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Debater o currículo para transformar a Escola

Aprofundar o debate e o espaço de reflexão em torno dos estudos curriculares foi o propósito que juntou, no Porto, alguns conceituados investigadores portugueses e brasileiros. O encontro proporcionou não apenas o debate sobre o currículo e as suas políticas, fundamentos e práticas, mas também a divulgação de alguns dos projectos de investigação que têm vindo a decorrer em ambos os países.

 

De 21 a 23 de Junho decorreu na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (FPCEUP) o IX Colóquio Sobre Questões Curriculares / V Colóquio Luso-Brasileiro. A conferência de abertura, intitulada A Escola do Século XXI – O Currículo Entre Políticas e Práticas: conflitos, paradoxos e perspectivas, teve como oradora Ana Benavente, ex-secretária de Estado da Educação, que abordou, em síntese, a construção da Escola na primeira década deste século, realçando as tendências e contradições que estruturam, orientam e concretizam o currículo.

Ao longo dos dias seguintes, foram apresentadas quase três centenas de comunicações e realizadas diversas mesas-redondas que incidiram sobre questões tão abrangentes como a relação do currículo com a epistemologia, a equidade e a qualidade, culturas, contextos educacionais, aprendizagens e trabalho docente, criatividade, formação de professores, tecnologia, avaliação e Ensino Superior – temáticas que proporcionaram aos participantes a oportunidade de debater o mandato educativo das escolas nas sociedades contemporâneas, bem como as questões da igualdade/desigualdade, da diferença e da inclusão escolar, da articulação da educação escolar nos seus diversos níveis e o desenvolvimento económico, cultural e tecnológico das sociedades actuais.

O colóquio permitiu, igualmente, prosseguir o debate em torno da identidade e unidade epistemológica desta área científica. “Uma das questões que se coloca sempre que se discute a perspectiva teórica do campo dos estudos curriculares é o da sua própria identidade”, explicou à PÁGINA José Augusto Pacheco, do Centro de Investigação em Educação da Universidade do Minho e principal dinamizador desta iniciativa.

“No fundo, trata-se de saber qual é o quadro sinóptico, em termos teóricos, que o campo dos estudos curriculares deve seguir, já que, embora pertencendo às Ciências da Educação, tem importado muitos conceitos de outras ciências, muitas vezes de uma forma anárquica, originando leituras muito diferentes e antagónicas. Situação que acaba por colocar um problema de identidade bastante grande”, refere o docente do Centro de Investigação em Educação da Universidade do Minho e principal dinamizador desta iniciativa, concluindo que aos estudos curriculares “falta uma linguagem específica que una e ponha todos os investigadores de acordo e proporcione uma identidade mais coesa”.

 

 

Maria Teresa Estrela, investigadora e professora do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, concorda com esta avaliação e defendeu na sua intervenção que um congresso desta dimensão necessitaria de um “pós-congresso” que procedesse a uma triagem para colocar em evidência “aquilo que nos une a todos e que poderia ser um ponto de partida para a construção de tal identidade”, através de uma análise não só dos discursos, mas, sobretudo, das práticas de investigação e dos conceitos teóricos que estão por trás dela. Mais ainda, diz, quando “este é um campo onde se cruzam imensos interesses e propostas de entendimento”.

Um conjunto de desafios que justificam quer a produção de dispositivos teóricos e metodológicos mais capazes de evidenciar a complexidade dos objectos de estudo dessa área, quer o alargamento da própria área de Estudos Curriculares a novos espaços temáticos, como as questões do currículo no Ensino Superior.

Neste sentido, considera José Carlos Morgado, do Departamento de Estudos Curriculares e Tecnologia Educativa da Universidade do Minho, é necessário “contrariar a lógica disciplinar e departamentalizada da Universidade”. No fundo, diz, alinhar com Boaventura Sousa Santos quando defende que se deve “passar de um conhecimento universitário para um conhecimento pluriversitário”, ou seja, deixar de lado o conhecimento espartilhado em função dos campos disciplinares e passar para um conhecimento mais heterogéneo e interdisciplinar.

O currículo é, nessa medida, “o espaço por excelência para poder contextualizar ou reconfigurar essas intencionalidades”, defende Morgado, acrescentando que “é a este nível da produção do saber e do conhecimento, e do desenvolvimento da própria pessoa, que nós podemos conciliar todas estas perspectivas”. No entanto, isso só será possível “se conseguirmos que, ao mesmo tempo, os professores mudem também as suas práticas”, sublinha.

Acima de todas as questões que perpassaram o encontro e da diferença de posições assumidas, ele deverá ser encarado, sobretudo, como “um espaço que está a contribuir para essa troca e enriquecimento mútuo, que é afinal aquilo que faz avançar o conhecimento”, como resumiu à PÁGINA António Flávio Moreira. Até porque “o currículo está longe de ser um território pacífico”.

 

 

ANTÓNIO FLÁVIO MOREIRA

“O currículo está longe de ser um território pacífico”

 

António Flávio Moreira é professor da Universidade Católica de Petrópolis, no Brasil, e um prestigiado investigador e autor na área do currículo e do multiculturalismo. Trabalhando, sobretudo, ao nível da docência e da formação de professores, bem como na orientação e coordenação de projectos de investigação, é um dos principais dinamizadores do encontro luso-brasileiro referido nas páginas anteriores.

 

Que balanço faz do colóquio realizado na FPCEUP?

Eu penso que o campo do currículo está a atravessar um momento de internacionalização, no qual investigadores de diversos países – ao mesmo tempo que preservam as suas tradições e buscam soluções para os problemas dos respectivos países – se unem e se articulam, procurando abrir-se a outras experiências, outras teorias e outras ideias. Este processo, no que se refere às relações entre Brasil e Portugal, tem sido facilitado, na minha opinião, pelos colóquios luso-brasileiros sobre questões curriculares, que já se realizam há dez anos e nos quais temos contado com um público renovado e aumentado a cada novo evento. Além do mais, penso que o nível geral dos encontros tem tido uma qualidade crescente, nomeadamente a nível dos trabalhos apresentados e das conferências, algumas das quais já contaram com contributos internacionais. Nessa medida, é um espaço que está a contribuir para essa troca e enriquecimento mútuo, que é afinal aquilo que faz avançar o conhecimento.

Porquê esse interesse crescente pelo currículo?

O campo do currículo é central em termos de Educação, ele é o coração da Escola, e nessa medida a sua importância é indiscutível. E essa importância tem levado a que a necessidade de debate seja cada vez mais reconhecida. Isso reflecte-se, nomeadamente, no número de investigações, dissertações e teses que abordam o currículo, que tem aumentado nos últimos anos, quer no Brasil, quer em Portugal.

Concorda com a ideia de que o currículo tem uma faceta política cada vez mais importante?

Com certeza. Ele sempre teve e sempre terá essa faceta, não há como negar nem negligenciar esse facto. Porque ele envolve opções referentes a conhecimento, a valores e a estratégias, a que tipo de homens e de mulheres se deseja formar, que tipo de sociedade se pretende ajudar a construir e que tipo de valores se deseja ver adoptados, sendo, portanto, uma discussão política. Essas decisões e esses debates são sempre perpassados por questões de poder, por vozes que tentam fazer-se ouvir com mais intensidade do que outras. E o currículo está longe de ser um território pacífico – ele envolve sempre conflito, discussão, negociação, algumas vezes acordo, outras vezes desacordo, mas não pode ser, nem nunca será, um território neutro ou pacífico.

Defende um maior protagonismo do poder local e das próprias escolas na definição tanto das políticas educativas como, por inerência, na definição do currículo. O que implica essa perspectiva?

Durante muito tempo, a estratégia para planeamento e definição dos currículos, no Brasil, e penso que igualmente noutros países, assentava na consulta ou na formação de um grupo de especialistas, que trabalhava numa sala do Ministério da Educação e apresentava posteriormente regulações e directrizes para todo o país. Apesar de isto já não acontecer assim, não considero, porém, que se deva passar agora para o extremo oposto, deixando que tudo corra ao sabor do ritmo, da vontade e dos interesses da Escola. Penso que é necessário haver um certo equilíbrio, alguma indução por parte do Governo e ao mesmo tempo uma vasta autonomia para que a Escola possa exercer a sua criatividade. O grande parceiro desta mudança terá de ser, na minha opinião, o órgão local de governação – no caso do Brasil, a Secretaria Local de Educação –, sem pretender que ele imponha pontos de vista ou decisões, mas que participe, de facto, como parceiro, trazendo recursos, ouvindo e apoiando a Escola. Na área da Educação nada é fácil, mas um processo como este será viável se conseguirmos entender que não se trata de subserviência de uma parte, nem de dominação de outra, mas sim de uma parceria.

Ricardo Jorge Costa (reportagem)

Fotos: cortesia da FPCEUP


  
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