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Se o mundo muda, os currículos e a escola têm de mudar

Recentemente eleita e empossada na Assembleia da República, Maria Emília Brederode Santos é a nova presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE) – casa que conhece bem, uma vez que já cumpriu diversos mandatos como conselheira e coordenou várias comissões especializadas permanentes. Licenciada em Ciências da Educação pelo Instituto de Psicologia e das Ciências da Educação da Universidade de Genebra, onde também lecionou, é mestre em Análise Social da Educação pela Boston University. Foi presidente da Associação Portuguesa de Intervenção Artística e de Educação pela Arte (2006-2008), do Instituto de Inovação Educacional (1997-2002), do Grupo Interministerial para o Ensino Artístico (1996) e da Comissão de Avaliação da Escola Superior de Educação pela Arte (1981-1982). Foi diretora pedagógica do programa televisivo e da revista Rua Sésamo (1987-1997) e autora de, entre outras obras, dos livros «Os Aprendizes de Pigmaleão», sobre formação de professores. Colaborou na criação do blogue Inquietações Pedagógicas, na coordenação da página semanal com o mesmo nome, no jornal A Capital, no JL-Jornal de Letras e no Diário de Notícias. Recebeu o Prémio Rui Grácio, da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (1992), e foi condecorada com o grau de Grande Oficial da Ordem da Instrução Pública (2004).

Começando pelo CNE... O facto de ter sido eleita com os votos da maioria absoluta dos deputados tem algum significado especial? Por outro lado, quando se apresenta como republicana, laica e socialista, em que medida isso vai moldar a sua atuação enquanto presidente do CNE? Imagino que não vá abdicar dessa condição...

Não, não, de todo. Eu comecei por me definir assim, na audição parlamentar, citando Mário Soares, mas para dizer logo a seguir que acima de tudo me considero democrata, e isso tem muito a ver com o CNE, que é uma instituição essencialmente democrática: por um lado, pelo facto de ter pessoas representativas de vários setores, de vários parceiros da Educação; por outro lado, por ter como função debater e construir, não sei se consensos, mas pelo menos construir compromissos, construir soluções novas que tenham em conta, tanto quanto possível, os pontos de vista dos vários parceiros. Isso parece-me uma tarefa, de facto, muito democrática e é uma coisa que me agrada muito. Portanto, neste aspeto, com certeza que está bastante de acordo com as minhas convicções, e até com a minha personalidade. Esse é o aspeto principal. Em relação a uma definição mais precisa, parece-me que estamos num momento em que é preciso ter algumas preocupações sociais que nem sempre estão muito presentes. Eu gosto muito de uma expressão de Zygmunt Bauman, que fala de “relações líquidas” – nós estamos a atravessar tempos líquidos, em que nada é certo e em que tudo muda, em que não há fronteiras seguras... Obviamente, isto é muito provocado pelas novas tecnologias, pela robótica, pela informática, pela inteligência artificial, e a única coisa que temos de certo é que vai continuar a ser assim ainda durante algum tempo e que vai ter consequências enormes sobre a sociedade e, por aí, sobre a Educação. Não só porque a educação é uma parte da sociedade, claro, mas em relação ao trabalho. Acho que já se tem muita consciência de que uma grande parte das profissões que conhecemos vão desaparecer e ser substituídas por robôs e pela inteligência artificial; de que, provavelmente, se criarão outras profissões, mas menos. E, portanto, na Educação temos de ter em conta essas novas profissões e que novas competências vão ser necessárias.

Daí o perfil do aluno... Diretamente sobre a educação, que tipo de consequências se anteveem?

Acho que temos que falar em três cenários: um é o regresso ao clássico, ao seguro, formar as pessoas naqueles saberes mais clássicos, que já resistiram ao tempo e, portanto, reduzir o currículo, mas ter um currículo forte; outro é acompanhar as mudanças, introduzir o Inglês (já fizemos) e insistir nas aprendizagens das novas tecnologias (também já fizemos) – e estamos a fazer, acho que estas mudanças são um ajuste ao presente; e depois temos o cenário do futuro que é tentar antecipar que competências serão necessárias – um bocadinho o papel do perfil elaborado pela equipa do Guilherme d’Oliveira Martins – e, mais do que isso, como é que podemos formar pessoas que sejam capazes de controlar essas mudanças. Porque se não, contrariamente ao que seria de esperar, um aumento da produtividade dado pelas máquinas, em vez de beneficiar as pessoas todas, irá agravar as diferenças entre elas e entre países. E se isto continuasse, era um molhinho de pessoas a trabalhar imenso e a ganhar imenso e depois uma grande maioria sem nada.

No início da era dos computadores, alguns bem-intencionados diziam que o desenvolvimento tecnológico iria ‘libertar’ os trabalhadores para o lazer, o convívio, o acompanhamento familiar...

Exatamente, mas não foi isso que aconteceu... Não está a acontecer. E, portanto, temos que dizer o que é que queremos. Se queremos uma sociedade muito diferenciada e pouco coesa ou uma sociedade muito mais igualitária, mais justa e mais coesa. E se queremos esta sociedade, a Educação tem de fazer por isso. Porque ao formar as pessoas, pode estar a formar para uma sociedade muito competitiva, que aceite a lei do mais forte, ou para uma sociedade mais colaboradora, mais complementar, mais inclusiva, com mais sentido de justiça social. E isso é uma opção que tem que ser feita a nível do sistema educativo.

Sendo que devemos diferenciar sistema educativo de sistema escolar... Ou seja, quando fala do papel da educação, o universo é mais amplo do que a Escola?

Exatamente, mais do que a Escola. Isso é outro ponto importante. Porque uma questão é se a Educação é para ser distribuída por todos ou se vai haver uns que vão por aí fora e outros que ficam sem nada. Em relação ao trabalho, mas também à Educação. Outra questão é como vamos distribui-la ao longo da vida. Se vamos continuar a ter uma formação muito prolongada, e depois trabalhar, e depois ir para casa... Ou se vamos tentar distribuir isto ao longo da vida, de outra maneira. Parece-me mais interessante, porque, por exemplo, outra das mudanças é demográfica, o envelhecimento da população... Quer dizer, vale a pena, mas é se for com qualidade, e a qualidade não é só física, é também uma vida mental interessante. Por isso é que a educação ao longo da vida é um princípio muito importante.

Voltando ao CNE e ao histórico da Maria Emília, que apreciação faz do percurso do conselho em termos da relação com os decisores e da evolução da organização em si?

Vou falar dos mandatos dos presidentes que conheci, porque eu estive cá em várias fases. Primeiro, com a Teresa Ambrósio [1996-2002], e lembro-me que ela já na altura queria dar importância à Educação fora do sistema escolar e foi por isso que me convidou para vir para cá, para ficar com essa comissão. Mas fui para o Instituto de Inovação Educacional e nessa altura saí [1997], para não ser uma coisa muito institucional aqui dentro. Voltei como assessora com Manuel Porto [2002-2005], e aí dei mais apoio ao Ensino Superior. Depois estive com Júlio Pedrosa [2005-2009], que fez uma coisa muito interessante – o Debate Nacional sobre Educação: saiu muito de Lisboa, foi um bocadinho para todo o lado, e pôs toda a gente a discutir o que é que se queria com a Educação. Acho que foi um momento interessante. Estive com Ana Maria Bettencourt [2009-2013], que deixou uma marca muito importante, que foi o «Estado da Educação» – era uma aspiração antiga do CNE, produzir esse tipo de retrato da situação do sistema educativo num documento anual, mas ela e as pessoas que cá estavam conseguiram pôr isso em prática e tem sido mantido, revelando-se muito útil. Ultimamente, David Justino [2013-2017] deu mais peso aos estudos subjacentes às recomendações e aos pareceres do Conselho e fez parcerias com fundações: encomendaram estudos, fizeram outros em conjunto, sobretudo relacionados com estudos internacionais como o PISA [Programme for International Student Assessment], o PIRLS [Progress in International Reading Literacy Study], o TIMSS [Trends in International Mathematics and Science Study], etc.

E nesta sequência, o que é que a presidente Maria Emília vai fazer? Presumo que vá querer fazer algo melhor, ou pelo menos diferente...

O que é que eu vou fazer?... [risos] Eu queria fazer duas coisas, uma muito baseada nessa ideia de que o CNE é um órgão essencialmente democrático e que a sua riqueza está nos conselheiros, é revitalizar as comissões, pôr as comissões a trabalharem muito…

As comissões são fixas ou os temas de estudo vão mudando?

Vão mudando. E, justamente, eu vou propor mudar as temáticas das comissões, para me centrar mais nos destinatários e menos no sistema escolar. Por exemplo, em vez de ‘Avaliação’, ‘Currículo’ ou ‘Organização Escolar’, vou propor que haja uma comissão centrada na criança, dos zero aos 15 anos, numa abordagem muito holística e que na escolaridade corresponde à educação básica. Outra centrada nos jovens dos 15 aos 24 anos, apanha o Ensino Secundário, os nem-nem (jovens que não estão a trabalhar nem a estudar), os que estão nas vias profissionais, os que já estão a trabalhar e os que vão para o Ensino Superior, seja para a universidade ou para o politécnico – tudo na mesma comissão, para evitar dividir as pessoas e vinculá-las muito ao sistema. A terceira comissão será sobre os adultos, dos 24 até ao fim da vida. Depois teremos outras duas, mais ligadas ao sistema: uma sobre os processos de gestão da oferta e outra sobre os atores educativos. E uma sexta, que me diz muito, a que chamaria ‘Desafios do Futuro’ e onde quero pôr o CNE a pensar muito sobre essa problemática toda, com outras instituições, de outros ministérios e de outras instituições preocupadas com antever e preparar o futuro.

Um CNE mais prospetivo e precursor de novos cenários e sentidos para a Educação?

Exatamente. Prevendo várias possibilidades e, também, como preparar as pessoas para esses futuros. E para os comandar, sobretudo.

Essa preparação pode ser, também, da opinião pública sobre políticas educativas? Porque parece que toda a gente sabe de educação... Como no futebol, multiplicam-se os ‘treinadoresde bancada’...

Exatamente, há imensos treinadores de bancada... Eu acho que os últimos tempos têm sido marcados pelos resultados dos exames, dos rankings, dos testes internacionais... Tudo isso é útil e é bom ter esses dados para avaliar as medidas. Mas também é papel do CNE elevar a qualidade do debate e, portanto, há um trabalho a fazer com a Comunicação Social nesse sentido, nomeadamente, disponibilizando a informação com algum tempo de embargo que permita aos jornalistas estudarem os assuntos antes de escreverem sobre eles, se não, obviamente, o que sai é o que salta primeiro à vista. Esta, aliás, já é uma prática corrente no CNE, há anos.

Voltando à sua experiência de participação no CNE, há algum parecer ou relatório que considere especialmente relevante?

São sempre coisas um bocadinho fora do sistema... Por exemplo, penso que foram interessantes e muito oportunas uma recomendação sobre literacia mediática e outra sobre a Educação Pré-Escolar; ou uma série de seminários que organizei, que se chamava “Cá fora também se aprende”. Isto tem tudo um bocadinho a ver com o sair do sistema... Quando estava no Instituto de Tecnologia Educativa, fiz com algumas pessoas uma série de filmes que se chamava justamente “Cá fora também se aprende” e que era sobre experiências de educação cívica politécnica. Isto já foi há 100 anos... [risos]

É do tempo do serviço cívico...

Exatamente. No 7º ano unificado foi criada uma área que se chamava Educação Cívica Politécnica. Eu, a Ana Maria Bettencourt, o José Carlos Abrantes e outras pessoas fizemos uma série de quatro ou cinco filmes sobre experiências de saída da escola. Uns para ir ao museu, outros tinham uma horta... Umas experiências engraçadas, e chamámos-lhe “Cá fora também se aprende”, que era o que diziam uns adultos com que os miúdos se cruzavam: “Ah! Cá fora também se aprende”. E então, depois, fui repescar esse título para a série de seminários sobre as aprendizagens fora da escola, uma delas a Comunicação Social. E a da Literacia Mediática também tinha um bocadinho a ver com isso.

A propósito não do Instituto de Tecnologia, mas do de Inovação Educacional, pretende replicar no CNE algumas dessas dinâmicas?

Foram cinco anos muito interessantes, numa fase em que se pretendeu dar alguma autonomia às escolas, para elas fazerem as suas próprias inovações. Esse contacto, essa proximidade com as escolas foi qualquer coisa que apreciei muito. Acho que o instituto foi útil também nesse sentido, e é uma coisa que gostaria de voltar a cultivar aqui, no CNE. Por exemplo, o ministério lançou o projeto de autonomia e flexibilidade curricular. Se o CNE o quiser acompanhar, terá de ser um acompanhamento de grande proximidade no terreno, com a auscultação dos vários parceiros. Não pode ser só uma avaliação muito distante, baseada só em dados quantitativos – também são importantes, mas tem de haver, penso eu, esta proximidade de terreno, entrar na escola e tentar perceber como as coisas estão a funcionar. Também gostava de desenvolver essa dimensão, aqui no CNE, sim.

Já tem opinião sobre o desenvolvimento desse projeto?

Não sei nada sobre o que estará a passar-se nas escolas. Sei é que é uma oportunidade interessante, que é pena ser desperdiçada, e gostava que o CNE a acompanhasse, para ver, justamente, como as escolas a estão a agarrar. Mas não tenho ainda feedback nenhum…

 

TODA A GENTE ACHA QUE SABE E AJUÍZA MUITO PELO SEU CASO CONCRETO

 

Anotei a sua preocupação com as implicações das tecnologias no mundo laboral, a relação das pessoas com o trabalho, as alterações climáticas, o desenvolvimento sustentável, entre outros. Como podem as escolas trabalhar sobre isso, debaixo da pressão do currículo e das disciplinas nobres?

Bem, eu sei que está em curso o estudo das aprendizagens essenciais, justamente para libertar o currículo e o professor desse peso excessivo do programa, porque isto era uma ditadura do programa, em vez de o adequar aos meninos que se tem à frente... Isto é uma questão muito polémica, mas acho importante que se esteja a fazer esse esforço de definição das aprendizagens essenciais. Isso é uma das maneiras. A outra, também nada pacífica, é uma coisa que está muito em discussão e a ser muito experimentada, que são as questões transversais – os franceses chamam-lhe ‘questões vivas’. Eu acho isto muito importante, porque são questões que os miúdos ouvem na rua, que apanham, que veem na televisão, e depois não há um esforço da escola para que peguem nisso, para que aprofundem, para que haja um debate... Fica tudo muito superficial e ligeiro, quando são verdadeiros problemas e realmente interessam aos alunos.

Propõe a criação de uma disciplina específica ou uma abordagem transversal dessas temáticas?

Não, não é criar uma disciplina. Transversal pode ser, de muitas maneiras...

Trabalhar por pequenos projetos, como os finlandeses parece que estão a apontar...

Parece que os finlandeses acabaram mesmo com as disciplinas. E eu acho que é perfeitamente possível trabalhar sem ser através de disciplinas. Não proporia ir tão longe, mas proporia, com certeza, que se agarrasse quer na disciplina, quer num conjunto de disciplinas, quer num tempo... Há dias, alguém do ministério falava numa semana, como as escolas entendessem melhor, em que se agarrasse numa dessas questões que preocupam os miúdos e se mostrasse como eles podem aprofundar, como podem aprender através dessas questões, e também uns com os outros.

Alargando um pouco mais o foco: ciclicamente, fala-se na revisão da Lei de Bases do Sistema Educativo. Na sua opinião, precisa de ser revista ou, como há quem defenda, tem é de ser cumprida? Porque ainda está por cumprir e, muitas vezes, está a ser atropelada ou contornada...

Ainda está por cumprir, isso está.... Não sei se precisa de ser revista, é possível que sim, mas também não sei em que sentido... De facto, a principal nota é que há aspetos em que nunca foi cumprida, e acho que já agora se podia experimentar cumprir. Se precisa de ser revista?... Eu sou sempre por que haja revisões, mas acho tão extraordinário que se tenha conseguido um consenso tão forte e tão duradouro, que tenho algum receio que se vá para soluções que sejam menos duradouras, muito mais efémeras...

Haverá aqui alguma movimentação no sentido de um ‘ajuste de contas’ com a LBSE e com a escola pública? Com a democratização da Escola...

Acho que sim... [risos] Não vou conversar sobre isso, mas acho que tem razão...

E a opinião pública acaba por ser arrastada para discursos sobre falta de qualidade da escola, sobre professores que faltam muito e ensinam pouco, sobre facilitismo...

Apesar de tudo, eu acho que os testes internacionais tiveram a vantagem de mostrar que, afinal, a educação em Portugal está na média, ou acima, dos países mais ricos e mais desenvolvidos, e que a educação, afinal, melhorou imenso. E acho que já ninguém ousa dizer, como há uns anos, ‘No meu tempo é que a 4ª classe era boa; valia uma licenciatura de agora’. Ainda haverá um bocadinho a ideia de que os professores têm muito boa vida, mas também isto estará a mudar... É a tal coisa, na educação, toda a gente é treinador, toda a gente teve a sua experiência escolar, toda a gente tem filhos ou netos, ou próximos, na escola... Toda a gente acha que sabe o que se passa e ajuíza muito pelo seu caso concreto. Não é uma amostra muito representativa.

Correndo o risco de continuar demasiado focado na realidade da escola...

Mas a escola é tão importante! Na vida das crianças como na sociedade… Porque a escola é o único sistema através do qual se chega a toda a gente.

E isso releva a questão da gestão das escolas, a democratização da direção, a municipalização da educação... Ainda por cima quando as decisões vêm de uma área que politicamente é a sua...

Eu confesso que me sinto um bocadinho dividida, porque, por um lado, acho importante a proximidade, que as decisões sejam tomadas tendo em conta a escola e a população da escola, mas por outro lado, confesso que tenho um certo receio. E, portanto, se se for nesse sentido, acho que tem de haver compromissos. Como agora, na flexibilidade curricular, só poder gerir 25% do currículo... Tem de haver esse tipo de coisas. Na contratação de professores, admito que uma percentagem seja escolhida pela direção da escola, mais do que pelo município; que a própria escola tenha alguma quota, digamos, de professores contratados… Porque se não, é muito difícil fazer coisas, fazer inovações... Tem de se saber bem com quem se pode contar...

Mas não é um risco delegar numa só pessoa – o diretor – a possibilidade de, na prática, por exemplo, definir uma parcela significativa do currículo?

Isso não pode ser! O que a democracia tem de bom é haver checks and balances... Portanto, não pode ser uma pessoa só a definir; tem de haver contrapesos. De uma equipa, do Conselho Pedagógico ou de gestões intermédias, mas tem de haver sempre contrapesos.

Esteve ligada à formação. Que opinião tem sobre a formação de professores que está a ser feita? Está ajustada às necessidades atuais e a cumprir bem a função?

Não sei dizer... Mas sei, porque todos os estudos têm mostrado isso, que há um grande envelhecimento da classe docente e que em breve, cinco ou dez anos, uma série de professores vão para a reforma, o que coloca uma questão... Não sei se estamos alertados para a preparação das pessoas que vão entrar no sistema e para a falta de transmissão na própria escola... É bom que haja pessoas de várias gerações e isso, realmente, parece-me que está a falhar.

Mas continuamos a ter milhares de professores (e novos candidatos) a desesperarem no desemprego ou na precariedade e que tenderão a afastar-se. E quando for preciso, não vamos ter velhos, nem novos...

Digamos que esse é, com certeza, um problema que vai ter de ser considerado, que é urgente considerar.

Por outro lado, a formação contínua parece que não funciona...

E há tantos problemas novos que devem ser atendidos e para os quais os professores querem formação! A formação tem que ser sempre um enriquecimento para o professor e para o sistema.

Já agora... Os últimos anos foram de acalmia nas relações entre professores e a tutela. Entretanto, as expetativas em torno da carreira, ou a falta delas, estão a induzir o regresso à conflitualidade...

Por um lado, acho que, de facto, se criaram situações de injustiça em relação aos professores que deveriam ser tidas em conta. Mas também sei que há condicionantes muito fortes. O que não sei é se a minha reivindicação, se fosse professora, seria exclusivamente material. Quero dizer é que, por exemplo, era muito importante os professores poderem ter um Erasmus; ou poderem ter uma pausa de tantos em tantos anos, um ano sabático com formação, investigação… Acho que isso enriquecia o sistema, por um lado, e também a vida dos professores. Ou eventualmente poderem encurtar o número de anos para a reforma... Mais do que ficarem enquistados numa polémica de que é difícil sair.

 

A LITERACIA MEDIÁTICA TORNOU-SE UMA GRANDE NECESSIDADE

 

O nosso tempo está a terminar, mas não queria deixar de lhe colocar duas ou três questões de índole mais pessoal... A cidadania, a arte e a inovação são recorrentes no seu discurso sobre educação. Considera que esses referenciais estão implantados ou ainda há muito a fazer?

Não, acho que agora estão a ser encarados de outra maneira... Nos últimos anos, os currículos foram muito redutores e concentraram tudo, enquanto as artes e a educação para a cidadania tiveram um papel muito reduzido. Mas acho que agora estão a ser encarados de novo. A flexibilidade curricular deixa essa questão um bocado ao critério das escolas, e o que é preciso é que as pessoas não estejam concentradas apenas na obrigação estrita de alcançarem bons desempenhos e bons resultados nas áreas mais restritas. Isso é muito limitativo e socialmente muito injusto, porque há meninos que fora da escola têm uma vida cultural e experiencialmente mais rica e outros que não, e para esses é necessário que a escola tenha o papel de despertar para outras coisas, mais bonitas e mais enriquecedoras.

Ainda a propósito de flexibilidade curricular... É frequente ouvir-se que cada ministro que passa gosta de deixar a sua marca. Havendo quem defenda uma ‘trégua’ curricular e quem defenda que o currículo deve ser revisto, de que lado se coloca?

Eu defendo que o currículo deve ser revisto regularmente. Não sei se é de cinco em cinco anos ou de dez em dez, mas sei que devia ser revisto com uma certa periodicidade e por uma instituição profissional – sondando as pessoas, evidentemente, a ‘sociedade civil’, mas feito por profissionais. O que eu acho é que, às vezes, as pessoas se queixam de isso ser feito por capricho, mas eu acho que não é. Há forças políticas e sociais que puxam para um lado ou para outro, conforme os governos. As pessoas de fora julgam que é por capricho, quando na realidade o mundo muda e, portanto, os currículos também têm de mudar e a organização da escola tem de mudar. Tudo tem de mudar, e se não muda é mau sinal.

É curioso que há quem proteste porque os currículos e os programas estão sempre a mudar e quem lamente que a instituição escolar não muda...

E tudo isso é verdade e não é. Porque, realmente, a Escola mudou imenso, mas, por outro lado, há certas constantes da Escola que atravessam séculos.

Por vezes, parece que os decisores políticos conhecem mal a realidade das escolas e que, a cada passo, ‘tropeçam’ na máquina administrativa...

Todos os ministros se queixam do ministério, não é? [risos] O professor Marçal Grilo também se queixava muito da máquina… Eu era da parte do monstro e nunca achei que tivesse assim tanto poder para fazer fosse o que fosse... [risos] Mas acho que faz falta as pessoas, de uma maneira geral, saberem o que se passa nas escolas. E acho que não sabem; julgam através da sua experiência longínqua... Mas também não é possível conhecer tudo diretamente... Acho que nos faz falta uma cultura de confiança. Estamos sempre a tentar controlar...

Na sua formação académica passou por Genebra e por Boston. Posso associar à Suíça uma dimensão mais pedagógica e aos Estados Unidos uma visão mais política? Qual teve mais peso?

Não têm comparação... Boston foi mais sociologia da educação; em Genebra foram cinco anos, estudei e fui professora no Instituto de Psicologia e das Ciências da Educação...

Foi também lugar de exílio...

O meu marido [José Medeiros Ferreira, ministro dos Negócios Estrangeiros no I Governo Constitucional] ia sair do país, mas não sabíamos para onde. Eu aceitei um lugar na Universidade de Bristol, como professora de Português e de Cultura Portuguesa, e ao mesmo tempo aproveitei para seguir um seminário de Sociologia da Educação. Entretanto ele acabou por ir para Genebra, que naquele tempo era um centro muito importante da Psicologia, com Piaget, e das Ciências da Educação. Então, concorri a uma bolsa da Gulbenkian, ganhei e fui para lá. Foram três anos a estudar a sério e outros três já a ensinar; foram anos muito, muito formativos. Depois, Boston foi uma excelente oportunidade de reciclagem, a meio da vida profissional – o tal ano sabático, a estudar e a refrescar. Foi ótimo, mas não teve o mesmo peso formativo de Genebra.

É impressão minha ou há uma espécie de ‘corporativismo’ bostoniano?

Não, não sinto. Embora seja muito amiga, sobretudo, dos que foram da minha área...

O que recorda como mais relevante da sua passagem pela televisão e da produção de conteúdos?

Várias coisas. Desde logo, foi uma vivência pessoal muito interessante. Do ponto de vista profissional, o Rua Sésamo foi um programa em que a investigação era muito importante – acho que nunca mais houve um programa com a investigação pedagógica tão ligada à produção. Aprendi imenso e também utilizei muito do que aprendi em Genebra, por exemplo, adaptando o método clínico de Piaget. Depois foi o Jardim da Celeste, que pode ser menos conhecido, mas era igualmente bom e pude mesmo aprender mais, porque foi tudo criado do princípio. Ainda sobre o Rua Sésamo, gostava de referir a importância da Língua Portuguesa e da leitura. Foi um grande investimento nesse sentido e gostei muito que a Helena Cidade Moura tenha dito que foi o primeiro método de aprendizagem da leitura à distância.

A televisão atual ainda consegue ter essa dimensão pedagógica? Eu sei que a RTP, por exemplo, tem horas e horas de programas infantis, mas não os conheço.

Mas são bons! Quem tiver miúdos pequeninos pode deixar ver porque são bons. É o Zig-Zag. Tem uma boa programação, embora para miúdos mais pequeninos; a partir dos 6-7 anos, eles já não alinham muito... É uma opção de serviço público, que me parece correta, porque os canais comerciais não querem saber dos mais pequeninos, que não dão tanta audiência. Mas a televisão já não é o que era, tem muito menos peso. Embora os miúdos ainda vejam. A partir da adolescência é que...

E as novas tecnologias, estão a contribuir efetivamente para a democratização do conhecimento ou a criar mais desigualdade?

Estão a fazer as duas coisas: por um lado, estão a contribuir para a democratização, porque estão a tornar a informação acessível instantaneamente; por outro, claro que há desigualdades imensas, quer entre países, quer entre gerações, quer entre os que têm e os que não têm... Quer ainda as necessidades de formação que se vão criando, e isso é uma coisa muito preocupante – é o fantástico, é a capacidade de produção, mas também é a responsabilidade que isso implica, como se tem visto com o desenvolvimento das fake news... Acho que a literacia mediática, se já era importante, tornou-se mesmo uma grande necessidade.

Mesmo para fechar: Rui Canário diz que a Maria Emília foi “uma escolha feliz” para presidente do CNE...

É tão bonito, não é? [risos]

... e eu pergunto-lhe: está feliz por ser presidente?

[risos] Acho que sim, acho que sim...

E por quantos anos espera ser feliz?

Eu acho que este regresso foi uma certa ousadia, quer de quem elegeu, quer de quem já estava há dez anos na reforma. Embora estivesse muito ativa, esta circunstância é diferente, por ser tão exposta e de tanta responsabilidade. Mas o mandato é de quatro anos, portanto, eu espero ser feliz durante quatro anos.

E pondera renovar o mandato?

Acho que já será pedir muito... [risos] A esperança de vida tem aumentado e a qualidade de vida também, mas acho que merecerei algum descanso.

Muito obrigado por nos ter recebido! Não sei se lhe apetece dizer alguma coisa...

Quero dizer que felicito muito a PÁGINA por manter a chama da imprensa na educação e desejar-vos que não sejam vítimas das novas tecnologias.

António Baldaia (entrevista)
Jorge Caria (fotografia)


  
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