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Peniche: memória da resistência

No forte de Peniche há dois museus que partilham o mesmo espaço, o da fortaleza. O Museu da Resistência e o Museu Municipal. O primeiro evoca a funesta utilização do lugar durante a ditadura do Estado Novo, quando o forte se transformou em presídio político. E, aproveitando a efeméride, constitui uma boa hipótese para quem optar por uma “escapada” no fim-de-semana prolongado do 25 de Abril.

 

O regime deposto em Abril de 1974 converteu a velha fortaleza – cujas pedras mais antigas datam do século XVI – em prisão política a partir de meados da década de 30 do século passado, dando continuidade a uma utilização que já vinha dos tempos das guerras liberais. Durante o período do Estado Novo, muitos resistentes anti-fascistas passaram pelas celas da fortaleza, como foram os casos de Álvaro Cunhal, secretário-geral do Partido Comunista Português e do historiador António Borges Coelho. O forte de Peniche desempenhou, efectivamente, um papel importante no dispositivo de repressão construído pelo regime ditatorial do Estado Novo. O forte foi durante cerca de 40 anos um dos lugares de eleição do regime para a clausura de algumas das vozes que mais se exprimiram contra a ditadura.

Mesmo acolhendo o Museu Municipal de Peniche, que ocupa várias salas, é essa condição de presídio político que mais impressivamente marca o espaço museológico instalado na fortaleza. Por razões óbvias, foi mal acolhida a ideia de se construir no interior do forte uma pousada de luxo, projecto que parece, para já, suspenso ou abandonado. O arquitecto Siza Vieira, que chegou a estar envolvido no estudo do projecto, juntou-se às vozes que contestam a ideia e sublinhou a inconsequência que significaria tal projecto. Por razões arquitectónicas, mas também por razões de incompatibilização de funções: uma hospedaria turística implantada num edifício histórico, cuja dimensão de memória está referenciada a um alargado e infausto período do século XX português.

Também a associação Não Apaguem a Memória (NAM) se tem batido desde há muito contra tal extravagância, considerada uma desvalorização do património simbólico do lugar, e tem defendido a constituição de “um roteiro nacional da liberdade e da resistência” que ocupe lugares e edifícios que se tornaram referências importantes na resistência à ditadura salazarista. Por outro lado, há historiadores, como sublinha a NAM, que têm salientado que o forte de Peniche pode tornar-se um espaço privilegiado para acolher um centro de estudos e um espaço de preservação da memória da resistência.

 

 

Do acervo municipal à memória da barbárie

As colecções que formam o espólio do Museu Municipal são, de uma forma geral, semelhantes às que encontramos noutras instituições congéneres. A singularidade do Museu Municipal de Peniche consiste na sua instalação num dos lugares mais fortemente simbólicos da história de Portugal no século XX. A par do acervo municipal, que ocupa parte de um dos pavilhões da fortaleza, há uma série de espaços que invocam a sua infausta utilização pela ditadura – justamente a ala correspondente ao Museu da Resistência.

Testemunhos da pré-história local, de actividades de arqueologia subaquática e da vida económica da terra e das gentes locais constituem o essencial do Museu Municipal. O espólio inclui também um conjunto de objectos organizados sob a temática A Pesca e a Construção Naval, assim como uma evocação histórica, em imagens, da povoação – o núcleo Memórias de Peniche – e uma colecção de rendas de bilros da região. Num dos pisos superiores, há uma sala dedicada ao arquitecto Paulino Montês, que reúne uma série de objectos pessoais, projectos, publicações e alguma pintura da sua autoria.

O núcleo do Museu da Resistência abrange a zona do parlatório, onde tinham lugar as visitas aos detidos, e o terceiro piso, onde funcionaram as celas de alta segurança e onde se reconstituem, agora, os espaços ocupados pelos detidos. Numa dessas celas esteve detido Álvaro Cunhal e nela se conserva um pequeno conjunto de desenhos feitos em Peniche. Nesse sector localiza-se, também, a cela conhecida como “segredo”, onde eram infligidos aos prisioneiros os castigos mais severos.

No espaço do parlatório é possível observar alguns exemplos da correspondência dos presos interceptada e documentos internos das autoridades prisionais e da polícia política, nos quais são mencionados aspectos da relação dos presos com os familiares e com o mundo exterior. Aí está exposto, entre outros documentos, o manuscrito de um poema de António Borges Coelho musicado por Luís Cília nos anos 70. É uma das mais belas composições de Cília e um notável soneto que fala em simultâneo do ambiente social de Peniche e da experiência do prisioneiro:

As traineiras abrigam-se na barra,
os mastros em fantástico arvoredo.
São peixes coloridos, de brinquedo,
e eu o triste rapaz que solta a amarra.

Os telhados reúnem-se no largo,
assembleia de pobres e crianças.
Em falas, cantos cobram-se esperanças.
Homens chegam do mar com rosto amargo.

Lá baixo a vaga escreve na muralha
a história destes muros. Toda em brios
salta adiante o Baleal e falha.

E na gávea da velha fortaleza,
fico a seguir o rumo dos navios,
num choro de asas de gaivota presa.

Humberto Lopes (texto e fotos)


  
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