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Eles também ensinam

Têm experiências de vida distintas e são casos atípicos no âmbito da docência e da formação. A PÁGINA foi ouvir as histórias de Ricardo, Miguel e Tomás. Não seguiram o percurso tradicional até chegarem às salas de aula; enveredaram por este caminho como recurso ou apenas por curiosidade. E gostaram.

 

 

RICARDO BRITO

A docência surgiu como recurso

 

Aos 35 anos, falta-lhe uma carreira profissional estável. Ricardo Brito é licenciado em Artes Plásticas, está a tirar um mestrado em Ciências da Comunicação e é professor sempre que o sistema o permite. “Neste momento sou uma espécie de mercenário do ensino. Digo que o sou, porque vou lá buscar o ordenado de um mês e fazer um serviço extra. Concorro através de uma bolsa de recrutamento. No ano passado tive sorte e consegui trabalhar dois meses”.

A ideia nunca foi leccionar em salas de aulas, mas desenvolver as suas experiências e expectativas pessoais. O ensino surgiu como recurso, tendo em conta o actual estado do país e a forma como a Cultura ainda é vista em Portugal, como uma “disciplina menor”, mesmo quando “a leitura das imagens é tão importante como a leitura de um texto”. O ensino ganhou então um lugar mais prioritário do que o que estava à espera, ganhou mais interesse e tenta chegar às escolas desde há sete anos. Mas as dificuldades são muitas. Logo desde início…

“Só tenho habilitação própria, não tenho habilitação profissional. Por isso, o meu concurso é desprezado à partida”, explica Ricardo, que quando consegue trabalho assina contratos mensais. Mas, apesar de não ter habilitação profissional que lhe permita concorrer nos parâmetros normais da docência, conta com a experiência nas Artes Plásticas, uma área com um programa multidisciplinar à qual se mantém sempre ligado – continua a tentar criar currículo profissional através de exposições e de prémios, por exemplo –, e com a sua experiência em acções de formação, a título pessoal ou no âmbito associativo, em áreas como a fotografia ou técnicas de construção com diversos materiais.

Na docência, faz-lhe confusão que todo o serviço da escola esteja montado em função do professor e que a “presunção” deste o leve a transformar as aulas num patamar em que tudo gira em torno dele e não dos alunos. “Estamos a generalizar uma situação, mas que se espalha por todo o país”, referiu. Por isso, fez um estudo sobre os programas. “Estou a tentar conseguir dar formação a professores e também dar aulas a jovens”, para dar aos miúdos “alguma humanidade” e ajudá-los “a organizar a informação”, de forma a interagir com outras disciplinas.

Relativamente ao futuro na docência, “não tenho expectativas em relação a nada”. Ricardo conhece bem a experiência da mãe, que, tendo também formação em Artes Plásticas, acabou por seguir a via do ensino, tendo tido algumas dificuldades, por exemplo, na colocação perto de casa.

 

 

MIGUEL CORREIA

Em busca da realização pessoal

 

Miguel Correia tem 36 anos. É investigador pós-doutorado e docente de Direito Fiscal Internacional na Universidade Católica de Lisboa. Depois de um percurso profissional como consultor, não imaginava apaixonar-se pela profissão de professor. Por influência familiar, licenciou-se em Direito na Católica do Porto – “segui o expectável” – e pouco antes do final do curso partiu para Itália, para uma experiência de dois anos que mudou a sua vida, até a nível pessoal. Não chegou sequer a inscrever-se na Ordem dos Advogados. Seguiu para Inglaterra, para fazer um mestrado em Direito Comercial Internacional, e foi aí que contactou com o Direito Fiscal Internacional, uma área que lhe despertou tanto interesse que foi para os Estados Unidos fazer um outro mestrado nessa área. Trabalhou dois anos em Nova Iorque, numa consultora.

“Gostava de trabalhar na área, mas não me identificava com o ambiente e com o tipo de trabalho. Nas consultoras, a máxima é ‘não reinventes a roda’, o que não incentiva nem estimula a criatividade”, explica Miguel. Para tirar teimas, regressou a Portugal para experimentar trabalhar em consultoras, mas no final do primeiro ano viu que, embora gostasse da área, ela não se enquadrava com a sua personalidade, com aquilo que desejava fazer.

“Decidi experimentar dar aulas na Católica do Porto. Gostei muito, foi uma experiência interessante. Quando saía das aulas sentia uma satisfação imensa, uma realização interior. E decidi que queria dar o passo”. Bastaram quatro meses a dar aulas para descobrir o que gostaria de fazer. Em cinco anos, fez um doutoramento e assim começou a sua ligação à Universidade Católica de Lisboa. Actualmente tem um contrato de investigação, de três anos, com o Estado Português.

“Foi uma grande descoberta. Descobri que, a nível humano, esta é uma experiência muitíssimo gratificante. Aprendemos com os alunos, porque ao explicarmos a matéria temos de simplificar, e a simplificação bem feita implica conhecimento em profundidade. E dá-nos entusiasmo, uma razão de ser para as coisas”. Mas nem tudo foi perfeito nesta descoberta. As maiores dificuldades prenderam-se com a obtenção de financiamento para o projecto – “conseguir uma bolsa para o doutoramento é difícil, é um processo longo e competitivo” – e com a integração num meio académico cujo discurso dominante é “pouco inovador, demasiado focado no prestígio pessoal”. “Os discursos assentam muito na quantidade, falar muito e escrever muito, sem se valorizar a força das ideias”, sublinha.

O doutoramento habilita-o a dar aulas, mas a sua experiência como consultor é uma importante mais-valia. “Nas consultoras recebemos formação para formar novos quadros e sobre competências comunicacionais, que acabam por contribuir para a docência”. Além disso, e fora do ensino, leva já um longo percurso ligado às Artes, mais concretamente à música e à pintura, porque acredita que as Artes desenvolvem competências laterais, tanto no que respeita ao tratamento da informação como à sua transmissão, sendo “experiências com sinergias importantes para a docência”. O futuro desejado por Miguel passa por “investigar, publicar e dar aulas”, trabalhar como professor “até aos 70 anos, no mínimo”.

 

 

TOMÁS CARNEIRO

O diálogo no centro de todo o percurso

 

Não seguiu a vertente pedagógica do curso de Filosofia, porque não tinha interesse em dar aulas. Seguiu a vertente de investigação, mas a necessidade de ter algum dinheiro fez com que Tomás Carneiro (34 anos) começasse a dar explicações de Filosofia numa academia de estudos.

“Reparei que os meus alunos tinham dificuldades que não tinham a ver com a compreensão da matéria em si. A dificuldade maior era pensar de forma autónoma”. Por isso, sugeriu à directora da academia a criação de um programa de Pensamento Crítico, em que procurava ajudar as crianças a pensar. Foi então, há cerca de seis anos, que sentiu que a sua vocação seria a docência, porque aqui, mais do que na investigação, “poderia marcar a diferença”. A partir de então, começou a dinamizar uma série de actividades, dirigidas a crianças e a adultos, como ‘cafés filosóficos’, sessões de filosofia em cadeias ou oficinas de Filosofia. “A ideia era juntar pessoas para dialogarem sobre problemas da Filosofia. Para que aprendessem a dialogar, a ouvir-se, a evoluir”.

Tomás tem no currículo o exercício de várias actividades profissionais – “a Filosofia, mais do que uma profissão, era um desafio”. Foi carteiro, empregado de mesa, editor de uma revista cultural, e em todas elas recolheu a experiência do diálogo. “Não tirei o curso fechado numa biblioteca, mas em contacto com pessoas”, sublinha, reconhecendo que a importância que dá ao diálogo para a construção pessoal de cada um a retirou do seu contacto com as pessoas. A partir desse conjunto de experiências e da prática adquirida com os seus alunos, nos últimos anos, compilou técnicas, dinâmicas e competências, e percebeu que poderia passar a técnica de diálogo aos professores: “o diálogo é um instrumento pedagógico para utilizar nas aulas”. E é isso que ele faz, enquanto formador de professores.

Responsável pelo programa de formação A Filosofia Prática e Pensamento Crítico, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, é formador, mas também professor do programa “Filósofos a Brincar” – um programa com crianças que faz parte das actividades de enriquecimento curricular em alguns colégios privados. A principal dificuldade que este empresário em nome individual encontra na formação é a diferenciação do papel do professor.

“Pretendo fazer com que o professor deixe de ser professor”, já que ao facilitar o diálogo com os seus alunos, ele está a deixar de ser professor, criando uma situação em que todos são iguais. Já no programa com crianças, “a dificuldade é mostrar a pertinência da Filosofia com crianças a pessoas para quem a Filosofia tem uma carga muito pesada”.

Conseguir fomentar a filosofia com crianças nas escolas, continuar a ter sucesso na formação dos professores e evoluir ao nível das competências pessoais e científicas, são as expectativas profissionais de Tomás, que quer passar a mensagem de que o ensino através do diálogo complementa o ensino tradicional. “Se querem cultivar o pensamento crítico nos alunos, tem de haver um diálogo real”, conclui.

 

Maria João Leite (textos)

Gonçalo Moreira da Silva (fotografias)


  
Ficha do Artigo

 
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