A mediação sociocultural e intercultural é passível de usar não só na gestão e na dimensão paliativa dos conflitos, mas também a montante, antecipando-os, evitando-os e criando um ambiente de respeito pelos outros e pelo próprio, de cosmopolitismo para uma sociedade inclusiva.
Se os modelos da prevenção e da resolução são aplicáveis a diversas áreas e contextos, tal como na medicina (preventiva e curativa), a verdade é que quase sempre é no ‘fim da linha’ que se pensa quando se fala de cuidados médicos: o médico é esperado para curar, para resolver. Também relativamente aos domínios da mediação, quase sempre vem ao de cima a dimensão resolutiva de conflitos. É um nome recorrente nos livros, na busca nos motores da internet, etc., como se, primeiro, fosse possível resolver todos os conflitos; segundo, a vida não fosse, diariamente, feita na interação entre diferentes, pessoas, grupos, pontos de vista, etc., havendo concordâncias e identificações, mas também discordâncias, originando pequenas e grandes tensões que nem sempre terminam, necessariamente, em conflito. Entre a paz e o conflito – os dois extremos desse olhar moderno, mas também simples, porque dualista – há processos, muitos processos, tudo o que fica entre os extremos. Por isso, preferimos falar de gestão de conflitos, pois eles não acabam propriamente. Por isso, enfatizamos e procuramos alertar para uma transformação de olhares e de discursos sempre que se fala de mediação. Por isso, alertamos para a necessidade de um olhar e de uma intervenção social atentos a todos os processos de interação, sejam os que ocorrem nos contextos familiares, escolares, comunitários, laborais, jurídicos ou outros, durante e antes do conflito propriamente dito.
O trabalhador social. O educador social ou o assistente social, quando trabalham com idosos, com toxicodependentes ou com ex-reclusos que pretendem ressocializar, reeducar, que pretendem ajudar a construir um projeto para que não voltem a cair no mesmo contexto problemático, têm de trabalhar com o ‘outro’. Nesse sentido, têm de usar uma prática mediadora entre sujeitos e culturas. A intervenção social, seja mais preventiva ou mais resolutiva, pode, e deve, sempre que possível, ter uma prática alimentada pela mediação, quer dizer, pela comunicação, pela negociação e não pela imposição de um único modelo e de uma única filosofia de vida. Neste sentido, referimo-nos à mediação enquanto área e conjunto de competências transversais a várias profissões, como uma filosofia hermenêutica, comunicação interpessoal e intercultural, como tradução sistemática de interesses das partes numa interação e por vontade dos implicados. Na mediação entre diferentes valores culturais, o trabalhador social emerge como um mediador entre os grupos sociais e as mais diversas instituições públicas e privadas, apoiando-se numa hermenêutica multitópica (diatópica no dizer de Boaventura Sousa Santos), com vista à concretização dos direitos e dos interesses dos grupos e sujeitos em causa na interação. A finalidade do processo de mediação é buscar a autonomia desses grupos e pessoas (empowerment).
O papel da mediação. A expressão “resolução de conflitos” reporta-nos, muitas vezes, ao conceito de eliminação dos conflitos. Já a expressão “gestão de conflitos” não pretende acabar com os conflitos (coisa impossível), mas resolvê-los. Aqui, a mediação é vista apenas como uma técnica, uma ferramenta utilizada nas relações interpessoais com problemas complexos. Na realidade, na mediação combina-se uma atitude cultural com um manejo de técnicas. Ao trabalhar com as diversidades, isto é, com outras identidades e alteridades, e ao procurar formas de ajuda à emancipação, a mediação tem vindo a desenvolver-se e a especializar-se, em vários domínios, desde as Ciências Jurídicas, à Gestão, Intervenção Social, Antropologia, Psicologia, Sociologia e a temas transversais à Educação. Assiste-se, assim, ainda que lentamente, à transformação da ideia hegemónica em que a mediação surge sempre ligada a conflitos para resolver. O papel transformador e humanizador da mediação deverá passar da simples instância do processo judicial, ou de uma alternativa ao mesmo, para vir a ocupar um lugar central de uma nova cultura universal. Sabemos que se trata de um debate já iniciado, mas ainda muito aberto, também. Entendemos que a mediação tem uma autonomia própria para além da resolução de problemas. A mediação sociocultural e intercultural é passível de usar em vários contextos, como vimos, não só na gestão e na dimensão paliativa dos conflitos, mas, também, a montante dos conflitos, antecipando-os, evitando-os e criando um ambiente de respeito pelos outros e por si próprio; um ambiente de cosmopolitismo para uma sociedade inclusiva.
Ana Vieira
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