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Era uma vez… um contador de histórias a tempo inteiro

Em boa hora, a arte de contar, a beleza e a criatividade do imaginário do conto tradicional português ganham lugar de relevo, renascendo num universo social e cultural que cruza gerações.

 

Sabe que já não é o único com dedicação exclusiva ao “ofício” e fala com admiração dos companheiros que, de norte a sul do país, e nas ilhas, vão percorrendo os caminhos desta nobre arte, redescoberta e valorizada nos últimos anos. A PÁGINA fez-se à estrada com António Fontinha, o primeiro contador de histórias profissional do pós-25 de Abril, conhecido em todas as regiões, ouvido e aplaudido calorosamente, desde 1992, em escolas, teatros, colectividades e outros espaços sociais em dezenas de concelhos, por uma legião de amigos: desde os frequentadores do jardim-de-infância aos “seniores” – palavra mediática para designar hoje os nossos velhotes –, passando por turmas do Secundário que estudam a tradição oral na disciplina de Português.

Aproveitámos uma curta viagem entre Mafra e a Nazaré para conhecer melhor este militante da cultura, homem simples e interventivo (como prova a sua colaboração com o Chapitô, junto dos jovens tutelados pela Direcção-Geral de reinserção Social), solidário, cidadão de diálogo fácil, muito profissional, de agenda sempre cheia, profundamente empenhado no seu trabalho e que não foge à pergunta ou à curiosidade mais “radical” do jornalista de serviço.

Se já pensei em ter um agente? Não vale a pena... Apesar de ter muito mais dificuldades em planificar a agenda do que em contar, gosto de falar directamente com quem me procura. E a coisa tem corrido bem. Neste momento, já só posso aceitar marcações para depois de Agosto.

Vamos a caminho do Centro Social de Famalicão da Nazaré, freguesia a escassos 8 quilómetros da carismática praia do oeste, onde nos espera um dos seus dirigentes, Rui Manuel Oliveira (um bancário que abraçou o voluntariado), e, especialmente, um grupo de crianças acompanhadas pelas suas educadoras. Em perspectiva, mais uma sessão dedicada ao conto tradicional.

Já perdi a conta, sinceramente. Já ultrapassei várias vezes as mil... Mas cada sessão é um desafio…

António Fontinha não precisa de camarim. Nem transporta qualquer material de apoio consigo: nem papéis, nem cábulas, nem portátil.

Está aqui tudo gravado (aponta para a cabeça). Não me costumo esquecer de nada, mas há sempre lugar ao improviso…

Sente-se no nosso companheiro de viagem, embora ténue, um certo nervoso miudinho, próprio dos artistas antes de subirem ao palco. Fontinha, com formação na área do teatro, não sabe trabalhar mal e não vai, certamente, desapontar a exigente plateia…

Um dia de trabalho são normalmente quatro sessões. Cuidados com a voz? Não fumo e bebo muita água.

Os (futuros) amigos de palmo e meio, que se vão acomodando no chão, olham com curiosidade aquela figura alta e magra, de roupa escura, de olhar muito vivo, que vai saudando os participantes na aventura daquela fria manhã de Fevereiro, no salão do Clube Recreativo Estrela do Norte, envolvendo crianças que frequentam o centro social e o jardim infantil do Agrupamento de Escolas da Nazaré. Rui Oliveira e os outros dirigentes presentes já ouviram falar de António Fontinha e do seu trabalho – o próprio conta-nos que já andou por aquelas bandas –, mas nunca assistiram a nenhuma sessão. Não fazem ideia de como é possível segurar aquele público durante uma hora: sem imagens, sem música, sem recurso a novas tecnologias…

Animador e plateia estão agora frente a frente. Fontinha não precisa de muita iluminação na sala. Apresenta-se em poucas palavras e começa, logo de seguida, a narração. As mãos e o corpo também falam. O tom de voz oscila entre o baixinho e o vozeirão forte, que por vezes quase assusta os mais desprevenidos. Fechamos e abrimos os olhos e ficamos com a sensação de uma banda desenhada sem papel. As personagens das histórias ganham vida, cor e forma. É a magia da comunicação…

António Fontinha começou, desta vez, com a jóia da coroa: “A raposa e as Sardinhas”. Antes, durante e após cada história há um tratamento pedagógico da informação, com perguntas e respostas sobre as personagens, sobre as características dos animais, sobre as plantas e as árvores, sobre a vida das pessoas na aldeia e na cidade, etc. As crianças acabam por participar no verdadeiro sentido da palavra. A seguir veio a história dos “Dois Irmãos”. O entusiasmo e a atenção permanecem. Aqui e ali algumas risadas, porque esta história também tem passagens de humor. Fontinha não revela cansaço. Escuta nova onda de palmas, só que desta vez acompanhadas de um grito que se foi habituando a ouvir, e que, dias depois, voltará a escutar em escolas de Viseu: “Conta mais uma!”. Lá mais para diante, estará em contacto com jovens e crianças de Coimbra, Seia, Mafra, Santa Comba Dão, Vale de Cambra e Porto.

Setenta por cento das minhas sessões decorrem em escolas.

Às crianças de Famalicão da Nazaré, claro, acabou por contar mais uma história, e bem interessante – “O rouxinol”. O mundo dos animais fascina as crianças.”Qual é o animal que mais aparece nas histórias que se contam em Portugal?”, interrogou Fontinha. As crianças respondem energicamente: o cão, o cavalo, a raposa e... Por fim, lá apareceu o lobo. Mas se as histórias com animais fascinam as crianças, pelo que vimos também não deixam indiferente o nosso companheiro de viagem, incansável contador, a caminho dos 45 anos, que já levou a sua arte além-fronteiras.

Saí pela primeira vez em 1995 e no Maraton de los Cuentos, em Guadalajara (Espanha), a convite do Instituto da Biblioteca e do Livro, descobri um mundo novo. Depois surgiram oportunidades para contar em Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e França. Recentemente estive na Argentina e em Março irei à Bélgica.

O conto tradicional está vivo um pouco por todo o mundo. E António Fontinha fala desta realidade com muito entusiasmo.

Sei que há uma enorme diversidade cultural para partilhar e Portugal, com encontros de contadores de histórias como o ‘Palavras Andarilhas’ (em Beja) ou o ‘Estória, História’ (S. Pedro do Sul), está a posicionar-se de forma coerente e interessante.

Investigador responsável por várias campanhas de recolha de contos (Palmela, Portel, Alijó, Oliveira de Azeméis, S. João da Madeira e Santa Maria da Feira), procura, sempre que possível, registar o que escuta. Investigar, ler, recolher material pelo país fora, em contacto directo com muitos homens e muitas mulheres que retiveram um património deixado por pais e avós, faz parte do dia-a-dia de António Fontinha, que não deixa morrer heranças (muitas vezes) esquecidas.

Trata-se de um universo muito rico, com uma gama muito variada de contos que foram passando de geração em geração. Histórias ouvidas à volta da lareira, em casa, em círculos familiares e de amigos; também nos velórios. Histórias para crianças, histórias para todos e só para adultos, histórias que ficam e que é preciso divulgar, sendo esta a melhor atitude para a sua defesa.

A alguns leitores certamente ocorreu-lhes à memória o que Michel Giacometti fez pela música popular portuguesa. Ao escriba também: Fontinha poderá vir a ser o Giacometti do conto tradicional português. Força, amigo!

José Paulo Oliveira

 

NOTA

O interesse dos intelectuais pelo conto popular surgiu no século XVII, quando Charles Perrault publicou (1697) a primeira recolha de contos populares franceses, que incluía histórias como “A Gata Borralheira”, “O Capuchinho vermelho” e “O Gato das Botas”. Depois, esse interesse acentuou-se com os trabalhos dos irmãos Grimm, na Alemanha (século XIX ). Em Portugal, destacaram-se Adolfo Coelho – organizou a primeira recolha sistemática (Os Contos Populares Portugueses, 1879) –, Teófilo Braga, Leite Vasconcelos e Consiglieri Pedroso. E o próprio Almeida Garrett recolheu no seu «romanceiro e Cancioneiro Geral» numerosas narrativas em verso, que são, afinal, parentes próximas do conto popular.


  
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