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Olhares sobre a profissão

Partilhar experiências, pontos de vista, testemunhos; no fundo, ouvir educadores e professores sobre o seu percurso e a forma como olham a profissão. Este foi o ponto de partida para uma conversa em torno da condição docente, promovida pel’A Página da Educação, que juntou docentes de diferentes gerações em torno de uma mesa – mais redonda no seu ideal do que na forma física. Ana Luísa Xavier, Filomena Tavares, João Paulo Silva, Margarida Barbieri, Margarida Campos, Paulo Gaspar e a direção da PÁGINA – Isabel Baptista, que moderou as intervenções, Ana Brito Jorge e António Baldaia – foram os intervenientes no encontro. E como ‘as conversas são como as cerejas’, mais tempo houvesse e mais a partilha se estenderia. Porque, apesar das inquietações, esta é uma profissão que coloca brilho nos olhos de quem a exerce. E a prova foi a paixão com que todos falaram do seu caminho e do que o envolve. Os temas abordados – formação, autonomia profissional, condições de trabalho, lideranças, solidariedade entre pares, esperança e o futuro da condição docente – serviram de mote a posteriores conversas com os investigadores e formadores Américo Peres (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro), José Antonio Caride (Universidade de Santiago de Compostela) e Xosé Manuel Cid Fernández (Universidade de Vigo) e com o jurista Rui Assis (advogado do Sindicato dos Professores do Norte). Tudo nas páginas seguintes.

Nem tudo são rosas, claro. Há preocupações evidentes, e conhecidas, que é preciso ter em conta. Uma das inquietações passa pelo envelhecimento dos corpos docentes e pela necessidade de renovação. “Os professores mais novos são pessoas com 40 anos, e isso está a mudar a natureza do trabalho nas escolas. Tive a sorte de aprender com gente muito boa e era suposto que agora houvesse gente mais nova a aprender connosco. Mas não há. E essa é uma questão que está a preocupar-me”, afirmou João Paulo Silva, professor de Matemática (43 anos). Questão que também preocupa Margarida Barbieri, educadora de infância, que alertou: “Neste momento, é grave o que se passa na Educação Pré-Escolar. Eu estou em Gaia há dois anos e a média de idades no concelho acho que é superior aos 50 anos.”

Por outro lado, tem havido mudanças nos cargos diretivos, onde as mulheres estão cada vez mais presentes. E se, por vezes, é difícil conciliar a vida pessoal e profissional, há quem consiga aceitar e levar a cabo o desafio. “Cada vez vejo mais mulheres nas reuniões plenárias, mais mulheres diretoras. Por enquanto, não mais do que os homens, mas cada vez em maior número. Isso significa que, realmente, há uma assunção de responsabilidades nisto de gerir uma coisa que nos diz respeito, que é a escola. Apraz-me ver que consigo já ter num plenário de diretores muitas mulheres, com convicções, com visões, com vontade de fazer diferente e com uma resiliência muito grande. Porque, como mulheres, nós somos sempre muito resistentes”, frisou Ana Luísa Xavier, professora do 1º Ciclo do Ensino Básico (1oCEB) e, atualmente, diretora de um agrupamento de escolas.

Um cenário bem diferente do que se vivia antes. Margarida Campos, professora aposentada, que começou a dar aulas em 1964, lembrou que umas das razões por que só entrou em estágio aos 30 anos de idade, tendo começado a trabalhar aos 22 anos, foi porque, “nessa altura, havia quadros masculinos e femininos; os homens podiam concorrer aos quadros masculinos e femininos, enquanto as mulheres não”. Quando entrou nos quadros, dois anos antes da revolução de Abril, “já tinha desaparecido a tremenda discricionariedade que levava a que um homem com 10 valores passasse à frente de uma mulher”, independentemente da nota que ela tivesse.

Pedras no caminho

Praticamente todos, entraram na profissão com a convicção de que iriam mudar o mundo. Noutros tempos, “em que todos os entusiasmos eram legítimos”, como destacou Filomena Tavares, professora do 1ºCEB, havia portas de esperança que estavam abertas, e que hoje parecem estar um pouco encostadas. As dificuldades que se impõem no caminho da educação são muitas. Entre elas, o tempo roubado pela burocracia. “Quase não temos direito a ter o nosso tempo, porque o nosso tempo é completamente baralhado com o que a escola nos exige e, de alguma forma, com a nossa incapacidade de dizer não”, disse Filomena Tavares.

A falta de autonomia para decidir, por exemplo, o que se deve dar, ou não, do programa é também um problema, segundo João Paulo Silva. “Isto tem desgastado muita gente, que se sente pressionada e às vezes espezinhada por um excesso de normativos. E esta mudança permanente é, talvez, a maior dificuldade que nós temos sentido.” É importante, por isso, valorizar a autonomia profissional. Na troca de ideias sobre o currículo, Filomena Tavares lembrou a sua importância. “Podemos estar em desacordo com o conjunto dos conteúdos exigidos a cada ano, mas penso que o currículo – e um currículo que uniformize – é um documento essencial e um instrumento de trabalho de grande importância para um sistema educativo que queremos que seja para todos e que garanta qualidade a todos.” Mas olhar para o currículo como uma “bíblia”, é uma “regressão”, sobretudo porque os professores o veem “não valorizando os lados do ser, do construir e do aprender”, mas o de “somar conhecimento”.

Ana Luísa Xavier é a favor de um currículo uniforme, mas contra a “escravatura” do currículo. “Sou a favor de um currículo base comum, mas, se uma criança tem apetência para as artes, para a dança, para a música, também sou a favor de que não lhe pode ser cortada essa possibilidade só porque estamos todos preocupados com o exame de Matemática e de Português do 9o ano. Porque aí, se calhar, cortamos a hipótese de ter um belíssimo artista e uma pessoa motivada.” Paulo Gaspar considera que “os professores vivem obcecados com o programa”, pelo que, se fosse ministro, este diretor de agrupamento acabaria com os exames, proporcionando aos professores, no fundo, mais liberdade para “fazerem as suas opções e participarem em projetos”.

Reavivar o espírito colaborativo

De uma forma geral, todos os participantes na conversa consideram que é necessário manter, ou reavivar, o espírito de colaboração e solidariedade entre pares. Trabalhar em equipa pode ser fundamental no exercício da profissão, ajudando a ultrapassar os obstáculos que se vão intrometendo no caminho. Mas a forma como o ser humano é hoje em sociedade – mesmo que seja esta a impor os seus valores – reflete-se também na escola. “Costumo dizer que o fascismo foi embora, mas deixou o ‘ismo’ do egoísmo, do individualismo, de uma série de situações que fazem com que diga que, profissionalmente, os professores até são bons, mas depois, em termos humanos, estão muito preocupados com as suas vidas, pouco colaborativos, pouco interativos e a precisar de muita dinamização”, sublinhou Paulo Gaspar, acrescentando que, no seu entender, os valores da sociedade de hoje “não contribuem muito para a questão do trabalho colaborativo”.

João Paulo Silva, por seu lado, considerou que o caminho tem de ser feito pelo coletivo. “A verdade é que nestes últimos anos, de 2005 para cá, com todas as malfeitorias que nos têm feito, houve momentos em que os professores responderam. E quando responderam conseguiram alguma coisa. Não conseguem é fazer isso tantas vezes quantas as desejáveis. Mas quando conseguem, é sempre em coletivo”, concluiu.

 

Ana Luísa Xavier (professora do 1ºCEB, diretora de agrupamento de escolas): “Continuo a achar que a educação é o bastião de qualquer sociedade e sou muito otimista em relação ao futuro. E também continuo a dizer que os professores estão cansados com legitimidade, porque lhes é exigido um ajustamento constante, com orientações díspares e diferentes.”

Filomena Tavares (professora do 1ºCEB): “Saíamos do Magistério com a convicção de que estava nas nossas mãos mudar o mundo e que o íamos mudar, custasse o que custasse. E foi com este espírito que iniciei a profissão em 1980. Claro que poucos anos depois percebi o que era limitarem-nos o entusiasmo; depois acho que nos ‘normalizaram’. Mas esse processo de normalização, talvez também por razões ideológicas, nunca me fez perder o sonho inicial de mudar o mundo e da importância dos professores na construção daqueles meninos que nos chegam ao colo. E creio que é isso que ainda me mantém hoje na profissão – essa consciência, legítima ou não, de que o nosso papel é essencial e insubstituível.” 

João Paulo Silva (professor do 2º/3ºCEB): “Eu quero que os meninos e as meninas da escola pública aprendam; não quero que a escola seja só um sítio para passar o tempo. Eu quero que eles saibam, que tenham conhecimento. Nesse sentido, a existência de um programa parece- me importante. Será que em São Pedro da Cova temos de ensinar da mesma maneira que se ensina na Afurada? Não sei... Será que eles têm de aprender a mesma coisa? Também não sei... Agora, que tem de haver um tronco comum, acho que sim. E que os meninos da Foz, de São Pedro da Cova, da Afurada ou do Almeida Garrett, em Gaia, têm todos o mesmo direito de poder aprender.”

Margarida Barbieri (educadora de infância): “Para mim, a questão das lideranças é fundamental. Não só pelo apoio que podem dar, mas, sobretudo, pela colaboração dinâmica que podem promover.”

Margarida Campos (professora do Ensino Secundário, aposentada): “Entrei e saí da profissão com a convicção absoluta de que nada me podia ter realizado tanto, apesar de coisas duras que havia. A diferença – e eu acho que é grande – é que o ‘presente’ era muito duro, mas a gente acreditava que o futuro ia ser diferente. E agora, se calhar, essa esperança parece menos possível.”

Paulo Gaspar (professor do 1ºCEB, diretor de agrupamento de escolas): “O professor tem de ser um projetista, no sentido de ter esperança na construção de uma sociedade que assente, basicamente, no humanismo e na solidariedade, que é importante. Eu sou um apaixonado pela educação. Mas há um cansaço muito evidente dos professores, em termos de motivação face aos líderes que tivemos, que nunca os motivaram.”

 

Isabel Baptista (professora do Ensino Superior, diretora da PÁGINA): “Conciliar a vida pessoal e profissional, ainda hoje, é uma dificuldade muito presente para as mulheres. Não é fácil.”

Ana Brito Jorge (professora do Ensino Secundário, aposentada, diretora adjunta da PÁGINA): “Destaco a importância do trabalho cooperativo ou colaborativo. Tudo o que, às vezes, nos custa e nos dói, até no exercício do dia a dia, o que nos preocupa, o que vemos que está a correr mal, é mais fácil em equipa. Muitas vezes, quando nos juntamos em grupo e procuramos soluções, encontramos propostas. Depois, é uma coisa boa sermos capazes de esboçar a dita proposta e fazê-la seguir. Fazer ouvir a voz dá algum alento.”

António Baldaia (professor do 1ºCEB, editor da PÁGINA): “Penso que falta aos professores assumirem a dimensão política da Escola e refletirem criticamente sobre o poder e a autonomia da profissão. Lembro-me muitas vezes de Sérgio Niza dizer, numa entrevista à PÁGINA, que os professores «não se habituaram a discutir o seu próprio poder, que é desmesurado e perigoso. E com ele podiam fazer coisas imensas», a favor deles, mas também dos outros. O problema é que o coletivo parece cada vez mais distante de lá chegar.”

Maria João Leite (reportagem)
Ana Alvim (fotografia)


  
Ficha do Artigo

 
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