Não é novidade, mas todos os dias surgem novos veículos de estímulos, que convidam a uma nova relação com os objectos de comunicação. Nisto, na virtualidade dos objectos e na complexidade das mensagens de que são portadores, estamos numa idade das trevas, para a maioria dos cidadãos.
É legítimo interrogarmo-nos acerca de que competências a Escola cuida, sobretudo quando se trata da nossa língua materna. Fica uma sensação de que perpetuamos, com um maior requinte de fúteis exigências, a eterna saudação da leitura e da escrita, instrumentos bastantes numa medíocre inserção social. As virtudes do domínio adulto e interveniente da argumentação, nos vários palcos da vida cívica, soçobram perante as tentações da demagogia de segunda classe, sem que se perceba quais os interlocutores que enfermam da maior asneira, se os incapazes de darem o exemplo da maioridade que reivindicam para si no exercício dos poderes, entre os quais o político, se a plateia turvada na sua incompetência para ler nos lábios da trapaça e ouvir dos intermediários a soldo, esses que pululam nos media à procura de um cantinho para o ganha pão. E também está em causa a clareza de ideias, e a forma como elas podem e devem ser veiculadas. Mas acontece que, agarradas a um certo miserabilismo das palavras feitas por medida apenas para convencer e provar o indefensável, as matronas dos nossos palcos de bairro usam da mesma linguagem que fede a peixe (do mal amanhado, que me perdoem as peixeiras), e só lhes cabe a inteligência suficiente para premiar os vendedores de ilusões com um desdém, desses fora do tempo e que não destituem nenhuma ditadura da ignorância. E mandam os filhos para a escola para aprenderem a ler e escrever, e um dia porem justiça num mundo que nem em crianças os deixa exprimir a opinião, nem pela mão das famílias que investem em saberes esgotados à conta do erário público e que só aconselham a obedecer ao destino, esse fantasma de costas largas que nos rouba a dignidade desde há muito. Isto tudo para concluir, por enquanto, que a literacia como expoente de uma linguagem clara e honesta, no sentido dessa verdade que exprime convicções em nome do bem comum, é uma atitude no nosso mundo que pode valer mais que muita erudição. Mas dela se exige o bom exercício das regras por que passa o discurso escrito e falado, e nem dessas temos bom exemplo. A expressão da memória, a realização literária, a exposição das ideias, a interpelação a que somos chamados no quotidiano, a confrontação com os problemas, o convencimento dos auditórios, a compreensão das intenções institucionais e dos fenómenos sociais que provocam, tudo passa pela articulação verbal que deve ser espelho de um pensamento lúcido e organizado. Com lugar para a imaginação e a criatividade, mas sem o jugo dessa ambiguidade e dessa falta de coerência que não ajudam na compreensão do lado mais provável da razão. A linguagem é uma forma da própria liberdade, é-lhe intrínseca, como é uma probabilidade de nos aliviarmos da solidão, de nos libertarmos das culpas e de perpetuarmos o presente em toda a sua extensão para história futura. Toda a utilidade social da língua materna se consolida quando aplicada às diversas disciplinas do conhecimento, e a literacia não se confina já ao exercício escolar das competências da expressão e da interpretação vocabulares. Não é novidade, mas todos os dias surgem novos veículos de estímulos, que convidam a uma nova relação com os objectos de comunicação. Nisto, na virtualidade dos objectos e na complexidade das mensagens de que são portadores, estamos numa idade das trevas, para a maioria dos cidadãos. Custa dizer, mas é a verdade nua a crua. E a Escola insiste em dirigir a sua atenção para a perpetuação de um modelo de civilização que se esgotou, criando expectativas que morrem no dia seguinte à aprovação formal nas matérias, alargando o fosso entre o saber e as oportunidades de vida. O derradeiro reduto da emancipação dos poderes, que se escapam entre as sombras da realidade e ameaçam a nossa condição humana, será o da elevação da linguagem ao patamar das utopias, sem a exclusão social nem a ratificação da escravatura que anónimas nos incluem nas hostes dos reprodutores de palavras. São as letras que nos dão respostas e nos permitem dizer.
Luís Vendeirinho
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