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A ação do docente é em si uma atuação ética

A Assembleia Geral do Sindicato dos Professores da Madeira (SPM) aprovou, em maio, uma Carta Ética que fala da relação dos professores e educadores com os alunos, com os colegas e a profissão, com os pais e encarregados de educação, com a comunidade educativa e com entidades externas. Não é um manual de conduta obrigatória, até porque a ética está intrínseca na profissão e em quem a exerce. É, sim, um conjunto de princípios orientadores que reforça o papel e a importância da docência e que fortalece o coletivo e a imagem para o exterior.

“A Ética representa uma dimensão intrínseca à profissionalidade”, está explicado na nota de apresentação do documento, que dá corpo ao compromisso ético-deontológico dos professores e educadores. A Carta Ética “funciona como referência interna, numa perspetiva de desenvolvimento, afirmação e consolidação de cultura reflexiva da própria comunidade docente, mas também como referência externa, contribuindo para a valorização e credibilização pública da profissão”, esclarece ainda o SPM. À PÁGINA, o presidente do sindicato, Francisco Salgueiro Oliveira, explicou o processo de elaboração do documento, a sua importância e qual o caminho a seguir no futuro.

 

A Carta Ética é um compromisso individual e coletivo.

Exatamente. O SPM achou que deveria fazer do compromisso individual que os professores assumem no seu dia a dia para com todos os participantes na educação também um compromisso coletivo. E isto tem vários objetivos. Um deles é, desde logo, dar maior visibilidade ao compromisso ético dos docentes com a profissão e com todos os elementos da comunidade educativa, em primeiro lugar, e também com os que são externos à educação. Porque os últimos dez anos terão sido os piores de uma campanha que pretende fazer dos professores uns irresponsáveis, que levam a profissão a brincar, que estão mais preocupados em ganhar dinheiro do que em dar o seu contributo para o desenvolvimento da educação e, em particular, dos jovens e crianças que frequentam as nossas escolas. Achámos, então, que através deste compromisso coletivo poderíamos tornar mais visível a responsabilidade e a seriedade com que os professores e os educadores desempenham a sua profissão no dia a dia. Este compromisso é interno, mas é também para o exterior. Quem está na profissão sabe que os professores e os educadores, na sua grande maioria, desempenham a profissão de forma séria, competente, muitas vezes com algum prejuízo da sua vida pessoal e familiar, com muito prazer, muita determinação, muita seriedade e muita entrega. Este compromisso assumido coletivamente torna isto mais visível.

Sentiram, portanto, necessidade de pôr cá fora as orientações que guiam os professores?

Sim, de uma forma quase natural. Não foi uma determinação a priori, as coisas foram acontecendo. Desde a década de 90, pelo menos, o SPM tem feito muita formação, muita discussão à volta da importância das questões éticas. Desde que criámos o nosso centro de formação, esta foi uma das linhas de discussão muito fortes. Também porque sentimos que os nossos colegas achavam importante falar das questões éticas, deontológicas, e vermos exatamente, no dia a dia, como estas questões têm influência na nossa atividade. E muitas vezes têm até de forma implícita, sem as pessoas estarem a pensar nisso. É quase algo natural, para os professores, agir de uma forma ética, de uma forma sempre comprometida para com os outros. Não é algo que seja imposto.

E as coisas foram acontecendo. Muitas ações de formação creditadas, reconhecidas como sendo importantes para a progressão na carreira, mas também informais, como congressos, jornadas pedagógicas, tertúlias, debates... Os nossos congressos já trataram as questões éticas muitas vezes. Este ano realizámos o 12º, que tratou o tema de forma explícita – o termo ‘Ética’ estava no lema, porque coincidiu com o lançamento da Carta Ética. Portanto, esta direção – que é muito recente; só estou na direção há dois anos – não fez mais do que dar expressão ao que vinha acontecendo.

A Carta Ética era um dos objetivos?

Quando assumimos a responsabilidade de dirigir o SPM, assumimos publicamente, nas Jornadas Pedagógicas de 2015, que era quase uma obrigação para nós. Não que quiséssemos impor a Carta Ética. Não, o caminho estava feito. Desde os anos ‘90 até agora, a discussão estava feita. Naquelas jornadas, passados seis meses de estarmos na direção, constatámos que tínhamos de avançar, necessariamente, porque toda a discussão estava feita, a aceitação junto dos associados era natural e praticamente unânime – e isso provou-se na votação.

Portanto, só tínhamos de dar rosto ao que estava feito, e foi nesse sentido que avançámos. Nessa altura, também dissemos que iríamos aproveitar o trabalho feito para, então, também darmos um sinal para o exterior. Portanto, a Carta não surgiu como uma necessidade de dar uma resposta para o exterior: pensámos que, como o caminho já estava feito internamente, e no contexto em que vivemos – ainda de alguma ressaca do ataque feito aos professores desde 2007 –, podíamos aproveitar a Carta Ética também como um sinal para o exterior, dizendo que nós, professores e educadores, não somos aquilo que muitas vezes querem fazer crer.

O processo demorou algum tempo. Foi difícil concretizar, pôr em papel o que já existia?

Foi mais pela dificuldade logística de passar o que tínhamos para o papel, por causa da muita atividade que temos. Foi difícil a direção parar e ter tempo para tratar o documento de uma forma aprofundada. A discussão estava feita, a aceitação junto dos sócios estava feita, faltava concretizar em papel. E essa foi uma parte difícil. Chegámos a pensar apresentar a carta no dia 5 de outubro do ano passado, Dia Mundial dos Professores, e não conseguimos. Porque quem está nas direções sindicais sabe que a atividade vai acontecendo em catadupa e é muito difícil parar para desenvolver trabalhos que exigem uma dedicação quase exclusiva.

E foi aí que entrou a mão da Isabel Baptista [diretora da PÁGINA], que conseguiu claramente uma redação que nos agradou. A Isabel é uma das grandes responsáveis desta carta e estamos-lhe muito agradecidos por isso, porque era importante termos uma pessoa que está tão por dentro do debate, da discussão em termos éticos. Portanto, nós sabemos que temos uma boa carta ética, e sabemo-lo porque temos a Isabel connosco.

Quais são as implicações da ética na atividade docente?

É algo que faz parte do docente. Não vemos a ética como algo que precisamos de ir buscar e juntar à profissão para a exercer bem. A ética é algo que está com os professores e se faz sentir no dia a dia. Quando o professor está a trabalhar com um grupo de alunos e se preocupa que eles tenham um desenvolvimento integral, quando trabalha com alunos tão diversos, o professor não está a pensar ‘o que é que eu preciso aqui da ética para agir?’. Não. O professor respeita os princípios da carta universal dos Direitos do Homem, dos Direitos da Criança e a recomendação da OIT/UNESCO sobre a condição docente; as pessoas conhecem esses princípios, mas no dia a dia não estão a pensar qual o princípio que têm de aplicar. Acho que as implicações são naturais; a própria ação do docente é em si uma atuação ética.

E com a atividade sindical? A carta fortalece o coletivo, mas também traz mais responsabilidades...

Em termos sindicais, as implicações são outras, até porque nem todos acham que falar de ética é sindical. Quer dizer, as pessoas não dizem que as questões éticas não são importantes, ninguém põe isso em causa, aceita-se isso com naturalidade. Agora, assumir a ética como algo importante para um sindicato, isso já não é aceite universalmente pelos sindicatos. O SPM acha que fortalece o coletivo. Atrevo-me a dizer que, para nós, há uma ética natural para os professores, mas, como sindicato, vai mais longe, porque não é só o nosso compromisso de respeito e de ajuda para com os outros, de darmos o nosso melhor… Não. Como sindicato, para nós, também é ética a necessidade de reivindicação. Nós agimos eticamente com os nossos alunos, de forma natural, mas para agirmos assim precisamos de condições; para trabalharmos bem na escola precisamos de ser respeitados pelos órgãos de gestão, por exemplo, o que muitas vezes não acontece.

Os professores estão disponíveis para dar o melhor de si, mas só o podem fazer se tiverem condições para agir, se não houver assédio moral, se houver boas condições físicas. Caso contrário, para nós também é ético dizer que o professores não podem trabalhar nessas condições. Portanto, em termos sindicais, isto fortalece claramente o coletivo e, mais do que isso, responsabiliza-o. Porque como sindicato sentimo-nos comprometidos a fazer tudo para que os nossos colegas tenham condições para exercer devidamente a sua função, não só em termos físicos, como morais.

A elaboração da vossa carta ética deve servir de exemplo a outros sindicatos?

Não me atrevo a tanto. Não temos essa pretensão, sinceramente. Certo é que da nossa parte surgiu esta necessidade e foi quase uma exigência de muitos dos nossos sócios que avançássemos para aqui. Mas tenho de ter algum cuidado, porque não sei se as pessoas estão no mesmo ponto de maturação que nós estávamos quanto a isto. E também porque os sindicatos têm diferentes sensibilidades quanto às questões éticas. Não conheço ninguém que não considere fundamental ter em conta as questões éticas, mas ver isto como algo sindical… Há muita divisão.

Qual foi o impacto da carta?

Ainda estamos numa fase pós-votação. A carta foi votada e aprovada em maio, praticamente no final do ano letivo, que é sempre uma altura muito movimentada para a atividade sindical. Entregámos a brochura a todos os sócios no princípio do ano letivo. Evidentemente, temos agora muito caminho a percorrer. Desde logo, com o nosso Conselho Consultivo, de que fazem parte, por exemplo, a Isabel Baptista, o António Nóvoa, o António Teodoro, o Brício Araújo, a Guida Vieira e a Manuela Teixeira. Portanto, tudo referências a nível nacional e a nível regional; queremos debater com eles o que aqui está, para que nos dê algumas orientações. Um aspeto importante: isto é uma carta em aberto. Ou seja, se virmos que os princípios aqui considerados, os compromissos relacionais aqui compilados, não estão descritos da melhor forma, podemos alterar e acrescentar outros. Portanto, o trabalho continua, a discussão continua, adaptando-se sempre às novas realidades.

O caminho a seguir é, então, de reflexão e debate.

Exatamente. A reflexão continua. E agora é mais fácil, porque há aqui uma base consistente. Anteriormente, havia informação dispersa, conforme o que fazíamos. Agora esta é a referência. Temos de nos focar e, a partir daqui, adaptar à realidade. Portanto, o debate está sempre em aberto. Até porque as questões éticas são algo sempre em evolução. A educação tem sofrido muitas alterações e a Carta Ética tem de acompanhar sempre esta evolução. Porque no dia a dia, os professores são confrontados com novas realidades, e se essas realidades exigem uma nova atuação da parte dos professores, nós temos de refletir qual será a melhor forma de dar expressão a essa ética de atuação.

Maria João Leite (entrevista)
Henrique Borges (fotografia)


  
Ficha do Artigo

 
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