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Refugiados em Portugal: Em busca de uma vida normal

Vieram da Síria. Atravessaram um mar de medos e angústias, em busca de uma nova vida. Deixaram para trás a casa, os amigos, mas também os destroços da guerra, as ameaças e as inseguranças. Querem recomeçar e ter uma vida normal, querem um futuro pacífico e brilhante para os filhos. A PÁGINA foi conhecer uma família que chegou a Portugal no início do ano e que, através da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), foi acolhida pelo Lar Juvenil dos Carvalhos. Falámos dos medos que ficaram para trás, das angústias e das expetativas para o futuro. E provámos da simpática hospitalidade árabe, bebendo um chá enquanto conversámos. A PÁGINA foi saber, também, como funciona o acolhimento de refugiados e como surgiu a plataforma que nasceu para coordenar e mobilizar vontades. Falámos com Ana Rodrigues sobre a sua experiência no terreno e sobre o abraço que Portugal está a dar a menores não acompanhados. E contamos a experiência de um dos muitos voluntários que decidiram pôr mãos à obra, na Grécia, e ajudar num processo conturbado.

 

 

“A Síria acabou! Não existe mais, está tudo destruído”

 

Yousef (seis anos), Mariam (nove), Othman (13), Omar (16), Abed Alrahmar (17) e Mohammad (18) são os mais jovens elementos da família de Jaber Ahmad Mohi e Hanaa Mohaimed, acolhida pelo Lar Juvenil dos Carvalhos. A família chegou em janeiro, mas todos eles já estão na escola e começaram a fazer amigos. As aulas estão a correr bem, segundo Mariam, que gosta da escola, dos colegas e dos professores, e até já fala um pouco de Português, embora seja de Matemática que mais gosta. Está ainda no 3º ano, mas já sabe o que quer ser quando for grande: “médica”, como o pai.

Jaber é o pai destas seis crianças e jovens que vieram para Portugal e de três outros filhos, que ficaram espalhados pela Síria, Alemanha e Turquia. Gastrenterologista, era diretor de um hospital em Deir ez-Zor, na zona este da Síria, perto da fronteira com o Iraque. Aos 55 anos, chegou cheio de expectativas, mesmo depois de ter visto a sua vida virar-se do avesso.

 

“Nós recusamos tudo o que eles fazem”

A família saiu da Síria há cerca de um ano e meio, “por causa da guerra, das bombas, da destruição; porque o Daesh tomou tudo na nossa cidade”. O mesmo grupo já o tinha abordado e ameaçado. “Eles queriam matar-me. Disseram-me que tinha traído o povo e que ou ficava a trabalhar com eles ou matavam-me”, conta Jaber, que decidiu pegar na família e fugir para a Turquia, onde ficou quatro meses. Em pouco tempo, estava a refazer a vida, mas soube que o Daesh tinha enviado alguém para o encontrar e decidiu partir novamente, dessa vez para a Grécia. Fazer parte do grupo terrorista não estava nos seus planos. “Nós recusamos tudo o que eles fazem”, sublinha.

Não consegue conter as lágrimas quando partilha a realidade da Síria. “Um grande problema”, que a maioria desconhece, pois nem tudo passa na televisão. “A Síria acabou! Não existe mais Síria, porque está tudo destruído. Nós deixámos a Síria há pouco mais de um ano, nós vimos tudo. É uma grande guerra, mas não entre sírios. A verdade é maior do que aquilo que se ouve na televisão. Há uma força maior a fazer a guerra, para ficar com o petróleo, com o dinheiro... Esta guerra não é entre sírios; esta guerra é para tomar toda a Síria.”

E foi para fugir a tudo isto que Jaber e a família atravessaram o Mar Egeu, num barco de borracha, em direção à Grécia. Através do programa de recolocação chegaram a Portugal – uma escolha que também tinha sido a sua, por considerar o país seguro. Não nos conhecia, mas leu muito sobre o país, sobre as pessoas, a situação política… “Nós procurávamos segurança, apenas um lugar seguro para viver, e fizemos uma longa viagem entre a Turquia e a Grécia. Quando aqui chegámos vimos um lugar muito bom e pessoas muito boas. Vemos nos olhos delas, sentimos que as pessoas aqui gostam de nós, gostam dos refugiados e não os recusam como outros países”, salienta.

 

“Deixem-me trabalhar e ajudem-me a começar uma nova vida”

A vida era muito boa na Síria. Jaber tinha dinheiro e viajava com a família – chegou mesmo a vir à Europa, mais concretamente a Itália. Por isso, já estava a par dos modos europeus. “Não houve nenhum choque. Tínhamos uma ideia sobre os países europeus. O problema era a segurança. Nós queríamos um lugar seguro para a minha família.” E Portugal é o lugar que procuravam para começar de novo.

Quando chegaram, todos os filhos foram para a escola e Jaber e a esposa começaram a estudar português em casa. O Lar Juvenil dos Carvalhos “recebeu-nos e ajudou-nos muito; deu-nos tudo o que queríamos para que recomeçássemos bem”. Jaber quer continuar a ser médico, agora em Portugal. Os documentos já foram traduzidos e tudo estava pronto para iniciar este longo processo. Mas se já se imaginava que ia ser demorado, entretanto, estranham-se as dificuldades: Jaber tem pela frente exames de Língua Portuguesa e em oito áreas de Medicina, um estágio e uma monografia… Exigências que está disposto a cumprir, embora não imaginasse um processo tão complicado. Sente ter sido “recusado com um sorriso”. E apela: “Eu gosto de Portugal e adoro toda a gente aqui. Sinto-me bem aqui com a família. Espero ser uma mais-valia. Deixem-me trabalhar e ajudem-me a começar uma nova vida.”

Trabalhou numa clínica e num hospital público durante cerca de vinte anos, chegando a ser diretor de um hospital. Refere ter feito um jornal clínico, onde reunia projetos internacionais, traduzindo-os, para que todos os colegas sírios pudessem ler essa partilha de experiências. “Penso que fiz coisas boas na minha cidade e para o meu povo e para a minha família. Eu desejo fazer coisas boas, mas preciso e quero começar.” Jaber não esconde a vontade de trabalhar. Precisa disso. E o longo processo causa-lhe angústia e uma sensação de vazio. “Ficar em casa, depois de tantos anos a trabalhar, é um grande problema...”

 

Acima de tudo, a família sente-se feliz aqui

Jaber vai todas as sextas-feiras à mesquita, rezar com um dos filhos. Diz sentir-se muito confortável, aqui, com a sua religião. “Em Portugal há mais de 80% de pessoas católicas. Isso é uma coisa boa para nós. Porque os verdadeiros muçulmanos gostam dos cristãos, porque há apenas um Deus. E penso que os cristãos gostam dos muçulmanos. Os muçulmanos não podem causar nenhum problema para ninguém, porque o nosso Deus disse-nos para sermos bons para o mundo, para evitar qualquer problema, qualquer ódio”, explica, lembrando que os terroristas odeiam os muçulmanos, os cristãos, e que matam todos os que conhecem Deus. “Os muçulmanos, tal como os cristãos, amam o mundo inteiro, porque é o mesmo Deus.”

Hanaa usa um lenço na cabeça, quando passa a porta de casa. Em casa só cobre o cabelo se receberem algum convidado masculino. Quando sai à rua, não sente nenhum problema relativamente aos seus costumes, ao contrário do que aconteceu na Grécia, onde chegou a ouvir críticas ao uso do lenço. Aqui não sentiu o preconceito. Embora a família não conheça a vizinhança, já se cruzaram com pessoas no supermercado. “Já falaram connosco e sorriram. É muito bom”, nota Jaber.

Apesar da ansiedade, Jaber mantém a esperança de voltar a exercer Medicina, Hanaa – que era secretária na Síria – espera, primeiro, organizar a vida em casa, cuidando da família; depois quer aprender o ofício de cabeleireira. Os filhos querem todos ser médicos como o pai e estão “muito contentes” com a escola e os novos colegas. “Disseram-me que têm bons professores e que foram acarinhados na escola.” Acima de tudo, a família sente-se feliz em Portu- gal, “e isso é mais importante do que tudo no mundo”.

 

 

 

Portugal acolhe crianças e jovens do Afeganistão

O ABRAÇO AOS MENORES NÃO ACOMPANHADOS

 

A Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) é uma entidade de promoção do acolhimento, não só de famílias (através da Plataforma de Apoio aos Refugiados), mas também de menores não acompanhados. É que nas fronteiras passam muitas crianças e jovens sozinhos, sem família, sem ninguém que os acompanhe. E o que acontece a esses menores é uma preocupação da instituição portuguesa. Em Portugal já se encontra, desde março, um grupo de cinco crianças e jovens afegãos.

Consultora jurídica da CNIS, Ana Rodrigues esteve duas vezes na Grécia, no ano passado, para preparar a transferência e o acolhimento de menores não acompanhados em Portugal. “Quando lá estivemos da primeira vez, não havia resposta para isso em Portugal e não havia muitas respostas ao nível de outros países da União Europeia. Estivemos lá e fomos fazendo um trabalho grande de articulação muito estreita com a tutela dos refugiados em Portugal, com vista a possibilitar a transferência e o acolhimento de menores não acompanhados no nosso país. Vimos que havia muito boa vontade para se fazer alguma coisa e definimos um modelo em conjunto”.

Ter uma rede de famílias de acolhimento a esses menores era um risco grande: por um lado, por ser necessário um trabalho prévio de preparação e de enorme especialização; por outro, por a rede de acolhimento de crianças e jovens em risco existente em Portugal ser insuficiente – “não chega para as necessidades nacionais”. Era preciso, então, criar um novo tipo de resposta. “Se para acolher uma família há muitas questões que nós tivemos de antever, no caso de menores mais ainda. Acolher uma criança não se pode fazer propriamente de ânimo leve.” O que fazia sentido, explica Ana Rodrigues, “era pegar na rede de instituições particulares de solidariedade social [IPSS], que já têm trabalho e know-how nesta área e tentar perceber se algumas delas teriam forma de o fazer e prepará-las para isso”. Foram selecionadas algumas instituições já com experiência de acolhimento e com projetos educativos de referência para públicos mais complexos, nas zonas do Grande Porto, Grande Lisboa e Algarve.

“Depois preparámo-las e demos formação nas áreas do diálogo e da mediação intercultural, especificamente em contexto de intervenção com jovens, do diálogo religioso e da prevenção do tráfico de seres humanos, de que os menores não acompanhados podem ser vítimas preferenciais.” Seguiu-se um esforço, a nível europeu, para mostrar que o programa de recolocação não respondia às necessidades em concreto, porque a maioria dos menores não acompanhados que estão na Grécia são afegãos. “E os afegãos não entram no programa de recolocação”, esclarece Ana Rodrigues, acrescentando que era preciso encontrar outras formas de responder às necessidades. “O governo português quis dar esse sinal...”

 

Situação verdadeiramente calamitosa

E deu. Fora do âmbito do programa, Portugal acolheu cinco jovens afegãos. Como não existe financiamento europeu, foram angariações de fundos realizadas na Grécia que permitiram que eles viessem. “As autoridades nacionais estiveram muito empenhadas em deixar esta marca e mostrar que é preciso fazer mais do que está a ser feito a nível europeu”, realça a consultora do CNIS.

São cinco os jovens, dos 12 aos 18 anos, e estão na mesma instituição. “Chegando juntos, sendo da mesma nacionalidade, conhecendo-se, fazia sentido que se mantivessem juntos. Porque também é importante criar laços de reforço identitário entre quem vem. Para nós, era condição essencial que viessem em grupos e que cada instituição acolhesse um mínimo de quatro ou cinco.”

Na Grécia, são muitos os menores não acompanhados em campos de refugiados. As autoridades têm sempre de verificar a existência de familiares em algum Estado-membro, pelo que as crianças e jovens em questão, mesmo que elegíveis em abstrato, não são em concreto recolocáveis. De qualquer forma, se “existirem essas necessidades da parte do Estado grego, ou do italiano, nós temos aqui resposta”. E A CNIS vai continuar a trabalhar para ir trazendo os que não são elegíveis, porque, “para nós, não faz diferença se vêm do Afeganistão ou da Síria.”

Para Ana Rodrigues, este “desvio à regra” foi uma conquista. “Ninguém tinha feito isto, Portugal fez. Provavelmente, as instituições europeias não ficaram especialmente contentes com este sinal de abertura, mas é um enorme motivo de orgulho para nós”, considera a responsável, realçando que, no momento, não existe qualquer outro tipo de solução para os menores não elegíveis para recolocação. O que é preocupante.

As pessoas das nacionalidades que não entram no programa de recolocação, ou as que chegaram depois de março de 2016 e que também não vão entrar no programa, têm — no raciocínio de quem o desenhou — uma maior probabilidade de poderem ser devolvidas à proveniência, após análise e recusa dos pedidos de asilo. No caso dos menores, isto à partida nunca acontecerá, de acordo com os vários dispositivos legais que não permitem que se ultrapasse aquilo que é o superior interesse das crianças. “É um princípio orientador de toda a ação relativamente a crianças e jovens. E uma das implicações é que os Estados-membros não podem devolver um menor não acompanhado à proveniência, a não ser que seja no seu superior interesse”. E na maioria dos casos, não é do seu superior interesse ser devolvida ao país de origem, por estar numa situação de convulsão ou não ter condições para que tal aconteça…

Não sendo recolocadas nem devolvidas, estas crianças “ficam num limbo” e “a única solução é pedirem asilo, eventualmente, ao Estado grego”. E, independentemente de lhes ser ou não concedido, “ficam em terra de ninguém, porque a Grécia não tem condições para as acolher e não pode transferi-las para nenhum outro Estado-membro, nem devolvê-las à proveniência. Portanto, é verdadeiramente uma situação calamitosa, um buraco legal.”

 

Falta de perspetivas é um risco

Logo na primeira visita, Ana Rodrigues não visitou o campo de Moria, considerado o pior. Tinham fechado o acesso, pelo que ficou de fora, com elementos de várias organizações que estavam a prestar apoio humanitário. Nessa altura, o campo ainda não era de detenção, como passou a ser um mês depois. “É talvez o pior em termos de condições. É um campo de detenção, coisa que os outros não são.”

Os voluntários da PAR estão a trabalhar no campo de Kara Tepe, “mais voltado para pessoas com vulnerabilidade ou necessidades especiais”, onde a intervenção evolui conforme as necessidades. Atualmente, as atividades estão voltadas para a capacitação de jovens e para a educação não-formal. E este acaba por ser o acolhimento de primeira linha, o primeiro à chegada à Europa, depois de atravessados ventos e marés em barcos de borracha.

As condições nos campos são proporcionadas pelo Estado grego e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados(ACNUR). “O Estado grego ainda está no meio de uma crise económica brutal e, portanto, as coisas não estão propriamente famosas nesse âmbito. Para nós, foi especialmente custoso, porque íamos com uma agenda própria que dizia respeito aos menores não acompanhados e às condições em que se encontram. E se as condições com que nos deparámos da primeira vez eram terríveis, da segunda vez eram ainda piores.”

Na primeira vez, em fevereiro de 2016, a CNIS percebeu que a grande maioria dos menores estavam detidos num perímetro policial delimitado dentro dos campos, durante várias semanas. “Percebemos que se estava a fazer um esforço grande para criar mais abrigos e mais centros de acolhimento, mas que eram muito curtos para as necessidades. Depois, em dezembro, percebemos que tinham efetivamente sido criados vários centros, mas que não davam resposta nem a dez por cento das necessidades. Portanto, uma grande parte estava na mesma, ainda detida em campos, e outra estava na rua.”

Com o final dos financiamentos para a construção de abrigos e centros de acolhimento, estava a ser planeado canalizar todos os menores não acompanhados para perímetros fechados dentro de campos. “Portanto, iam continuar detidos e em campos que nem sequer eram especializados”, refere Ana Rodrigues, que alerta: “As coisas não só não estão a melhorar como estão a piorar a cada dia que passa.” É que, além do excessivo número de pessoas e das “péssimas” condições físicas, a “falta de perspetivas” é o maior problema. “Porque é um risco para nós todos, enquanto sociedade, ter milhares de pessoas num limbo permanente durante tanto tempo. Acho que uma das maiores dificuldades desta política europeia de dissuasão e uma das facetas mais negras dos campos é, de facto, deixar as pessoas completamente sem perspetivas.”

 

A enorme urgência de fazer alguma coisa

São muitas, e de várias nacionalidades, as pessoas que continuam a chegar à Grécia e a Itália. Em busca de um futuro, a fugir da guerra, à procura de uma vida melhor, ou por outro qualquer motivo. Que chegam com histórias – as suas histórias – e à procura de finais felizes.

Fazer a travessia custa muito dinheiro e é também por isso que chegam muitos menores sem acompanhamento às costas europeias – muitas vezes, a família escolhe um dos filhos para tentar a sua sorte, “e quem pega nos filhos e os põe num bote é porque de facto esse risco não é tão grande como o que enfrenta ficando onde está”. Para Ana Rodrigues, é necessário ter sempre isto em mente, a orientar o trabalho, pois só assim as pessoas percebem que é preciso encontrar uma solução. Que não passa por evitar que as pessoas cheguem, porque vão continuar a chegar…

“Do ponto de vista físico, as condições são más e acho que isso é especialmente chocante por estarmos na Europa dita civilizada. Nós achávamos que na Europa civilizada isso já não iria acontecer, mas acontece. Por exemplo, como não há instalações sanitárias separadas e protegidas, há mulheres que, às vezes, aguentam dias para saírem depois em conjunto a um sítio qualquer onde se sintam mais protegidas. Se não, correm o risco de ser assediadas, atacadas ou mesmo violadas — e muitas vezes são-no. Nesta altura, já não seria concebível que tivéssemos estas condições, mas temos.”

Como os motivos de chegada variam, há a tendência para criar “hierarquias”, colocando no fundo da tabela os imigrantes voluntários. “Enquanto profissional da área dos Direitos Humanos, choca-me especialmente termos pessoas detidas por terem tentado fugir da guerra, mas choca-me também que o sejam por terem vindo à procura de uma vida melhor. Os que não são refugiados, que também existem, são encarados como estando no fundo de uma certa hierarquia moral. E, só porque vêm à procura de uma vida melhor, são tratados como criminosos e ficam detidos, sem culpa formada, por tempo indefinido, sem que isto nos pareça, coletivamente, ilegítimo ou sequer preocupante.”

Desta experiência, Ana Rodrigues retirou a perceção da “enorme urgência de fazer alguma coisa”. Espera que não seja preciso voltar ao terreno, mas a prazo deverá voltar, para afinar o programa e perceber se está a ir ao encontro das necessidades.

 

[Entrevista a Ana Rodrigues]

 

 

 

Voluntário no terreno

PEDRO PEDROSA: “OS NOSSOS PROBLEMAS AQUI SÃO MUITO PEQUENINOS”

 

Foi um dos muitos voluntários portugueses que se deslocaram à Grécia para ajudar os que lá chegam, fugidos da guerra, ou simplesmente à procura de uma vida melhor, e se sujeitam a fazer a travessia marítima em barcos de borracha. A ideia surgiu meio de repente: quis fazer mais por aqueles que nos vão chegando aos olhos apenas pelas notícias; no ano passado juntou-se à ERCI e seguiu viagem por duas vezes.

 

“Fui para uma equipa de resgate e salvamento no mar. Há outras associações no terreno, como a PAR [Plataforma de Apoio aos Refugiados], por exemplo, mas esse é um trabalho mais educativo dentro dos campos e não era tanto isso que eu queria.” Pedro Pedrosa, 29 anos, tem experiência na arte de ajudar os outros – é coordenador do Centro de Apoio aos Sem Abrigo e coordenador do Co-grupo sobre os Direitos das Crianças da Amnistia Internacional.

O trabalho que procurava era o de resgate, busca e salvamento, daqueles que atravessam o Mar Egeu. “São cerca de 11 quilómetros a separar a praia turca da praia grega e nós estávamos ali naquela zona. Tínhamos dois barcos no mar, para auxiliar no que fosse preciso, e também estávamos na praia, a fazer vigílias, à espera que viessem barcos para ajudar as pessoas a chegar.”

Dependendo da situação, os voluntários da Emergency Response Centre International (ERCI) auxiliavam os barcos em alto mar a fazer a passagem para os barcos da Frontex [Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados Membros da União Europeia], sinalizavam a presença dos barcos ou orientavam os que estavam a chegar à praia. “Outras vezes, eles até já tinham chegado e nós tentávamos chegar lá o quanto antes para ver se as pessoas estavam bem.”

Era um trabalho constante e nem sempre com finais felizes. “Há sempre situações que não são tão agradáveis, mas o trabalho é tanto que, muitas vezes, não tínhamos tempo para estar a pensar nessas coisas.” Também não havia muito tempo para grandes envolvimentos com os que chegavam, como acontece nos campos. O trabalho de resgate e salvamento era muito imediato. “Receber as pessoas, ver como elas estavam, trocar a roupa molhada, agasalhá-los, cuidar dos feridos e tratar das emergências. Depois as pessoas iam para os campos.”

 

Poucos recursos e condições fracas

À medida que as pessoas chegam à costa grega, os voluntários seguem um procedimento prático e operacional de receção, quer para segurança das pessoas, como para a dos próprios. “Parte do procedimento envolve ligar às autoridades gregas, que depois vão lá. Nós não temos de segurar as pessoas, estamos apenas e só para ajudar. Depois vem um autocarro que as leva para os campos, para iniciarem o pedido de asilo”, explica Pedro Pedrosa. Mas o primeiro contacto é com os voluntários que estão na praia, se não encontrarem mais ninguém pelo caminho.

Os problemas são os “normais” para uma equipa de resgate – “as condições em que as pessoas chegam”, que muitas vezes são péssimas. “Os barcos são frágeis e não é criada uma passagem segura para que consigam chegar em condições.” Na falta de uma passagem segura, as pessoas aproveitam, por exemplo, as intempéries para conseguirem escapar aos radares da guarda costeira. Outro problema que às vezes ocorre é a polícia obrigar as pessoas a ficarem à espera bastante tempo na praia, molhadas, com frio. “Acabam por ficar em piores condições”, refere o voluntário, realçando que “nem todos os envolvidos no processo estão para ajudar aquelas pessoas. Muitos deles não têm como objetivo a segurança dessas pessoas, mas controlar a fronteira”.

Os que chegam são encaminhados para os campos e aí começa o processo para uma eventual recolocação, que pode ser demorado. “As pessoas chegam a território grego e têm de ser recolocadas num dos outros países europeus, ou até mesmo noutro sítio na Grécia, e aí as coisas são mais complicadas. E estão a atrasar-se cada vez mais. Por outro lado, a União Europeia fez um acordo com a Turquia e isso é lesivo para os que chegam. Não sabemos como são os campos lá, mas organizações como a Amnistia Internacional já indicaram que as condições não são as melhores. Aquelas pessoas não têm os seus direitos assegurados.”

Pedro Pedrosa não chegou a trabalhar nos campos de acolhimento, mas visitou-os. “Existem na ilha de Lesbos três campos: Kara Tepe, Pik Pak e Moria”, os dois primeiros para “situações mais frágeis” e o terceiro, a exceder em muito a lotação, já um bocadinho “mais agressivo”. Além do excesso de pessoas nos campos, existe o problema das etnias que se juntam no mesmo espaço, “etnias que nos seus territórios de origem não são compatíveis”. E isso dá origem a situações de muita violência. “Quando as pessoas estão a fugir de algo preocupam-se apenas elas, não se preocupam com os outros. Cada um quer-se salvar a si.”

É, por isso, necessário um apoio global. Quem manda em solo grego é o Estado; as organizações que estão no terreno tentam prestar o auxílio possível. “Mas tudo com poucos recursos. A diversidade da alimentação é fraca, as condições de alojamento também. Estar em tendas não é muito confortável, nem é de todo recomendável. E há pessoas que estão a morar em tendas de campismo pequenas há meses.”

 

À procura de um lugar seguro

A maioria dos que chegam são da Síria e do Iraque, mas há muitos de outros países, como do Afeganistão ou até da República Dominicana. “Basicamente já chegaram ali pessoas de todo o mundo, porque aquele é o ponto mais simples para se chegar à Europa. Quando as fronteiras são fechadas ali, as pessoas têm de ir para sítios mais perigosos. Daí o aumento do número de mortos no mar, porque as pessoas estão a ir para outros sítios, como o Mediterrâneo, para a travessia entre a Líbia e a Itália, que é a zona mais perigosa”, explica Pedro Pedrosa.

E se a maioria está “a fugir da guerra, do Estado Islâmico, dos bombardeamentos”, outros estão a fugir da falta de condições sociais, de trabalho e até de apoio. “Também há pessoas à procura de uma vida melhor, mas esses são uma minoria. As pessoas que se dão ao trabalho de fazer esta travessia, que é um risco grande, têm, de facto, de estar a fugir de uma situação de perigo de vida.”

Na bagagem, a expectativa passa por encontrar um sítio onde estejam em segurança. Para Pedro Pedrosa, a Europa “vendeu” a ideia de ser o local onde se respeitam os Direitos Humanos, onde todos são bem acolhidos. “E isso não é verdade. Era o ‘sítio’ dos Direitos Humanos quando só estávamos cá nós e não havia problema nenhum. Mas quando isso foi posto à prova... E em várias situações. Aquando da crise económica que atravessámos a partir de 2008 viu-se que, de facto, era mentira. E é uma frustração para muitos europeus, que estão a sentir na pele todo este problema, mas também para aqueles que confiavam na Europa para os ajudar quando precisassem.”

Também por isso, é importante que as pessoas sejam recolocadas noutros países, ultrapassando os problemas burocráticos, ou até alguma falta de vontade política, e aliviando a Grécia da pressão migratória. “Acontece que a recolocação está a falhar. A Grécia diz que há falta de vontade política dos outros países e os outros países dizem que há falta de desenvolvimento burocrático por parte da Grécia.” E mantém-se o impasse. E o acordo com a Turquia. “Basicamente, o que estamos a fazer é a livrar-nos do problema”, considera Pedro Pedrosa, lembrando que a Amnistia Internacional está a defender casos em tribunal para a não extradição para a Turquia.

 

Várias formas de ajudar

Pedro Pedrosa esteve na Grécia, como voluntário, em setembro e dezembro do ano passado. Dependendo da situação, numa próxima ida voluntária, não sabe se voltará à Grécia ou se irá para Itália. Como só consegue ir nas férias, logo decide se e para onde irá numa próxima missão. Desta experiência não retirou só a parte prática, dos treinos que podem ser úteis no futuro na ajuda aos outros. “O que mais aprendemos, de facto, é que os nossos problemas, aqui, são muito pequeninos, sejam eles quais forem. Assim como os problemas que nós projetamos naquelas pessoas: às vezes, ficávamos tristes por irem para o campo de Moria, mas eles ficavam contentes por ir... Por isso, nós conseguimos relativizar tudo.”

Agora, Pedro Pedrosa vai acompanhando a situação à distância. E mesmo daqui é possível ajudar. Para ele, uma parte fundamental é partilhar a informação, mostrar o que se está a passar e desmistificar os receios que existem, quer através de partilhas nas redes sociais, quer por uma intervenção ativa ou “por exigir aos governantes que façam cumprir a lei e os tratados assinados”.

Outra forma de ajudar é estar atento ao trabalho de organizações como a ERCI ou a PAR e apoiar o seu trabalho, quer ao nível de angariação de fundos ou de recursos, ou de voluntariado. “Tem é de haver vontade de pesquisar e tentar perceber como se pode apoiar.” Pedro tem uma vida ligada ao voluntariado, ao apoio ao outro. “Sempre que tenho oportunidade para trabalhar de uma forma mais ativa, no sentido humanitário, faço-o. Mas não é nada de extraordinário, há muita gente que também o faz.”

 

Maria João Leite (reportagem)

Ana Alvim (fotografia)


  
Ficha do Artigo

 
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