a Maomé… Mas para isso, para poder intervir de forma dialógica e mediadora, a escola tem de ter recursos (o mediador), tem de ir lá a casa e compreender... E quanto mais eu compreendo quem é aquela criança, provavelmente, deixarei de dizer ‘lá vem ele outra vez, este gajo chega sempre atrasado’…
(Trans)formações é uma expressão recorrente nos textos que o Ricardo Vieira e a Ana Maria Vieira habitualmente escrevem para a PÁGINA. O realce da partícula (trans) destaca a necessidade de a formação provocar transformação?
Essa é a grande ideia. Nós não acreditamos na mudança por decreto. As mudanças são feitas pelos atores e os atores têm de ser chamados à discussão, e não impor-lhes um projeto educativo ou seja o que for. Isto aplica-se a professores, enfermeiros, médicos, a qualquer profissão – se a pessoa não é chamada ao diálogo, se não se sente parte da coisa, ela vai ser uma fingidora. Amanhã vem o inspetor e eu vou fingir que tenho um grande projeto educativo, que é para ser bem avaliado. Mas depois ele vai-se embora e eu vou fazer como sempre fazia... Sou um fingidor! A mudança só acontece quando há, efetivamente, uma formação que implica não a acumulação de conhecimentos, mas uma transformação de si. Eu, como pessoa, tenho de refletir quem sou como pai, como filho ou quando estou a ter formação, etc., e tenho de estar aberto à mudança. Aliás, se a escola não transforma os alunos, não vale a pena lá ir; se só enche cabeças, não vale a pena lá ir. Se a gente vai a uma conferência e vem igual, perdemos o tempo; se, ao contrário, nem que seja só uma coisita me fez pensar, se me fez pensar, transformou-me. Portanto, do meu ponto de vista, só é verdadeiramente formativo aquilo que transforma.
Sendo aconselhável que a transformação seja continuada…
“Já não sou eu, mas outro que mal acaba de começar”, escreveu Samuel Beckett. Efetivamente, nós temos de entender a formação de cada um de nós como um processo, não é dizer já me formei há 30 anos... A formação é mesmo ao longo da vida para qualquer um de nós; ao longo da vida, há momentos absolutamente marcantes na nossa maneira de ver o mundo, que nos transformam e, portanto, são momentos-chave formativos. A formação tem de ser transformação da imagem que temos de nós, que temos da escola, do mundo, da vida social... Se assim não for, é um encher cabeças e, como dizia [Michel de] Montaigne, a encher cabeças e acumular conhecimentos não se mudam as estruturas. Claro que as mudanças não se fazem todas de repente; é com grande convicção que se vai fazendo dia a dia, uma conquista aqui, uma conquista ali, e essa conquista materializa-se na transformação que se faz dos outros. Agora, se não nos premeiam como professores... Há professores que eram brilhantes e foram para a reforma desencantados, ou não há?
Isso também tem a ver com a imagem social da profissão e com a própria identidade profissional docente, que está um bocado…
Está pelas ruas da amargura, mesmo. Eu não sei, não tenho explicação para isso, porque é muito fácil a gente dizer uma coisa qualquer e não ser real. Provavelmente, tivemos brilhantes professores que não fizeram formação de professores – às vezes dizia-se ‘o tipo era matemático, ou engenheiro, como é que ele pode ser professor?’ Eu não vejo as coisas assim. Eu como entendo a formação na escola e para além da escola, prefiro falar de educação escolar e não escolar do que falar de educação formal e não formal, porque se formos à vida militar, aquilo é altamente formal, bate-se a pala e tudo... Provavelmente, a educação escolar nem é a mais formal de todas. Só porque tem sumários? Então não há famílias altamente formais, com toda a gente a comer de colher e a não falar à mesa? A educação familiar é outra educação social que pode ser informal ou muito formal... Portanto, isto não é educação formal na escola e educação não formal fora da escola. Desde os anos ‘70 que se critica isso, no entanto, todos resvalamos de vez em quando nestes conceitos. Então, desse ponto de vista, também o formalismo exagerado da escola levou, às vezes, alguns de nós a criticar: olha, aquele é engenheiro, mas não teve formação de professor! Como é que ele pode dar aulas? Eu é que tirei um curso de formação de professores. Às vezes, cai-se no exagero, porque a pedagogia é um ato humano de mediação onde não há só saber científico; há uma forma de ser e estar e de comunicar com os outros que é fundamental, não só nos professores, mas também noutras profissões sociais.
A questão da empatia…
Exatamente, a dimensão da empatia. E eu tenho algumas dúvidas se a empatia, e a forma de comunicação intercultural, por exemplo, se ensina e aprende na escola. Algumas pessoas, provavelmente, vão aprendendo cedo a empatia, porque vivem uma educação social que fomenta isso e isso vai ser fundamental para que um sujeito seja bom professor de matemática, porque se lembra de como aprendeu uma coisa que era difícil – olha, quando eu era rapaz também tinha essa tua dificuldade... Entra no mundo do aluno e explica-lhe o algoritmo. Portanto, também é demasiado formalista dizer que só pode ser bom professor quem fez uma determinada cadeira de Ciências da Educação… Bom... De facto, o sistema foi colocando nas escolas, com profissionalização e com outros cursos, pessoas que teoricamente eram de outras profissões. Não podemos responsabilizar essas pessoas pelo abaixamento do estatuto dos professores. Por outro lado, agora temos a formação de professores em escolas superiores de educação, universidades, etc., e eu tenho assistido a algumas práticas e também não me parece que estes sejam os melhores professores do mundo… Teoricamente, tiveram tudo, as disciplinas todas, mas falta ali qualquer coisa…
Habilidade individual para a relação pedagógica?… Perceção do aluno como pessoa em desenvolvimento?… Reconhecimento da dimensão política do ato educativo?…
Essa dimensão humana, que é da pedagogia social, do trato interpessoal… Normalmente, a escolarização é isso, a alunização do indivíduo. Mas é preciso vê-lo como pessoa, justamente. Defendi isso na minha tese de doutoramento, que foi publicada na Afrontamento em ’99 [«Histórias de Vida e Identidades - Professores e interculturalidade»].
Foi com esse livro que venceu o Prémio Rui Grácio, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação?
Foi, em 2000. Eu estudei várias histórias de vida de professores do 1º, do 2º e do 3º ciclos e o que encontrei de comum, depois de ouvir os alunos dizerem quais eram os seus professores de que gostaram mais, e que depois entrevistei, é que, nas suas vidas, esses professores mais amados se tinham envolvido com associações, tinham trabalho social para além da escola, nem que fosse um ‘hobby’ – são histórias de vida carregadas de exemplos de lidar com diversidades várias. Isso foi uma pedagogia social que os disponibilizou; a escola da vida é muito formadora para as profissões que implicam relações interpessoais e, quando foram para o curso de professores, eles já tinham começado, sem saber, a aprender a ser professores. E quem diz professores, diz relações públicas, ou um tipo aberto à comunicação. Que é fundamental, porque o professor tem de ser um comunicador. Agora, em 3+2 anos, um tipo vai formar um professor se ele não tem nada dessa dimensão de comunicação, de relação interpessoal, de empatia?... Podemos dar-lhe 20 disciplinas de psicologia, sociologia, antropologia… Pouco muda, é a minha convicção.
Também há quem fale de vocação, sacerdócio, missão…
Pois... Mas isso é muito religioso. Se nós virmos a vocação como uma construção... Essa habilidade é ou não é construída? Esse é que é o problema – e eu não acredito nos genes da habilidade para falar. Há uma pedagogia social que marca, que nos leva para determinado modelo, e a gente entende aquilo como a normalidade, não tem nome para aquilo. Qual pedagogia social, qual educação social? A gente está a viver a vida. Aliás, em relação às associações, eu tinha 15 anos quando fundei uma associação. E para que é que isso serviu? Para viver a democracia, porque a democracia não se ensina só com palavras na escola, tem que se vivenciar. Portanto, a gente pode ir falando dos princípios, mas depois pode pôr os alunos, o diretor de turma ou o delegado de turma a assumirem-se como protagonistas…
No fundo, é instituir e naturalizar essas práticas…
É incorporar na escola o dia a dia, e não separá-lo com barreiras. É levar a vida para dentro da escola.
António Baldaia (entrevista)
Ana Alvim (fotografia)
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