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1º de Maio, Gorz... Pensamentos híbridos

A existência individual não é integralmente socializável. “Compreende regiões essencialmente secretas, íntimas, imediatas e não mediatizáveis, que escapam a qualquer possibilidade de apropriação comum. Não há socialização possível da ternura, do amor, da criação e do prazer (ou do êxtase) estéticos, do sofrimento, do luto, da angústia”.

Passou mais um 1º de Maio Não sei se é por causa da crise (e da maldição do capitalismo) que interseta a vida e reduz horizontes e futuros possíveis (pessoais e coletivos); se foi a grande indignação pelo desprezo das lutas e memórias dos trabalhadores, ou a mais imediata indignação de ver supermercados abertos, cujos patrões já não disfarçam a dominação nem o desrespeito pelos direitos (“Desejo a todos, a cada um de vós, que tenham o vosso motivo de indignação”, escreve Stéphane Hessel); se foi a nostalgia pequeno-burguesa induzida pelo barulho persistente da chuva misturado com o ruído do computador; se foi a cerimónia simples e emotiva do adeus a um cidadão interventivo e combativo que nos deixou na véspera do 25 de Abril (a quem muitos, de muitos lados políticos, reconheceram a compatibilidade entre a crítica e a ternura)...
A verdade é que voltei (como volto ciclicamente) a lembrar-me de André Gorz. Um dos mais importantes pensadores da crítica social do século XX, como o caracterizou Christophe Fourel, é para mim um autor marcante desde que, no início dos anos 80, comprei o ensaio sobre o «Adeus ao Proletariado» cujo tema central é a liberdade do tempo e a abolição do trabalho.
Tudo ao contrário do que fiz, neste 1º de Maio, enredado em livros e papéis, misturando Sociologia com Matemática, envolto em contradições que, com alguma raiva disfarçada, me fazem adiar outros projetos (pequenos, mas significativos), que continuo a desejar ser eu a autodeterminar.
A propósito desta vontade, num dos pequenos-grandes livros que escreveu no exílio, o professor que mais me marcou na minha vida, Horácio González, escreve na sua apresentação: Durante muitos anos, talvez mais do que os necessários, foi professor da Universidade de Buenos Aires, na área de Teoria Social. Todavia, não foi por decisão própria que se interromperam esses serviços. Agora no Brasil, colabora no Leia Livros, leciona na Escola de Sociologia e Política de São Paulo e defende provisoriamente uma tese: a de que qualquer interrupção de seus serviços possa ser, desta vez, decidida por ele mesmo.
Mas voltemos a André Gorz. Autor avesso a ortodoxias (como o Horácio), o 1o de Maio fez-me recordá-lo não apenas pelas suas instigantes reflexões sobre o trabalho, como também pelo facto de ser um homem combativo e profundamente crítico, que não esquecia a ternura e o amor (cujas referências, aliás, surgem sempre nos momentos mais inesperados nos seus textos). Antes de decidir, livre e autonomamente, partir junto com a sua companheira de sempre (“Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca”), escreveu o pequeno livro «Carta a D. História de Amor» onde revê serenamente uma parte da sua biografia e deixa um testemunho de um intelectual crítico, comprometido e lúcido, que nos faz pensar em tudo o que está para além do trabalho...
Neste breve revisitar de Gorz, e depois de ter participado no colóquio internacional sobre a crise da(s) socialização(ões), que decorreu recentemente na Universidade do Minho, encontro nesta passagem de «Adeus ao Proletariado», na tradução brasileira da Forense-Universitária, de 1983, algo profundamente inspirador: Contrariamente ao que pensava Marx, é impossível que o indivíduo coincida totalmente com seu ser social e que o ser social integre todas as dimensões da existência individual. Esta não é integralmente socializável. Compreende regiões essencialmente secretas, íntimas, imediatas e não mediatizáveis, que escapam a qualquer possibilidade de apropriação comum. Não há socialização possível da ternura, do amor, da criação e do prazer (ou do êxtase) estéticos, do sofrimento, do luto, da angústia...
E vem-me “à memória uma frase batida” (do Sérgio) e logo a seguir o Zeca (“Maio. Maduro Maio. Quem te pintou. Quem te quebrou o encanto. Nunca te amou”). E continuo a trabalhar... Em maio!

Almerindo Janela Afonso


  
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