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A Educação é demasiado importante para ser posta no mercado

Roger Dale, colaborador da PÁGINA, é professor na Universidade de Bristol, na Grã-Bretanha, e as suas áreas de interesse e trabalho passam por temas como a globalização e as políticas educativas, sendo responsável por vários estudos e pesquisas nestas matérias. Trabalhou na Open University, no Reino Unido, foi professor na Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, e em 2003 fundou, em parceria com Susan Robertson [também colaboradora da PÁGINA], o jornal “Globalização, Sociedades e Educação”. Roger Dale esteve em Portugal no âmbito do IX Seminário Internacional do Programa Doutoral em Ciências da Educação, da Faculdade de Psicologia e de Ciência da Educação da Universidade do Porto, que decorreu em novembro. Abordou o tema “Global Citizenship Education: A seriously misleading myth”. E a conversa com a PÁGINA começou por aí.

 

A propósito da conferência sobre a educação para a cidadania global, que mito é esse?

É o mito de que podemos ter algo a que chamamos de educação para a cidadania global. É muito difícil saber o que será, porque a cidadania é historicamente nacional, nós não temos uma conceção de uma cidadania global. Então, sugiro três formas de pensarmos nisto: podemos pensar num sistema internacional de Estados, como a União Europeia; podemos olhar para isso mais popularmente como ‘fazer algo pelo planeta’ e ecologia, pois todos vivemos num mundo comum e temos de salvar isto; ou podemos usar o termo ‘global’ e com isto quero dizer ‘economia’ e é a economia que conduz. E a economia quer mudar tudo. Acabei por dizer, essencialmente, que a questão da educação para a cidadania global pode ser vista como parte de uma extensão daquilo a que podemos chamar mercado civilizacional.

Que tipo de relação há hoje entre o Estado e a Educação, tendo em conta, por exemplo, a perspetiva educativa do público “versus” privado? Estão os governos a faltar a algumas das suas responsabilidades na educação?

Estão a falhar algumas, acho eu. Há uma maior contribuição do setor privado do que havia antes. De facto, nós agora temos um caso limite: a Libéria contratou todo o sistema educativo a uma empresa privada americana, que vai tratar de toda a educação na Libéria. E isso é o mais longe que se pode ir. E podemos ver que há muitos empreendimentos, especialmente em África, oferecendo o que eles chamam de educação privada de baixo custo. E estas empresas procuram implacavelmente o lucro – isto tornou-se um negócio lucrativo. Há até uma revista chamada “Education Investor”, onde se pode ver onde colocar os investimentos em educação, onde se pode ter um melhor retorno do investimento. É incrível.

As políticas educativas são diferentes em cada país. Há uma fórmula perfeita?

Não. Mas eu penso que a educação é demasiado importante para ser posta no mercado. Então, há uma fórmula errada e essa passa por fazer dinheiro da educação. E há um aparente trabalho muito amável e caritativo, com crianças pobres em África, com o que se chamam escolas de baixo custo, que são dirigidas por grandes corporações internacionais, que têm lucro com estas crianças pobres. Mas o outro grande problema com o sistema educativo é que é este o sistema que classifica e estratifica a população. Assim, quando vamos para a escola já sabemos, num curto espaço de tempo, quem são as pessoas mais inteligentes, quem são as pessoas menos inteligentes, e elas vão continuar a progredir assim. E as pessoas mais inteligentes vão conseguir melhores empregos e as pessoas menos inteligentes, mesmo tendo tido a mesma educação… Podemos dizer que têm as mesmas oportunidades, mas de facto não são provavelmente as mesmas oportunidades. Esta é uma analogia antiga, mas é como dizer que todos começam iguais. Então, é como eu e o Usain Bolt fazermos uma corrida de 100 metros, ambos começamos na mesma linha de partida, mas penso que ele provavelmente vai ganhar [risos].

Um está mais preparado do que o outro.

Sim. Podemos fazer alguma preparação, mas o sistema também se tornou tendencioso em diversas formas. Uma questão que melhorou durante estes últimos 20 ou 30 anos, talvez, é a educação das raparigas, que estavam muito atrás dos rapazes. Não mudou completamente, mas está muito melhor, estão mais perto do que estavam antes.

Disse já, a propósito dos “rankings”, que a quantificação é uma boa ferramenta se a soubermos usar da forma correta.

Sim, está certo. E então temos o fenómeno do PISA [Programme for International Student Assessment]. O coordenador do programa, Andreas Schleicher, justifica o PISA dizendo que sem dados nós somos apenas mais uma pessoa com opiniões. Então, eu digo que sem teoria ele é só mais uma pessoa com dados.

É difícil encontrar algum equilíbrio?

Sim, mas porque isto faz um trabalho de triagem para a sociedade. Não sei, é difícil de pensar numa sociedade não classificada, mas faz um trabalho de triagem para a sociedade e fá-lo de uma maneira que é meio justificável e justa na superfície, mas esse é o dilema, porque nos focamos nos vencedores e não nos perdedores. E quem precisa das escolas? As crianças da classe média precisam da escola, mas não da mesma maneira que as crianças de famílias da classe operária e da classe baixa, para quem a escola é a única oportunidade. Os miúdos da classe média têm imenso capital cultural, o que tem uma importância imensa. Os outros miúdos também têm, todos têm capital cultural, mas há uma grande diferença. Os miúdos vão para a escola e não sabem o que é valorizado – eles vêm de uma casa onde provavelmente têm dois pais iletrados e isso é uma grande desvantagem. Então, não deveríamos fazer alguma coisa? Aquelas pessoas precisam mais de educação do que as outras.

Houve uma experiência fantástica, em Londres, talvez há 40 anos, com os filhos de famílias da classe operária irlandesa e da classe média, muito profissionalizada. Andavam todos na mesma escola e havia uma enorme diferença entre eles. Então, um dos professores convenceu o diretor e alguns outros professores de que a escola devia ser organizada de forma a que aqueles que precisavam mais tivessem mais. Assim, para ele, os miúdos da classe média podiam ir para salas com 60 alunos e os miúdos da classe operária iam para grupos mais pequenos, onde pudessem ser ensinados separadamente. E eles fizeram isso. Foi uma coisa fantástica.

E ainda funciona assim?

Não. O diretor e o professor que causou o problema foram demitidos. Isso durou menos de um mês. Nem todos os professores concordaram e houve grandes discussões entre os professores. Mas foi fantástico ter sido permitido. Foi um escândalo nacional e esteve nas primeiras páginas dos jornais.

Mas não é difícil identificar todos os problemas, todos os anos, e aplicar isso na escola?

Devia ser possível fazê-lo. Bem, provavelmente fazem isso em muitas escolas, se calhar até têm testes de entrada, um teste de QI, e depois distribuem os alunos nas turmas. Penso que isso não ajuda nas aulas, porque o que os miúdos aprendem todos os dias é que são inferiores, e ao fim de dois anos na escola eles sabem que são inferiores e que nunca serão como os outros miúdos. E é assim para o resto das suas vidas. É por isso que existe uma grande divisão no Reino Unido. E é sobre isso que é o Brexit. É indignação. As pessoas mais espertas querem estar na Europa, não pelo que podemos fazer por ela, mas pelo que ela pode fazer por nós.

Muitos dos que votaram a favor do Brexit eram de zonas mais rurais...

Sim. E também das antigas cidades operárias, onde as indústrias estão a desaparecer. E é um fenómeno similar com o do [Donald] Trump.

O mundo está a mudar. Ainda precisamos do tipo de escola a que estamos habituados?

Penso muito sobre isso. O problema é que é preciso pensar como organizar isso, e eu não consigo ver como.

Mas como podemos adaptar as escolas a estes novos tempos?

Bem, a ideia de que precisamos de uma espécie qualquer de mecanismo de classificação vai ficar. Usar a educação como mecanismo de triagem parece ser legítimo, as pessoas entendem-no como legítimo, e isso é o mais difícil, porque é normalmente a voz do mais bem-sucedido que é ouvida. Uma das ideias-chave que precisamos de manter na educação é que é o único componente da sociedade que é obrigatório para toda a gente. Toda a gente tem de ir para a escola. E penso que isso é maravilhoso. Mas o que é que eles aprendem? Isso é diferente.

Em 2010, escreveu na PÁGINA algo sobre o conhecimento realmente útil.

Sim, mas no século XIX – um movimento da classe trabalhadora que votou por um conhecimento realmente útil. O que é que eles queriam dizer com conhecimento realmente útil? O que eles podiam usar nas suas vidas. Não o conhecimento da escola. E isto é muito interessante. É uma possibilidade. Estabelecer um sistema paralelo, quase. O que precisamos hoje é de um conceito de conhecimento realmente útil, isso seria um bom princípio. Não sei como seria, nem quem o diria, mas o que é que é preciso saber?

O que faz um bom professor?

Não sei. Um bom professor para quem? Alguém que eu ache que seja um bom professor pode não ser necessariamente um bom professor para outros. Consigo pensar em dois exemplos. Um professor de artes manuais – e eu sou completamente inútil nessas coisas –, era um bom professor, mas não para mim. Havia miúdos com trabalhos de madeira tão bons como os dos professores. E não há nenhum problema nisso. E um outro, que nos dois últimos anos de escola, teve de ensinar-nos, mas não tinha programa. E então disse que íamos ler umas peças e alguma poesia, e depois falar sobre isso. Aí comecei a aprender coisas, não porque estavam nos manuais, mas porque eram interessantes. Sempre achei muito difícil ensinar com programa, não gosto de ficar só por isso. E os miúdos depois perguntam: ‘Desculpe, isto vai sair no exame?’.

As escolas só trabalham para os exames?

É muito difícil elaborar um exame que consiga fazer com que eles expressem algo mais. Estive na Nova Zelândia, numa classe enorme; estavam 800 alunos nessa aula, não havia um espaço suficientemente grande e então eu tive de dar a aula três vezes. Então, ingenuamente, disse-lhes uma vez que tinha feito algo um bocadinho diferente do que havia feito essa manhã, porque estava interessado nisso. Ouvi: ‘OK, que parte é que vai sair no exame?’ [risos]. As pessoas trabalham muito para fazer um currículo interessante, fazer com que as coisas se encaixem. Isso é outra coisa que os bons professores podem fazer. Eles podem mesmo fazer as coisas ligarem umas com as outras. O que é formidável. É bom saber o programa e estar apto a responder às coisas nos exames, mas também é bom perguntar por que é que isso é importante.

Mas os professores podem tornar interessante a forma como passam o conhecimento, do currículo, aos alunos...

Bem, acho que houve esforços em Inglaterra, há uns anos, na questão do ensino da leitura e da Aritmética, penso. Havia um guião, os professores tinham de seguir o guião e alguém ia conferir se eles estavam a seguir o guião. Isso era absolutamente… Houve uma tentativa de parar com isso e penso que isso já não existe. Isto vai muito atrás no tempo, ao tempo do Sputnik. Quando os russos o lançaram, os cientistas americanos ficaram furiosos, questionaram-se sobre como estavam a ensinar Física nas escolas, e então elaboraram o currículo perfeito. ‘É assim que se deve fazer!’. Mas descobriram que os professores não o podiam ensinar. Então, e estou a falar a sério aqui, disseram que tinham de encontrar um currículo à prova de professores [risos]. ‘Temos de encontrar um currículo que os professores não estraguem…’ Quer dizer, mas então para que são precisos os professores?

Sente que a profissão docente está envelhecida?

Parece ser o caso. Quer dizer, cada sistema nacional é um caso particular, mas não acho que o ensino seja visto como um trabalho particularmente atrativo, comparado com o que era antes. Não é muito bem pago. E muitos pensam que todos os professores são inúteis, excetuando aqueles que eles conhecem.

Mas acha que são respeitados enquanto classe?

Parte disso é por causa do que está em risco nos resultados do ensino, nos resultados da educação. Isto agora importa de uma forma que não importava antes. E é isso que faz com que os pais entrem na loucura de muitas vezes mudarem de casa. Lembro-me de um caso na Nova Zelândia, onde têm escolas divididas em zonas. Numa escola de determinada zona residencial, um miúdo ficou doente e na escola disseram que tinham de entrar em contacto com os pais. Perguntaram a morada dele e ele só dizia ‘não sei’. A questão é que os pais viviam fora daquela zona e eles instruíram-no a dizer que não sabia onde morava se alguém perguntasse. Há coisas assim a decorrer a toda a hora, imagino.

Mas considera que a sociedade e o Estado respeitam os professores?

Nunca pensei nisso assim. Agora há muitos trabalhos que requerem altas qualificações e são certamente muito mais bem pagos do que ser professor. A maioria são mais bem pagos do que ensinar. O que é um verdadeiro problema. E isso também está associado com a relutância em gastar dinheiro em serviços públicos, o que é uma coisa global, tanto quanto consigo ver.

Então é importante que os professores estejam unidos. Qual é o papel e a importância dos sindicatos?

Penso que é muito importante. E especialmente importante, por exemplo, a Internacional de Educação. É muito bom. Eles fazem um trabalho extraordinário em todo o mundo. Eles entram em ação e apoiam sindicatos nacionais, quando os governos tentam fechá-los, por exemplo. Acho que os sindicatos de professores trabalham bem – acho que ainda é provavelmente uma das profissões mais sindicalizadas. Não tenho a certeza, é apenas um palpite. Eles têm de permanecer unidos e não separados.

O que podemos esperar no futuro?

Vou ser muito pessimista. Não acho que devemos esperar muita melhoria. Talvez haja, mas não estou a ver de onde venha, porque no momento a educação parece estar a fazer o trabalho que os governos querem que faça. Ou dois trabalhos: um para selecionar os talentosos e o outro para pacificar os não selecionados e fazê-los pensar que é culpa deles. Ou levá-los a isso… Por isso, não acho que isso vá mudar, acho que até vai ficar mais difícil, por causa da relutância em aumentar a expansão pública em todo o lado.

A terminar, a PÁGINA está a celebrar 25 anos. Quer deixar algum testemunho?

É fantástico. Quando vim a Portugal pela primeira vez foi em 1976, como estudante e pesquisador. Na Open University, decidimos que gostaríamos de fazer um programa sobre educação em situações de pós-revolução e então acabámos aqui, o que foi fantástico. E aquilo que me impressionou mesmo, na altura, foi o tamanho e a vitalidade das revistas de educação. Era muito diferente do que era no Reino Unido e provavelmente ainda é. Comecei a escrever para a PÁGINA. Então, agora recebo uma nota do António [Magalhães] a dizer: ‘Só para que saibas, o próximo és tu’ [risos]. Mas é ótimo, é um bom grupo de pessoas. É muito bom.

Maria João Leite (entrevista)
Ana Alvim (fotografia)


  
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