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Coral de Letras: do Porto para o mundo

Já lá vão 48 anos a levar ao mundo um repertório de obras diversas, em que se destaca a música portuguesa. O Coral de Letras da Universidade do Porto foi criado em 1966 e desde o primeiro concerto, numa Queima das Fitas, não mais parou de dar música, em festivais internacionais, em iniciativas da cidade, da universidade ou de outras instituições. Numa quinta-feira, o Coral juntou-se para mais um ensaio e a PÁGINA foi assistir.

 

Um gole de chá. É preciso afinar as gargantas e dá-se início ao aquecimento vocal. Vocalizes à ordem do maestro José Luís Borges Coelho, que se senta ao piano. Tudo pronto para abrir as capas na peça “O Coletinho”, melodia popular portuguesa com arranjos de Fernando Lopes-Graça, que também assina os arranjos de “Nem contigo, nem sem ti”, com que o grupo termina o ensaio. Aliás, Lopes-Graça é um dos nomes que se ouve com frequência quando se fala no repertório do Coral de Letras.

“Um grupo com as características do nosso tinha que ter fortes ligações às raízes, e as raízes identitárias no domínio da música são muito a nossa canção popular. Mas nós éramos um coro, não podíamos estar a cantar canções populares de qualquer modo. Durante muitos anos não fizemos mais nada senão cantar obras de música regional portuguesa em harmonizações de Fernando Lopes-Graça, porque eram de um elevadíssimo nível e de algum modo elas formaram-nos”, explica o maestro, que é também diretor artístico do Coral.

Mas há muitas componentes na programação do Coral de Letras. “Demos sempre muita importância à polifonia europeia, mas sobretudo à portuguesa; a polifonia de autores portugueses foi uma forte componente da nossa programação. Outra componente muito forte foi a música coral sinfónica; fizemos grandes obras da literatura musical europeia e de grandes autores: Mozart, Haydn, Beethoven, até Penderecki.”

 

 

O grupo divide-se em dois, para limar arestas: sopranos e contraltos permanecem na sala principal, à volta do piano onde se volta a sentar o maestro; os homens, baixos e tenores, vão para uma sala ao lado, estudar as suas vozes, para que no final tudo bata certo – como aconteceu. O maestro vai parando o canto, pede sentimento e lembra a forma como a música era cantada noutros tempos. Atirar a voz não é cantar com garra, e é preciso não esquecer a poesia, as palavras. No final, a melodia ecoa com harmonia.

 

Currículo “único” no panorama coral do país

O Coral de Letras é um grupo da Universidade do Porto, amador, mas já levou longe o nome da instituição e da cidade. Ao longo de muitos anos, o grupo participou em festivais internacionais competitivos e arrecadou prémios. Entre as distinções alcançadas, destaca-se a Medalha de Mérito Cultural atribuída pelo Ministério da Cultura em 2001. Participou de forma regular em cerimónias da universidade, gravou discos, encetou parcerias, entre as quais com a Casa da Música – era o grupo convidado para acompanhar a Orquestra Sinfónica antes da criação do coro residente – e, desde 1975, marca presença na Baixa do Porto, onde canta “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso, às zero horas do 25 de Abril. São muitos os pontos altos destes 48 anos de vida, que tornam o currículo deste coro “único no panorama coral do país”, sublinha Jorge Grave, presidente da direção do Coral.

Os convites continuam a chegar, como noutros tempos, embora agora seja mais difícil dar resposta a tudo. O Coral de Letras é composto por cerca de 50 elementos: alunos, professores, funcionários; pessoas de várias idades, que têm em comum a ligação à Universidade do Porto, o gosto sério pela música e a boa disposição. O critério inicial de pertencer à Faculdade de Letras foi entretanto alargado à universidade. “Corríamos o risco de não ter homens, uma vez que na Faculdade de Letras só andavam quase mulheres”, refere, entre sorrisos, José Luís Borges Coelho, que na fundação do coro andava no 3o ano da faculdade (que por sua vez tinha apenas mais um ano).

Anualmente, são abertas inscrições e os anúncios são dirigidos à comunidade da universidade. Os ensaios acontecem três vezes por semana e decorrem na Faculdade de Direito. As instalações são cedidas pela Reitoria da Universidade do Porto, que garante também um subsídio de apoio. Agora, de olhos postos na agenda, o Coral de Letras prepara-se para os concertos marcados até ao Natal. Para 2015, há projetos em calha, entre os quais uma viagem a Ceuta, para os 600 anos da chegada dos portugueses.

 

ORA DIGA LÁ… MAESTRO BORGES COELHO

A música é importantíssima na formação da personalidade

 

Foi professor de História e de outras disciplinas. Tem imensas atividades no currículo.

O meu curso de raiz é História, e fui professor de História. Os professores de História também eram, de alguma maneira, obrigados a ser professores de Português. Mas também fui de Introdução à Sociologia, de Introdução à Política – e até de Matemática, antes de vir para a faculdade, num colégio particular que estava a começar; os primeiros professores eram só três e tinham de se desdobrar para dar as disciplinas todas. Tinha estado nove anos, mais ou menos, em regime de reclusão, num seminário. A verdade é que aquela formação depois dava abertura para se poder orientar muitas coisas.

E foi um dos fundadores do Sindicato dos Professores do Norte.

Sim. Aliás, ajudei a fundar dois: o SPZN e o SPN. Porque ainda fiz parte dos Grupos de Estudo do pessoal docente, os tais que foram equiparados pela ‘Velha Senhora’ a associações clandestinas e que deram origem ao SPZN. Depois apareceu o SPN – era preciso um sindicato combativo, forte.

Como é que a música entra no seu caminho?

A música vem de muito cedo, dos meus primeiros anos nessa tal outra experiência. E foi sempre um projeto muito adiado. Naquela altura ninguém pensava poder fazer vida com música, era preciso ter sempre outra atividade. De maneira que eu acabei por fazer dois cursos: o do Conservatório e o da universidade. O Conservatório era assim uma espécie de sonho. O outro é que me amarrava mais à terra, ao quotidiano, e era o ganha-pão.

Preferia ser professor ou músico?

Naturalmente, preferia ser músico, mas gostei muito de ser professor. E penso que os alunos que me passaram pelas mãos não tiveram pena de me ter tido como professor, porque muitas vezes encontro antigos alunos e a reação é boa, é muito agradável.

Como surgiu o Coral de Letras?

Quando vim para o Porto, para a universidade, fui para o único organismo que então havia a esse nível, o Orfeão Universitário. Mas em Coimbra havia um orfeão académico e ao mesmo tempo o Coral de Letras. Aqui, a Faculdade de Letras era uma faculdade nova e entrei no segundo ano da faculdade; os alunos mais velhos eram um ano mais velhos do que eu. De modo que, quando cheguei ao terceiro ano, apareceu a ideia de se fazer um coro. E o primeiro concerto, que já foi há 48 anos, foi numa imposição de insígnias de uma Queima das Fitas. Achou-se que eu poderia dirigir o coro, fez-se o primeiro concerto e foi um sucesso. E o grupo arrancou.

A universidade precisa desta vertente mais séria da música?

Penso que sim, e este grupo ensaiava diariamente. Agora não o pode fazer, mas quando o integravam apenas estudantes e não havia estes horários malucos, ensaiávamos todos os dias. O grupo ia com alguma regularidade a festivais internacionais competitivos e trazia prémios. Era um dos mais fortes coros amadores do ocidente da Europa. Claro que essa situação não é a atual; agora não se consegue fazer esse tipo de trabalho, é muito difícil. No ano passado, quando abrimos inscrições, mandámos mais de 30 mil e-mails: inscreveram-se alguns professores, alguns funcionários e zero alunos. Este ano a situação melhorou um pouco, há mais jovens, até da Escola Superior de Música.

A Universidade do Porto reconhece a importância do Coral?

Penso que sim. Para o centenário da universidade, o Coral gravou um disco ontológico da obra do Fernando Lopes-Graça. E no dia das comemorações do centenário estreou uma obra do compositor Fernando Lapa, com a Orquestra do Norte.

O que espera do Coral de Letras no futuro?

Espero que o grupo continue bem, cheio de força, pujante, atento às realidades, não apenas musicais. A música é melhor se houver muita atenção ao que se passa à volta.

É essencial na educação?

A música é um fator importantíssimo na formação da personalidade. E acho que é imprescindível para um completo desenvolvimento das capacidades da mente.

Maria João Leite (reportagem)

Ana Alvim (fotografias)


  
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