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MIRA: um projeto de arte, vivo e com alma

Rua de MIRAflor, MIRA fotográfica, MIRAr o futuro com olhos de esperança. Assim é este projeto, que nasceu pelas mãos de Manuela Matos Monteiro e João Lafuente: ela, antiga professora, ele, antigo informático, ambos fotógrafos. Galeria MIRA Fórum, Espaço MIRA e MIRA | Artes Performativas são espaços situados em Campanhã (Porto), corpos vivos e com alma dedicados à Arte.

Depois de 38 anos a dar aulas, Matos Monteiro e o marido, João Lafuente, deram asas ao que sonhavam há muito: abrir um espaço dedicado à fotografia. Ambos contam com um percurso fotográfico, do analógico ao digital, que se manifesta em exposições individuais e coletivas, e foram fazendo economias ao longo da vida para a concretização da ideia. “Sempre achámos que um dia, quando já estivéssemos mais libertos das nossas atividades profissionais, gostaríamos de desenvolver um lugar que tivesse como centro a fotografia”, começou por contar à PÁGINA a antiga professora, com formação em Filosofia e Psicologia, que sempre gostou de desenvolver projetos – na escola e na vida.

O encontro com os antigos armazéns de retém da estação de Campanhã deu-se por mero acaso. Os armazéns da Rua de Miraflor estavam abandonados e em ruína e Manuela e João tiveram a visão e a vontade de reconverter o lugar. Inauguraram o MIRA Forum e o Espaço MIRA em 5 de outubro de 2013 – não por ser Dia Mundial dos Professores (é apenas uma coincidência), mas por ser a data de implantação da República, que o Governo de então baniu da lista dos feriados. “Foi uma forma de protesto.” E os nomes dos espaços não enganam, giram à volta de MIRA, “da Rua de Miraflor, mas também da mira fotográfica e do sentido de projeção, de futuro, de visão, de missão”.

Nasceram, então, o MIRA Forum e o Espaço MIRA, o primeiro focado especialmente na fotografia, na sua expressão mais comum, o segundo dedicado à arte contemporânea. No MIRA Forum, os criadores do projeto são os responsáveis pela programação, embora convidem muitas vezes curadores externos. “Consideramos que é um bem a diversidade de perspetivas, a diversidade de visões, a diversidade de modos de fazer.” No Espaço MIRA, a direção artística está a cargo de José Maia. “O espaço é fantástico porque é camaleónico. Muda a exposição e parece que estamos noutro lugar. A programação é intensa e valorizam-se todas as expressões de arte contemporânea. De algum modo, a fotografia está sempre presente. Digamos que aqui será um espaço expandido da fotografia, das ligações com as várias expressões; mas não é uma galeria de fotografia, é uma galeria de arte contemporânea”, frisou Manuela Monteiro.

Já este ano, o projeto alargou-se a mais um espaço, o MIRA | Artes Performativas, na vizinha Rua Padre António Vieira – uma cork box com autonomia própria, mas que conta também com mostras ligadas aos dois primeiros espaços. A inauguração foi também numa data importante para a história de todos, de 24 para 25 de abril. “Considerámos que deveríamos inaugurar num dia que também fosse simbólico, porque o 25 de Abril foi uma coisa extraordinária que aconteceu na vida das pessoas que viveram a ditadura”, contou Manuela Monteiro. Uma sessão de poesia dedicada à liberdade marcou a abertura e depois todos foram fazer a festa para a Avenida dos Aliados.

Os números provam a vitalidade destes espaços. No total, as galerias já acolheram, até novembro passado, 108 exposições – desde jovens a artistas consagrados –, 82 conversas, 69 performances, 35 lançamentos de livros, 34 concertos e dez sessões de cinema. “As pessoas reconhecem este lugar como um lugar que envolve públicos muito diversos. E este é um dos grandes valores deste espaço. Temos um público mais vocacionado para a arte contemporânea e outro mais transversal, vocacionado para a fotografia, e estes públicos cruzam-se. Como temos muitas atividades, e muito diversas, os eventos têm sempre muita gente. E para nós é uma alegria muito grande, porque é gente que vem a Campanhã.”

Mais do que comboios

Campanhã é a zona ‘esquecida’ da cidade, a zona da estação de comboios, lugar de encontros e despedidas, onde as pessoas vão e vêm, mas não ficam. Manuela e João sabiam disso, mas este armazéns da zona oriental, abandonados e com mais de 100 anos de história, ficaram-lhes na retina. Eram “extraordinários”. No início, “as pessoas acharam que estávamos completamente tontos por vir para aqui: porque aqui não se passa nada, porque aqui não é um sítio para as artes, etc.”, mas o edificado, o instinto e as ligações de infância e adolescência dos dois galeristas, ou ativistas sociais, ali ancoradas ajudou à concretização da ideia.

“Como professora, tinha essa dimensão extremamente importante do enquadramento social – perceber o papel social do professor e o papel que o professor pode ter especialmente para estratos mais desfavorecidos. Foi um pouco trazer para aqui aquilo que é a nossa conceção do mundo. E então considerámos que era precisamente aqui que fazia todo o sentido estarmos”, contou Manuela Matos Monteiro. Ir para a Baixa, onde seriam apenas “mais uma” galeria, estava fora de hipótese, além de que também não iria chamar a atenção para este lugar da cidade, “que efetivamente foi votado ao total abandono”.

Os responsáveis consideram que a aposta está ganha. Se antes achavam que fazia todo o sentido estarem ali, passados quatro anos não têm dúvidas. As pessoas (re)descobriram a Rua de Miraflor e as galerias deram vida ao lugar. E a relação com a vizinhança é muito boa. “Temos uma relação muito próxima com os vizinhos, que nos aceitam, que nos integram, com quem fazemos o São João e construímos a cascata no pátio. As galerias abrem-se à vizinhança – começam por vir ver a cascata e depois olham as fotografias e acham que isto é bonito. A nossa relação com eles foi uma relação cautelosa, no sentido de respeitarmos os ritmos da comunidade”, explicou a galerista.

Segundo ela, a comunidade ficou de imediato satisfeita, uma vez que os armazéns arruinados, e que levavam má frequência à rua, foram reabilitados. Todos gostaram da intervenção e depois “passaram a gostar porque isto passou a ter um movimento que não tinha”. A rua é, muitas vezes, uma extensão do MIRA e o MIRA espalha-se pelo lugar, frequentando outros espaços que o compõem, como a adega do lado. “Há uma interação muito forte com a comunidade, e esse é um valor maior. Neste momento fazemos mesmo parte dela, de tal maneira que vamos viver aqui.”

“Este é o nosso sítio”

Enquanto professora, Manuela tinha a preocupação de valorizar o que os alunos tinham de positivo; “sem perder o espírito crítico”, claro, mas sempre apontando o que tinham de bom. “A gestão das autoestimas é a coisa mais importante que há”, referiu, reconhecendo que acabou por transferir inconscientemente essa atitude para o espaço onde se encontra. Quando se instalaram em Campanhã, acabaram por ter uma visibilidade que não teriam se fossem para a Baixa, lembrou a galerista. “Na Baixa éramos mais um, aqui somos os únicos.” E quando a Rua de Miraflor foi motivo de notícia na televisão, a reação da vizinhança foi positiva. “As pessoas aqui diziam assim: ‘ah, agora sim, já não falam de nós só por causa da droga, por sermos pobres, que somos excluídos; agora falam de nós por causa das artes’. Isto é, aumentou a autoestima.”

A Rua de Miraflor “é uma rua pequena e estreita, mas populosa”. E mais importante do que o contributo cultural especializado, a responsável considera que “o património maior é a forma como este lugar permitiu que, de alguma maneira, a comunidade se reconhecesse como um valor; não um valor que nós acrescentámos à comunidade, mas o reconhecimento de que ela tem valor”. Manuela lembrou, por isso, que um dos galardões “maiores da vida” que já recebeu foi o Diploma de Mérito Cultural atribuído pela Junta de Freguesia de Campanhã. “Estamos no sítio certo. Este é o nosso sítio. Não é Nova Iorque ou Londres. É Miraflor!”

Manuela Matos Monteiro não esperava que o projeto atingisse a atual dimensão. “Isto foi crescendo à medida daquilo que nos ia aparecendo”. A palavra-chave, em qualquer área da sua vida, é “disponibilidade”, a abertura para as possibilidades. E para o futuro, a galerista quer continuar a fazer o que faz e mais ainda, dependendo da realidade que a rodeia. “Temos que estar abertos, disponíveis para o mundo. Temos de estar abertos às inovações tecnológicas, mas também às realidades políticas, económicas e sociais.”

O MIRA é, assim, “um corpo vivo” e com valores inabaláveis, com “vontade de que a sociedade cada vez seja mais igualitária, que a riqueza produzida seja cada vez mais bem distribuída, que o acesso à educação seja cada vez mais efetivo, que haja condições para que cada pessoa possa desenvolver o seu potencial”. O MIRA vive da personalidade do lugar e os seus criadores valorizam-no. “Este lugar marca-nos profundamente. Portanto, nós somos o MIRA em Miraflor-Campanhã-Porto. Absolutamente. Sem trocar por lugar nenhum.”

 

ORA DIGA LÁ… MANUELA MATOS MONTEIRO – sobre educação

“Comecei a dar aulas com 21 anos, ainda estava no terceiro ano do curso. Acho que podia ter sido muitas outras coisas, mas foi uma profissão de que gostei imenso. Foi mesmo uma vocação e senti-me sempre muito realizada.”

“Sou testemunha da imensa evolução que houve desde 1971, quando comecei a dar aulas na Escola Técnica de Famalicão. Éramos contratadas pelo diretor; era uma questão de simpatia fundamentalmente. Lembro-me que, na altura, dava 28 horas de aulas e o ordenado que eu recebia com seis horas extraordinárias mal dava para pagar a renda da casa, a água, a luz e os transportes. Era extremamente mal pago. Lembro-me que ficávamos em fila junto a um pequeno gabinete à beira da secretaria e o nosso ordenado era dado num envelope em dinheiro. As turmas tinham 35/40 alunos, e era uma pobreza brutal: tínhamos alunos que desmaiavam com fome, que iam sem agasalhos, uma coisa de uma violência brutal.”

“A memória é fundamental para fazermos julgamentos à escala. Não é para sermos tolerantes com coisas que não estão bem, mas para não nos lamentarmos com situações sem saber de onde partimos. Foram 38 anos de aulas e a evolução da qualidade de ensino, das condições dos professores e, sobretudo, das condições dos alunos, é um outro mundo. Nem há critérios de comparação. Devemos ter essa memória presente para avaliarmos o que temos hoje; não partir de um el dorado qualquer, mas de onde partimos e o que é que foi feito durante estes mais de 40 anos, que são a herança do 25 de Abril, quer se queira quer não.”

“Fui sempre muito sensível na minha profissão, e antes de mais nada à situação dos alunos. Quer dizer, o futuro é dos alunos! Nós somos os mediadores entre o saber e os próprios alunos. E a esperança de um aluno há 40 anos poder ir para a universidade… Quer dizer, eles nem punham isso como meta, porque era impossível.”

Ser professora

“O grande segredo na educação está na capacidade que nós temos de mobilizar e de motivar os alunos. O professor tem uma importância decisiva. Os programas são importantes, os livros são importantes e a lógica das escolas é importante. Mas o professor é central, e se estiver empenhado e motivado, se estiver disposto também a deslumbrar-se, dão-se milagres. Eu acredito em milagres. Nesses.”

“Lembro-me de que às vezes podia estar muito aborrecida, mas entrava numa aula e acabava. Quase diria que era terapêutico. E apesar de todas as limitações e convencionalismos, continuo a considerar que é uma das profissões com mais áreas de liberdade. Sabemos isso, por exemplo, quando se tem um cônjuge que trabalha das nove às cinco, que tem uma hierarquia com ligação direta quotidiana com a pessoa. O professor a cada hora está a mudar de público e tem, de facto, muita autonomia. Autonomia na forma de fazer. Dentro da minha turma, eu estou com aquele material humano; estou sozinha ali. Isso dá uma enorme responsabilidade, mas também dá uma enorme liberdade. Aliás, responsabilidade e liberdade estão sempre ligadas. Dentro dos limites da razoabilidade, tenho ali um potencial muito grande de liberdade.”

“Nunca quis cargos diretivos. Só estive uma vez na direção da escola, quando houve o 25 de Abril. Estava na Soares dos Reis, o diretor foi destituído e, então, nomeámos uma comissão diretiva – só estive uns meses, e em situação de emergência. O que fui foi coordenadora dos diretores de turma, que acho que é uma peça central nas escolas. Tínhamos uma formação muito dirigida aos professores, para definirmos, por exemplo, logo no início do ano, quais as atitudes que todos deveríamos tomar perante uma dada situação – para haver uma coerência, porque muitas vezes as pessoas queixam-se dos alunos e das turmas, mas a cada hora eles têm um professor a prescrever bons e maus comportamentos diferentes. Isto dá uma confusão enorme... Temos de partir de um comportamento que todos nós aceitamos e que depois passa a ser um guião. Acho que, às vezes, este compromisso entre professores, alunos e famílias falta muito nas escolas.”

Trabalhar projetos

“Há uma coisa que para mim é central, e que de alguma maneira percebo agora que está ligada a esta realidade que eu vivo, que é uma necessidade que sempre tive de desenvolver projetos nas escolas. O professor tem um guião, que é o programa, que depois vai aplicar de acordo com a sua formação ou o seu jeito. Além dessa componente, de que gostei sempre muito, gostava do desenvolvimento de projetos. Mesmo antes das pedagogias mais ativas que apareceram, através da Área Escola e de Projeto, estava sempre a desenvolver projetos com os alunos, para além das aulas. Aprendia imenso com eles, achava que me traziam uma realidade que a mera gestão do programa não me permitia. E como professora achei sempre que também tinha de aprender.”

“Fui uma militante da Área Escola, uma componente transversal do currículo, em que os alunos de todos os níveis de ensino tinham de desenvolver um projeto interdisciplinar. Corri o país a fazer formação de professores. Queria partilhar com os meus colegas as virtualidades e o potencial da Área Escola. Levava a comunidade para dentro da escola e valorizava os pais menos escolarizados como um recurso. Tínhamos pais que não tinham licenciaturas, mas que tinham um saber; nós pegávamos naquele recurso e era ver a alegria dos filhos quando viam que os pais eram valorizados pela escola e o que nós aprendíamos com eles.”

“Quando acabou a Área Escola, foi um luto. Acho que foi a grande revolução – foi ideia de Roberto Carneiro, com o qual não tenho nenhuma identificação de caráter ideológico, mas, com a reforma educativa, ele percebeu a importância deste projeto transversal, que ainda por cima punha os professores a trabalharem uns com os outros, sem ser apenas nos conselhos de turma, a avaliar os alunos. E aprendíamos imenso uns com os outros, porque estávamos a desenvolver um tema e todas as disciplinas se entroncavam.”

“Depois apareceu a Área de Projeto, no 12º ano. Foi outra inovação extraordinária, que mexia com as escolas, com os professores e com os alunos. Da minha história enquanto professora, se há coisa que tenho a lamentar, mais do que as questões de ordem profissional, foi não se ter percebido a importância desta componente de desenvolvimento de projetos transversais, pela ligação da escola com a comunidade, pela ligação entre os professores, pela valorização dos alunos com um estatuto social menos promovido. Se me perguntar que mágoas guardo, guardo essa.”

Aposentação

“Uma das questões que me preocupava, especialmente a partir de certa idade, era o que eu ia fazer com os meus 20 anos de esperança de vida depois de estar reformada. Tive, desde muito cedo, o sentimento de que tinha que ter um projeto para esses 20 anos, porque gozar a vida não é um plano de vida, é um plano complicado de entediação e a antecâmara de uma eventual depressão. Então, a construção do projeto MIRA está também muito ligada a essa ideia.”

“A reforma tem custos que as pessoas muitas vezes não avaliam. Perde-se uma rede social, uma rede de interação entre pares. Depois, os momentos de lazer são ótimos como pausa no trabalho, mas o lazer virado ocupação é um problema, porque temos a expectativa de que nos dê o prazer que dava quando acontecia nos intervalos de trabalho. Portanto, começamos a ficar numa situação de entediamento. Desde os seis anos que temos um horário, que temos de nos levantar da cama quer chova quer faça sol. Temos toda uma vida, desde os seis anos aos 65, parametrizada por horários e por constrangimentos sociais. Quando a pessoa sai desse ritmo e se encara com a sua liberdade, muitas vezes surgem buracos difíceis de preencher. Muitas vezes, por exemplo, começam a aparecer conflitos que não existiam.”

“É importante planear uma vida ativa, socialmente empenhada e que não seja só quando apetece, isto é, ter obrigações. Porque fomos educados para ter constrangimentos, para ter controles.”

“Tenho uma conceção, que vem da Psicologia, de que o envelhecimento intelectual resulta da falta de desafios. Se eu não começo a exigir nada ao meu cérebro, eu vou afunilando. Mas isto não é uma fatalidade biológica, isto tem muito a ver com o que eu faço, e traz-nos uma responsabilidade incrível. Eu não estou condenada a definhar inexoravelmente e o meu cérebro a ficar tipo ameixa seca; tenho é de continuar a desafiá-lo, para que responda aos desafios. Por isso, estabeleci como objetivo, quando me reformasse, ter uma vida ativa, com obrigações, com metas e exigente.”

Maria João Leite (reportagem)
Ana Alvim (fotografia)


  
Ficha do Artigo

 
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