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Projeto N.O.M.E.S.: A importância de manter viva a memória

O projeto existe desde 2008 e todos os anos, desde então, os alunos do Agrupamento de Escolas de Vilela, em Paredes, têm oportunidade de explorar um pouco mais o tema do Holocausto, sempre com perspetivas diferentes. Trata-se do projeto “Nomes e Olhares para a Memória e o Ensino da Shoá” e a PÁGINA foi à sua descoberta.

 

Depois de três professoras da escola terem feito, em 2008, uma formação sobre o ensino e a memória do Holocausto, no Yad Vashem (memorial que pretende recordar todas as vítimas judaicas do Holocausto), em Jerusalém, o desafio foi lançado: fazer projetos para dar continuidade na escola a tudo o que tinham aprendido. Sandra Costa, professora de História, foi uma das docentes que aceitou o desafio e que o leva avante, ainda hoje.

As sessões de formação para professores sobre este tema sensível são agora mais frequentes, mas em 2008 eram uma novidade. Havia, então, que implementar o projeto na escola. Primeiro, Sandra Costa e Sandra Carvalho lançaram o desafio na Área de Projeto, às turmas de 12º ano – que o aceitaram por dois anos consecutivos. Mas, entretanto, aquela área foi extinta e o projeto passou a ser extracurricular e a ser frequentado ao longo de um ano apenas por quem demonstre vontade de explorar o assunto.

Sandra Costa é a coordenadora do projeto e a única das três professoras que fizeram a formação que se mantém no agrupamento, cuja direção apoia incondicionalmente o projeto. E mantém-no, gerindo horários, os seus e os dos alunos interessados. É que se uns, mais novos, querem explorar a matéria da II Guerra Mundial que se dá nas aulas de História, outros há que já nem sequer têm a disciplina, por estarem noutros ramos, como Ciências, mas também querem continuar a trabalhar o tema. Ao longo do ano, sempre que possível, existe interação com os outros alunos (por exemplo, com a realização de um ciclo de cinema), com professores e com outras disciplinas. “O símbolo que usamos, o logótipo do projeto, foi Prova de Aptidão Profissional de uma aluna de Design Gráfico, há cerca de três anos”, exemplifica Sandra Costa.

O projeto já teve muitas vertentes. E, anualmente, é necessário trabalhar uma nova perspetiva sobre o assunto, para que não perca o interesse. “Tentamos seguir a filosofia do Yad Vashem, que é, através das histórias pessoais de vítimas, de perpetradores, de pessoas que salvaram judeus, através dessas histórias individuais, dar nomes aos números. A perspetiva de que, se calhar, conseguimos perceber melhor o que foi o Holocausto se percebermos como é que nos pode afetar em termos individuais.”

E já foi feita muita coisa neste projeto, como exposições com material recolhido ou adquirido e outras elaboradas pelos próprios alunos. “Três grandes exposições tiveram formato físico com reconstituições: na primeira, os alunos reconstituíram a história de seis vítimas, sempre com a perspetiva do contacto com familiares ou alguém que tivesse conhecido a pessoa que estava a ser retratada para se obter a maior quantidade possível de informação, de objetos, etc. Depois, na perspetiva de judeus que se salvaram: foram sete histórias de judeus que conseguiram escapar ao Holocausto, porque a sua vida em algum momento passou por Portugal. Finalmente, na sequência do livro de Patrícia Carvalho [«Portugueses nos Campos de Concentração Nazis»], falámos da perspetiva dos portugueses que foram deportados para campos de concentração.”

 

Trabalho de historiador

Maria Santos, Diogo Almeida e Marta Alves, todos com 15 anos e a finalizar o 10o ano, foram três dos alunos que integraram o projeto no ano passado. A perspetiva foi, então, falar dos portugueses deportados para os campos de concentração, fosse por uma questão de religião ou por pertencerem à Resistência.

Analisado o livro de Patrícia Carvalho, jornalista do Público, os alunos começaram por criar uma base de dados, juntando nomes e as informações do livro. Mas o grupo quis ir mais além e começou a explorar por conta própria algumas histórias que apareciam na obra: Richard Lopes, Michael Fresco e Maria d’Azevedo foram as vidas procuradas, respetivamente, pelos três alunos.

Escreveram para o Museu do Holocausto, dos Estados Unidos, e para os campos de concentração, pesquisaram em arquivos franceses, tentaram obter informações nas juntas de freguesia em Portugal e procuraram contactar familiares. “Tentámos encontrar um familiar, pelo menos, de cada português, para podermos perceber melhor a sua história e para ter mais documentos que não obtínhamos através do livro da Patrícia Carvalho”, explica Marta. Até que chegaram a pesquisar no Facebook, onde encontraram a bisneta de Maria D’Azevedo e uma neta de Richard Lopes, que também estava em pesquisa à procura do seu pai.

Foi com este “trabalho de historiador” que os alunos conseguiram muita informação, documentos oficiais, histórias de família e fotografias, entre outros materiais. O projeto resultou na exposição Deportados Portugueses na II Guerra Mundial. Do Internamento em França aos Campos de Concentração Nazis, apresentada primeiro na escola. Depois, a mostra seguiu para a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde esteve patente durante o colóquio ‘Reflexões Sobre o Holocausto’, em novembro do ano passado. Seguiu-se, em janeiro, a evocação do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, na Assembleia da República, onde os alunos guiaram Ferro Rodrigues e os restantes convidados numa visita. Uma experiência inesquecível, porque apresentaram a exposição “às pessoas importantes do país”, como refere Maria. Marta recorda, também, a presença de alguns familiares e de ter falado com um deles, cujo pai tinha estado num campo de concentração. Momentos emotivos…

O tema é sensível, mas os jovens envolvidos ao longo dos anos neste projeto compreendem a importância de manter viva a memória deste acontecimento histórico. “É uma maneira de as pessoas perceberem o que de facto aconteceu e que pode voltar a acontecer a qualquer momento. Daí devermos ter a noção do que aquilo foi e dos estragos que provocou na vida daquelas pessoas”, sublinha Diogo.

 

O tema não pode ser cansativo

Depois de um ano anterior intenso – “foi um trabalho bastante duro”, como lembra a professora –, neste último ano letivo, o projeto foi um bocadinho mais leve. Sandra Costa lançou o desafio a cerca de 14 alunos, entre os quais novamente a Maria e a Marta, para participarem no concurso “Contar o Holocausto”, promovido pela Direção-Geral da Educação em parceria com a Memoshoá – Associação Memória e Ensino do Holocausto.

Assim, vários grupos escolheram histórias e meios diversos de apresentação. O grupo de Maria decidiu contar, em vídeo, a história de dois netos, cujos avôs passaram pela guerra e seguiram caminhos opostos; o grupo de Marta, inspirado no livro «Os bebés de Auschwitz», de Wendy Holden, decidiu escrever um texto a contar a perspetiva de um bebé ainda no útero da mãe. Mas a escola concorreu com outros trabalhos.

Todos os anos, no final do projeto, o grupo apresenta os seus trabalhos à comunidade. Este ano, isso não aconteceu: como há muito a professora desejava, embora não com a “abrangência” que gostaria, já que nem todos os alunos puderam participar, o ano terminou com uma viagem a Auschwitz, com 35 alunos e professores. Foi uma forma diferente de finalizar o projeto anual, que é sempre pensado de maneira a não ser repetitivo. É necessário, todos os anos, encontrar perspetivas diferentes.

“Numa escola em que um projeto se mantém durante muitos anos, não podemos fazer sempre a mesma coisa, mesmo que se trabalhe com alunos diferentes, já que em termos de amostra para a escola seria praticamente a mesma coisa. E se fizermos o mesmo, o tema cansa. Mesmo sendo tão interessante, não podemos deixar que o tema seja cansativo”, considera Sandra Costa.

Projetos desta natureza e com temas tão sensíveis são importantes para não deixar cair a História no esquecimento e mostrar – sobretudo às gerações mais novas, “já tão distantes da II Guerra Mundial” – que “isto corre o risco de desaparecer da memória”. É que dar esta matéria nas aulas de História é uma coisa, “dar isto na perspetiva de que afeta pessoas reais, de que pode acontecer outra vez” é outra, bem diferente. “Até porque estamos numa época de extremismos…”

 

Poder escolher faz a diferença

Para Sandra Costa, estudar este tema também é importante para o crescimento dos jovens como seres humanos. “Porque mais importante do que ficarem com mais conhecimentos sobre o Holocausto, sobre a guerra, sobre o contexto histórico, etc., é que eles contactam com decisões pessoais, com dilemas. Como é que reagiríamos se estivéssemos na mesma situação? Uma das primeiras coisas que lhes disse sobre isto foi para que não julgassem. Se fossemos educados como na Alemanha nazi, por exemplo, ninguém hoje saberia como iria reagir.” Porque além da educação, havia também a manipulação, a pressão, as ameaças. E o medo.

“O medo paralisa”, atesta Maria, explicando que “o medo de sermos punidos poderia levar-nos a participar naquilo. Não saberíamos se íamos salvar ou se íamos matar”. Por isso, sustenta Sandra Costa, “o importante neste e noutros projetos desta natureza é que os participantes interiorizem que, quando estivermos perante determinadas situações, nós podemos escolher. E podemos escolher fazer o bem ou o mal. Podemos ser limitados nessas escolhas, mas podemos escolher, e quanto mais conhecimento temos sobre as coisas, melhor podemos escolher. Por isso, a importância de projetos que trabalham a memória”, conclui a professora.

Desta experiência, os alunos ficaram a perceber melhor a matéria, “que nem toda a gente era boa, que nem atualmente toda a gente é boa, e que temos de pensar muito bem com quem estamos a lidar”, frisa a Maria. “Praticamente retirei que é preciso ter cuidado em quem confiar, porque muitas vezes podemos pensar que podemos confiar nas pessoas, mas elas podem ser más influências e levar-nos a ter más experiências na vida”, acrescenta o Diogo. Para a Marta, “apesar de termos dado isto nas aulas de História, nunca percebemos realmente aquilo que eles tinham sentido e vivido”.

Sendo “claro” que, mesmo com o projeto, nunca vão sentir realmente o mesmo, “dá para perceber melhor o que eles passaram”. Marta passou a saber melhor o que foi o Holocausto. “É uma lição de vida para acreditarmos que nem tudo o que nós pensamos que vai acontecer pode realmente acontecer, e que num momento tudo pode mudar. E podemos passar de ter tudo a não ter nada.”

 

©Ana Alvim

[A PÁGINA agradece à Pedras e Pêssegos pela cedência de espaço]

 

ORA DIGA LÁ… PATRÍCIA CARVALHO

[Patrícia Carvalho é jornalista do Público e autora do livro «Portugueses nos Campos de Concentração Nazis»]

 

É importante dar nomes, histórias e rostos às coisas

 

Como nasceu «Portugueses nos Campos de Concentração Nazis»?

Nasceu de uma reportagem do Público, que por sua vez nasceu de uma viagem de férias à Polónia. Fui ao campo de Auschwitz-Birkenau, onde existem vários pavilhões em pedra, alguns dedicados a nacionalidades de judeus. E são tantas as nacionalidades que passaram por ali, que eu dei por mim a perguntar: os portugueses estão em todos os cantos do mundo, será que não houve nenhum que tenha sido apanhado nesta questão da guerra? Quando regressei, enviei um email para os serviços do campo e eles responderam-me que tinham o registo, mas de apenas um português, Michael Fresco, que nasceu em Lisboa. Isso não queria dizer que teria sido o único, mas, do que tinha sobrevivido – porque muitos dos arquivos foram destruídos com a saída dos nazis –, esse existia. Noutras férias, fui a França e deparei-me com o campo de Natzweiler-Struthof, e lá voltava a fazer referência à existência de um português, que depois vim a descobrir que nem sequer era português – era um judeu húngaro que forjou a nacionalidade portuguesa. Nessa altura pensei que tinha de olhar para isto a sério. Voltei a questionar Auschwitz e eles apontaram-me o International Tracing Service (ITS). E eles foram fabulosos: não só me disseram que tinham registo de imensos portugueses, como me mandaram digitalizados vários documentos e um convite para lá ir. Propus ao Público, que tem um programa de bolsas para reportagens mais extensas e também financeiramente mais pesadas, e nesse ano foi o projeto escolhido. A direção aceitou a minha proposta e permitiu-me ir passar três dias no ITS, ir à Polónia e a França. Descobri depois que esses portugueses eram só pessoas nascidas em Portugal – portanto, não tem nada a ver com judeus descendentes de portugueses – e acabaram por ser apanhados pela guerra enquanto viviam em França. Eram emigrantes.

E foram apanhados por motivos diferentes…

É engraçado, porque dos nomes que refiro só dois são judeus, todos os outros estão identificados como católicos – provavelmente alguns deles nem teriam religião, mas estão todos identificados como católicos. E depois temos alguns ligados à resistência, temos comunistas e pessoas que foram apanhadas completamente ao acaso, aparentemente sem ligação nenhuma a coisa nenhuma. Mas numa altura em que as pessoas eram presas porque era preciso aquela mão de obra escrava que alimentava a máquina de guerra nazi, elas foram levadas, tal como os seus vizinhos, e acabaram nos campos de concentração.

Conhece, e chegou a colaborar, no projeto N.O.M.E.S, do Agrupamento de Escolas de Vilela. Ficou surpreendida por as escolas usarem o livro nos seus projetos?

Bastante surpreendida. Escrevi o livro numa perspetiva de ele ser lido pelas escolas. Está organizado por capítulos e cada capítulo é a história de uma pessoa, e depois tem associados os campos por onde essa pessoa passou e um bocadinho da história desses campos. Acaba por ser um bocado didático. Recebi convites de várias escolas e acho que nunca recusei nenhuma. E fiquei muito surpreendida com a quantidade de projetos relacionados com os professores que vão ao Yad Vashem estudar e informar-se e que depois desenvolvem projetos nas escolas. Quase todas as escolas onde fui tinham um professor ligado a esse processo. E do que eu vi, de facto, o projeto de Vilela é fabuloso. Fiquei particularmente feliz porque sempre que ia às escolas dizia aos miúdos que há muita coisa ainda por explorar, muitas histórias que eu não descobri. Tenho os dados recolhidos pelos nazis, nalguns casos sei onde nasceram, noutros nem se consegue perceber muito bem por que campos é que passaram, e em algumas situações nem se sabe se sobreviveram ou não. E às escolas onde vou digo sempre para procurarem, para verem se havia algum residente perto, para tentarem perceber o que lhe aconteceu, que quem sabe, com tempo eles não conseguem descobrir coisas que eu não descobri. E os miúdos fizeram isso, de uma forma absolutamente exemplar. Pegaram em algumas histórias que eu já tinha, algumas que não estavam tão desenvolvidas, de que tinha poucos dados, e conseguiram descobrir coisas muito engraçadas e muito interessantes. Se fizesse uma nova versão do livro ia incluir esse trabalho, obviamente com os devidos créditos, que, aliás, os levaram a fazer uma exposição na Assembleia da República. Fiquei mesmo contente. Sempre disse que isto não é um trabalho fechado, longe disso. Gostava que quem pega no livro e o lê tenha o interesse de descobrir alguma coisa. E os miúdos de Vilela fizeram isso.

Que impacto é que um livro deste género pode ter nos jovens? Esta é uma realidade tão distante deles…

Acho que a grande vantagem do livro é encurtar um bocadinho essa distância. Porque uma coisa é chegar a uma aula de História e dizer que houve uma Segunda Guerra Mundial, que morreram milhões de judeus e que isso foi no século passado, há mais de 70 anos... Tudo isso nos parece uma realidade muito longínqua. E, ainda por cima, Portugal não participou na guerra, portanto, aparentemente nem haveria razões para termos prisioneiros lá ou pessoas mortas. Mas, por exemplo, uma criança de Ponte de Lima descobrir que uma senhora chamada Maria, que vivia ali e que, se calhar como algum familiar recente dela, teve de emigrar, e foi presa e que esteve num campo de concentração... Acho que as palavras ganham outra dimensão. O facto de haver rostos, histórias e pessoas próximas ajuda a que aquilo já não seja apenas qualquer coisa que a professora está ali a dizer e que já aconteceu há tanto tempo. Traz-nos para mais perto.

Por isso é importante dar nomes aos números do Holocausto.

É importante dar nomes e histórias. Por exemplo, a história da família Fresco… Aquilo dá uma série, um filme ou um romance. Nós vemos muita ficção sobre a Segunda Guerra Mundial que não tem todas as componentes que eles têm. Quer dizer, são três irmãos que de repente estão ali emigrados. A irmã, que era judia, casa com um fascista italiano; têm um filho e ele ameaça que a manda prender; ela foge com a criança para Paris e ele vai atrás dela; e um deles acaba por morrer... Tudo isto são ingredientes romanescos, digamos assim. E isso aproxima-nos. Já não são só números, já não são só relatos. É sempre importante dar nomes, histórias e rostos às coisas, porque isto não foi assim há tanto tempo. E sobretudo numa altura em que estamos outra vez a falar do ódio pelo ser diferente, da intolerância, dos extremismos… Sempre que vou às escolas, tenho reforçado isso, trazer o tema para o presente, porque acho que é importante. Porque a base acaba por ser a mesma – o ódio e o medo do que é diferente. E a partir daí, generalizar, tomar aquele que é diferente como o inimigo que é preciso abater, que se calhar já nem é humano e já não vale a pena tomarmos conta dele. Estes livros ajudam, sobretudo, a pensar que, afinal, isto não é uma coisa assim tão desligada da nossa realidade.

Maria João Leite (reportagem)


  
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