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Freedom Theatre: Educação e cultura como formas de resistência

No campo de refugiados de Jenin, nos territórios ocupados da Palestina, estava erigido o Teatro de Pedra, destruído por um ataque israelita em 2002. Mas as armas não destruíram o sonho artístico, pelo que anos mais tarde voltou a nascer um projeto para dar às crianças e aos jovens palestinianos um horizonte de esperança e de liberdade. Surgiu assim o Freedom Theatre, em 2006, que integra uma portuguesa na sua equipa. Micaela Miranda, diretora pedagógica e encenadora na companhia, trocou o conforto europeu pela missão de tornar o mundo um pouco melhor.

 

Tudo começa com a primeira intifada. Devido aos ataques, as escolas estavam fechadas e Arna Mer Khamis, mãe de Juliano Mer Khamis (ator e cofundador das duas companhias artísticas), decidiu pôr mãos à obra e trabalhar com as crianças na rua. Com outras mulheres palestinianas criou o que chamavam ‘casas de infância’, uma espécie de escola dentro das casas das famílias que os acolhiam das ruas.

“Era uma forma de resistência ao que estava a acontecer, porque as pessoas, principalmente as mulheres, queriam que as crianças tivessem a educação a que tinham direito”, explica Micaela Miranda. Este projeto inspirador tinha um nome, Care and Learning, e chegou a ganhar o prémio Right Livelihood Award, em 1993, galardão também conhecido como Prémio Nobel Alternativo. Com o dinheiro desse prémio nasceu um teatro, instalado em cima da casa de Samira Zubeidi.

Assim começou o Teatro de Pedra – destruído em 2002 pelas tropas israelitas, por ser a casa da família Zubeidi. “Os filhos de Samira, que tinham estado no teatro, tornaram-se parte da Resistência e foram alvos dos israelitas. Então, no massacre de 2002, a casa foi deitada abaixo, foi bombardeada e com ela o teatro.”

Juliano Mer Khamis decidiu sair de Haifa e voltar ao campo de Jenin, mas dessa vez com uma câmara na mão. Desse regresso resultou um filme, “Arna’s children”, sobre as crianças que fizeram parte dos projetos. “É um filme muito bom, porque é um dos poucos que fala da resistência de uma forma diferente, de dentro para fora, e que leva à questão: será que um terrorista nasce terrorista? Ou de onde é que isso vem? O filme teve muito sucesso e com o dinheiro da produção, o Juliano fez um teatro”, conta Micaela Miranda.

Foi então há dez anos, em 2006, que Juliano Mer Khamis, Jonathan Stanczak e Zakaria Zubeidi decidiram criar o Freedom Theatre, “porque acreditavam que depois do massacre e do desmoronamento social, o que era preciso era investir na educação e na cultura e que isso era uma forma de resistência”. O projeto tinha como missão “criar um espaço seguro para os jovens e crianças, onde eles se pudessem expressar”.

O Freedom Theatre começou com workshops e teatro amador, com uma divisão entre rapazes e raparigas – “na altura, a sociedade à nossa volta não sabia muito bem o que é que queríamos fazer e tinha muitas dúvidas; então tínhamos de respeitar certas regras” – que se foi esbatendo ao longo do tempo. Dois anos depois, já com todos juntos, foi criada a escola profissional. Para além desta e das produções da companhia, o Freedom Theatre tem um departamento multimédia, onde são dadas aulas de cinema, fotografia e escrita criativa, e a revista Vozes. “Hoje temos um programa para a juventude”, uma comunidade artística criativa.

 

Arte pela Liberdade

Natural de Santa Maria da Feira, Micaela Miranda chegou ao Freedom Theatre no início de 2008. Aproveitando um espetáculo de clown em Israel, fez uma visita ao campo e ofereceu um workshop. Foi convidada a ficar por Juliano Mer Khamis, diretor do teatro até 2011, altura em que foi assassinado. Ficou, mas não imaginava fazê-lo por mais de um ano. Mas além das ideias fortes, apaixonou-se por Nabil Alraee – diretor artístico da companhia, com quem encenou uma adaptação livre da “Quinta dos Animais”, de George Orwell, e duas outras obras para a vida, as duas filhas do casal.

A realidade no campo de Jenin é muito diferente daquela que se vive a mais de cinco mil quilómetros de distância. Mas são quotidianos a que Micaela se habituou. Até porque ajudar aqueles jovens palestinianos a ganhar sentido crítico, a abrir as portas da imaginação, a refletir – “a reflexão é uma ferramenta indiscutivelmente necessária para o crescimento pessoal e para a aprendizagem” – tornou-se uma espécie de missão. E só assim faz sentido.

A equipa do Freedom Theatre promove muitas experiências práticas e, ao terceiro ano, os que estão a finalizar o curso fazem duas viagens: a um país de Leste (este ano, à Índia) e a um país do Oeste. Este ano, no âmbito dos 25 anos da Academia Contemporânea do Espectáculo/Escola de Artes (onde Micaela Miranda estudou), uma turma de cinco alunos veio a Portugal. A ideia é “eles perceberem as diferenças, porque é pelas diferenças que também se aprende, e eles apresentarem-se de certa forma perante uma outra cultura e poderem refletir mais sobre quem são de facto, voltando à Palestina”.

No Porto, participaram na mostra cultural Portugal Palestina: Arte pela Liberdade, que envolveu teatro, cinema e artes plásticas, e num intercâmbio de estudo, em que os professores de ambas companhias puderam transmitir os seus conhecimentos. “O mais importante é eles conhecerem-se uns aos outros. Os jovens portugueses, num qualquer dia que vejam notícias sobre a Palestina, já vão pensar de outra forma, porque já conhecem gente que vive lá. E para os nossos jovens no Freedom Theatre estes são contactos com outros jovens com quem têm muitas coisas em comum. Vai fazê-los pensar no que têm em comum, no que têm de diferente...”

Num território dominado pelos destroços de um braço de ferro, para já sem fim à vista, resiste uma companhia de teatro, um espaço cultural, uma comunidade que trabalha para dar novos horizontes aos jovens que lá vivem... E que pode salvar vidas. Usando a arte como “ferramenta de transformação”, a educação e a cultura – é esta a forma de resistência.

 

 

ORA DIGA LÁ… MICAELA MIRANDA

 

Como é que se envolveu neste projeto?

A minha pesquisa pessoal sempre foi na perspetiva de para que serve o teatro. Nunca me contentei em fazer teatro só por fazer e todos os projetos em que me envolvia tinham um caráter muito social e político. Estive a trabalhar algum tempo na Irlanda e, na altura, em 2007, li um artigo sobre o Freedom Theatre, que tinha acabado de abrir, e sobre uma rapariga que afinal já não queria ser mártir e que queria tornar-se numa encenadora. Achei que era um projeto fantástico, mas nunca pensei no que me ia levar à Palestina. Mas, precisamente nessa altura, fui convidada para substituir uma atriz em Israel num espetáculo de clown. Fiz parte desse espetáculo com colegas israelitas, com quem tinha estudado em Paris. Aproveitei e fui a Jenin com o Juliano [Mer Khamis]; e ofereci um workshop. Foi muito interessante! Na altura, início de 2008, estavam com a ideia de abrir uma escola profissional no final do ano. Aceitei o convite de ficar lá por um ano. O meu treino, em teatro físico e máscaras, ia dar um suporte técnico à escola. Entretanto, também tive problemas com as minhas colegas israelitas, porque elas queriam fazer um espetáculo que era uma sátira do exército, mas sem entrar em muitas politiquices; e eu, vivendo em Jenin, sabia muito mais coisas do que elas, sabia que não era bem assim. Então tive de deixar o espetáculo a meio da tournée, que foi uma coisa que eu nunca pensei que poderia fazer na minha vida – desistir de um espetáculo é matar um espetáculo –, mas na altura as ideias foram mais fortes. E continuei no Freedom Theatre. No final do primeiro ano, conheci o Nabil [Alraee], o meu marido. Apaixonei-me e fui ficando... E agora já tenho duas filhas.

Como é o dia a dia num campo de refugiados?

É um dia a dia normal, mas o normal é diferente do daqui. Portanto, é normal o exército entrar no campo durante a noite, levar pessoas, partir tudo à sua frente, é normal as crianças ficarem acordadas, é normal haver tiros, é normal haver bombas de som, é normal haver gás lacrimogéneo... As crianças crescem a ver isso e para elas é tudo um jogo, até que se apercebem com o tempo onde estão, quando se tornam jovens e sentem que lhes é impedido viajar, ter certas coisas, certos privilégios e que são vítimas de muito preconceito e racismo. Também por isso é que criámos esse projeto, porque os jovens são aqueles que sentem mais isolamento e mais injustiça. E depois, quando temos que tomar decisões sobre o que é que vamos fazer na vida, muitas vezes falta-lhes a imaginação, porque o que eles conhecem é aquilo. E, portanto, nós tentamos trabalhar muito a imaginação.

Não é um dia a dia fácil...

Não é fácil viver lá. A água é um grande problema. Um palestiniano consome um oitavo do que consome um israelita, um palestiniano está interdito de cavar poços de água. A água é comprada pela Autoridade Palestiniana à Mekorot, a companhia nacional israelita, e depois revendida a um palestiniano que distribui água, revendida mais uma vez às pessoas. E, portanto, é cara. E falta. E nós temos umas reservas de água em cima dos telhados. Pronto, a água é uma grande dificuldade. A liberdade de movimento também é uma grande dificuldade. E depois há toda aquela psique da vitimização – nós tentamos sair um bocadinho desse ciclo, para que os jovens se apercebam que podemos ser vítimas da nossa própria vida, ou da nossa própria situação, mas há sempre um ponto do qual temos responsabilidade e podemos assumir responsabilidade pela nossa vida. Então, trabalhamos muito isso com os jovens.

Num artigo que escreveu, falava em três tipos de ocupação.

Nós gostamos de ter essa ideia romântica de que nos nossos pensamentos ninguém mexe, mas, de certa forma, a ocupação tem vários níveis: a ocupação política, todas as políticas que influenciam a vida das pessoas; a ocupação social, a própria sociedade tornou-se uma sociedade conservadora, lá na Palestina; e a ocupação individual, aquela que impomos a nós próprios. Portanto, o nosso papel não é tanto fazer discursos e dizer ‘não faças isto’ ou ‘olha para o que estás a fazer’; é mais questionar e dar espaço vazio para que os jovens se apercebam da própria limitação que impõem a eles mesmos. Acreditamos que é aí que tudo começa, no indivíduo.

A educação tem um papel importante nessa “revolução de pensamento”?

Nós temos uma comunidade alternativa aos exemplos que os jovens têm lá. Usamos as artes performativas e a Arte em geral, investimos na imaginação, na criação coletiva, e partindo da ideia de que o palco, ou a sala de ensaio, é um local de treino para a vida, onde podemos libertar as nossas emoções e aprender a controlá-las e a usá-las criativamente, aprender a discutir e a pensar criticamente, aprender a construir juntos. E isso funciona através de um processo extremamente democrático, no verdadeiro sentido da palavra, e sobretudo promovendo a reflexão, porque numa sociedade tão tensa e tão instável a reflexão é uma ferramenta indiscutivelmente necessária para o crescimento pessoal e para a aprendizagem.

A pergunta inevitável: o teatro salva ou pode salvar vidas?

Coloquei essa questão num capítulo que escrevi no livro «Arte e Comunidade» [livro coordenado por Hugo Cruz, onde Micaela Miranda escreveu o capítulo “Teatro nos Territórios Ocupados da Palestina - Resistência Cultural: Um Teatro de Liberdade”]. É assim, o teatro tem que ter um tempo e um sítio. Se estivermos no mesmo espaço e tempo do conflito, é muito difícil fazer isso. E nós estamos lá muito perto. Agora, o teatro pode ser um treino, do qual os indivíduos vão beneficiar muito pelo crescimento pessoal e pela reflexão que promove. Mas eu nunca faria teatro se alguém me apontasse uma arma. Por outro lado, e era por isso que eu refletia sobre esta questão, fui testemunha de grandes transformações pessoais em jovens que se juntaram ao nosso programa. Sei as histórias de todos eles e de onde é que eles vinham e, portanto, qual era o possível panorama para o futuro; eles transformaram-se e entraram numa outra vida, reinventaram a vida deles e hoje em dia são muito mais confiantes. Construíram coisas que nunca teriam pensado que eram capazes e isso é extremamente recompensador.

O teatro pode ensinar a liberdade?

Sim. Hoje em dia, acho que o teatro ensina o que cada pessoa precisa de aprender. E é fantástico, no caso dos palestinianos, porque estão à procura da liberdade e é uma coisa essencial. Ensina a liberdade.

Que futuro vê para a Palestina?

O futuro da Palestina é muito negro. Sabemos que temos de continuar a ter esperança, porque senão morremos, e nós não queremos morrer. Mas a Palestina, tal como outros povos, está a sofrer uma limpeza étnica. Na minha opinião, vai acontecer uma limpeza étnica provavelmente total, sendo que, daqui a 200 anos, provavelmente já não vai haver Palestina. De qualquer forma, há coisas muito importantes que os palestinos têm para dizer ao mundo, que são coisas que precisam de mudar, se queremos mesmo que a humanidade continue numa direção humana. Acho que as mensagens são muito claras, podem é não estar a ser ouvidas, porque quando nós vivemos em privilégio, às vezes é mais fácil vivermos na ignorância. Em 2014, aquando de outro massacre em Gaza, morreram mais não sei quantas crianças; todas as injustiças, as imagens, os relatórios das Nações Unidas... E Israel continua, impune, a fazer este tipo de coisas. A pergunta é quantas mais crianças precisam de morrer? Quantas crianças palestinianas equivalem a uma criança portuguesa, alemã, europeia? Essas perguntas têm de ser feitas a Oeste e as pessoas têm de perceber que pequenos atos, aqui, se calhar lá têm grandes impactos. E então alguma coisa pode ser feita.

E quanto ao futuro do Freedom Theatre?

O Freedom Theatre cresceu muito, continua a crescer. Estes alunos vão agora acabar o terceiro ano, novos virão. Temos uma grande curiosidade para saber o que é que eles vão fazer no futuro. De certeza que vão fazer muita coisa e sentimos que o nosso impacto está cada vez a crescer mais. E espero que um dia eles tomem o leme.

Maria João Leite (reportagem)

Henrique Borges (fotografia)


  
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