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Somos independentes de todos os poderes, económicos ou políticos

Suspensa em abril de 2006, após sete anos de publicação mensal, a edição portuguesa do Le Monde Diplomatique (LMD) foi relançada através da cooperativa cultural Outro Modo, criada com esse propósito em setembro de 2006. Em entrevista (realizada por correio eletrónico), a diretora do jornal, Sandra Monteiro, fala de um projeto editorial que, tal como a PÁGINA, pode ser considerado de resistência.

 

A edição portuguesa do LMD foi relançada pela cooperativa Outro Modo, o que o torna um projeto original. Como se pode caracterizar o jornal?

É um projeto que nasce justamente, em 2006, com essa originalidade da estrutura de propriedade. Optámos pelo modelo cooperativo por ser o que melhor permite assegurar a independência do projeto editorial em relação às pressões mercantis que se abatem sobre a informação, estreitando o pluralismo dos media e impondo formas de gestão e de tratamento dos trabalhadores que criticamos. Os membros de uma cooperativa participam com capital e com trabalho, sendo que todos têm um voto. Outra característica do jornal, seja da edição portuguesa, da francesa ou das dezenas de edições espalhadas pelo mundo, é que assumimos um ponto de vista nas análises que fazemos. Estas obedecem às regras e deontologia do jornalismo, tendo a informação de ser fiável e verificável, mas assumimos que nos interessa a crítica dos modelos globais, com as suas declinações nacionais e regionais, que geram injustiças, cerceiam direitos, destroem o ambiente. Interessa-nos a informação racional, tranquila e aprofundada, e não apenas o que está nos holofotes do momento, a informação que hierarquiza e contextualiza, para dar instrumentos de análise e de transformação aos cidadãos. Outra originalidade é o facto de trabalharmos com autores, quer se exprimam em textos (jornalistas, economistas, sociólogos, médicos, professores, militantes associativos, etc.) ou imagens (fotógrafos, pintores, escultores, ilustradores, etc.), numa altura em que a despersonalização e a robotização da informação vão fazendo o seu caminho.

À semelhança da PÁGINA, é um projeto que vive muito do apoio dos leitores, através das assinaturas, e das organizações em que se inserem (sindicato de professores/cooperativa cultural). Pode dizer-se que são dois projetos de resistência?

São exatamente isso, dois projetos de resistência, dois projetos em contracorrente com a informação dominante. Não é que escapemos totalmente a relações mercantis: no nosso caso, por exemplo, basta termos de usar uma gráfica e uma distribuidora que são empresas tradicionais para entrarmos em lógicas económicas mistas. Mas funcionamos ambos, o sindicato dos professores e a cooperativa, segundo lógicas não-lucrativas, o que nos faz praticar (e não apenas defender em teoria) outros modos de organização do trabalho. Creio que essa prática é fundamental, porque é formativa e dá outra consistência aos princípios e valores que defendemos – e outra consciência também, nas potencialidades como nas dificuldades. Vivermos dos nossos leitores, assinantes, associados, cooperadores, etc., faz com que sejam eles os únicos perante os quais temos de responder. E isso livra-nos de dependências da publicidade – cujas quebras perturbaram enormemente o modelo de negócios em que tantos media se baseavam – e não nos deixa cair noutras dependências. É por isso que dizemos que somos independentes de todos os poderes, económicos ou políticos. Dois projetos de resistência, também, porque o panorama mediático está muito enfeudado a visões do mundo e interesses que não são os do bem comum, da justiça social, económica ou ambiental. Isso é particularmente visível no que toca às questões do Estado Social e do trabalho, ironicamente, mesmo quando a informação que esses meios veiculam é feita por profissionais precários e mal pagos, que veem as desigualdades (salariais e outras) que coexistem nas suas redações.

O LMD é reconhecido por ter uma visão crítica e rigorosa. Nos dias que correm, faz falta o confronto e a procura da verdade?

Fazemos por ter essa mistura de crítica e de rigor, sim. Para nós, a crítica sem rigor seria um péssimo serviço, contraproducente até, e o rigor sem crítica é uma definição de irresponsabilidade social. O confronto e a procura da verdade na informação fazem hoje imensa falta, num panorama afunilado em que todos se repetem e só a custo se encontra informação que faz a diferença. Essa falta é mesmo um dos maiores sintomas da degradação da democracia – e uma das causas mais profundas dos bloqueios a que ela se consolide. Esse trabalho de confronto, de investigação e de compromisso com a verdade, que devia caracterizar o jornalismo, exige condições de trabalho que se foram degradando: segurança laboral, redações a funcionarem, autonomia e independência, tempo para pensar, estudar e investigar, tempo para estar no terreno. Essa informação é cara, exige trabalho coletivo (em particular intergeracional) e não interessa a todos: nem aos que só veem as empresas de comunicação como fonte de lucros, nem aos que são denunciados ou prejudicados, nos seus vários interesses e poderes, pela informação e pela opinião que resultariam de um outro modelo informativo. Entre as pressões desses interesses e poderes, o medo e a insegurança dos jornalistas, e até a falta de exigência dos cidadãos, o problema vai-se avolumando.

“A qualidade das democracias depende em grande medida da qualidade da informação”, lê-se na página da internet do LMD. Esta é a grande aposta da direção?

Sim, cremos profundamente que estas duas dimensões têm um nexo causal, alimentando-se mutuamente. Gostávamos que as sociedades pudessem manter uma qualidade da informação publicada que desse sustentabilidade ao que devia caracterizar qualquer democracia: o acesso universal a informação fidedigna e plural que permitisse a cada cidadão fazer as suas próprias análises e escolhas. Infelizmente, continuamos a ter uma esmagadora maioria de cidadãos com acesso à informação dominante, veiculada pelo ‘mainstream’ mediático, e uma minoria crescentemente informada por vias alternativas... Sem que se estabeleçam caminhos que alarguem verdadeiramente o fluxo dos segundos para os primeiros. Muito trabalho tem sido feito para melhorar a situação, mas ainda recentemente esta crise veio mostrar que os aparelhos mediáticos continuam a ser fortíssimos dispositivos de controlo das mentes, de convencimento das pessoas de que são culpadas das desgraças que as afetam e de que não há alternativas senão sofrer e aceitar condições de vida cada vez piores. A informação devia impedir que só depois de passar por situações verdadeiramente trágicas as pessoas tivessem capacidade (e mesmo nesse caso, nem sempre têm) para escolher rumos alternativos, para acreditar que eles são possíveis porque a construção social é feita das suas escolhas.

Como é dirigir a edição portuguesa do LMD?

É uma honra e uma imensa responsabilidade, porque tenho a consciência de que apenas me insiro, o melhor que sei e posso, num imenso projeto de informação e emancipação que começou há 72 anos, e que vai continuar depois de mim. Neste momento dou o meu contributo, com muitos outros que fazem o jornal em Portugal e pelo mundo fora, mas inserimo-nos nesta história coletiva. É também um prazer, porque aprendo todos os dias e porque conheço pessoas fantásticas. E também um desafio, porque diariamente lutamos pela sobrevivência, por chegar a mais pessoas e por financiar o que fazemos, e porque acertar nas nossas interpretações e análises exige muito estudo, muita leitura, muito confronto de opiniões e pontos de vista que estão a montante do que depois publicamos. Não é fácil, sobretudo porque dependemos muito de trabalho que nos é oferecido com imensa generosidade, e dependemos também de os nossos leitores poderem ter disponibilidade para comprar ou assinar o jornal e disponibilidade de tempo (objetivo e subjetivo) para nos lerem. A crise veio piorar tudo isto. Mas é também aí que se reforça a nossa certeza de que o combate que fazemos para sobrevivermos é o mesmo combate que fazemos para que a sociedade funcione melhor, reduzindo o tempo de trabalho, retribuindo o trabalho condignamente, abrindo espaço para a cidadania, etc.

Como é a relação com o LMD original? Têm autonomia ou seguem as linhas editoriais da edição francesa?

A relação com o Le Monde Diplomatique é excelente, de grande partilha e solidariedade. Temos de seguir as linhas editoriais da edição feita em Paris, mas essa é uma escolha autónoma que fazemos. Isto é, envolvemo-nos neste projeto, no meu caso desde 1999, porque nos revemos na linha editorial do jornal. Não quer dizer que concordemos todos a 100% com tudo, mas isso também não acontece na redação em Paris. Achamos mesmo que essa dimensão de pluralidade de pontos de vista, à esquerda, no campo da crítica ao neoliberalismo, é uma força que temos. Mas estamos de acordo no corpus de posicionamentos e análises que se tornaram a identidade do jornal. E vamos discutindo entre todos, entre Lisboa e Paris como entre Berlim e Paris, ou Buenos Aires e Paris, ou Tunes e Paris, as novas questões que vão surgindo na geopolítica e na geoeconomia mundial e que nos obrigam a definir novos elementos da linha editorial. Temos também dois outros ‘constrangimentos’, como todas as edições pelo mundo fora: para manter a identidade internacional do projeto, temos de publicar uma percentagem de artigos traduzidos, o que muito nos agrada porque os temas internacionais nos apaixonam e são eloquentes sobre o sistema em que vivemos (por exemplo, para os nossos leitores, a compreensão da crise atual na Europa ganhou muito com informação anterior sobre atuações do FMI noutras geografias), e cada vez mais se justifica, neste tempo em que a informação internacional é tão pobre e enviesada; e a componente redatorial de cada país tem de contribuir para dar a conhecer a realidade desse país, o que nos força ao exercício diário de acompanhamento do que aqui se passa e nunca poderia ser tratado com esta regularidade pela edição em Paris.

Numa altura em que a PÁGINA assinala 25 anos, considera importante a existência de publicações dedicadas à área da Educação?

Não é só importante, é um pilar fundamental da democracia. Nós somos um jornal generalista, o que significa que nunca poderemos tratar um tema único, mesmo com a importância da educação, com toda a abrangência e profundidade que ele exige. Por outro lado, mesmo na comunicação social ‘mainstream’, as editorias especializadas têm vindo a reduzir-se ou pelo menos a despovoar-se, a perder recursos materiais e humanos. Ao longo destes 25 anos, a PÁGINA tem mantido uma atenção regular, crítica e de qualidade sobre as temáticas da educação, que tantas vezes se ligam às da cultura, da língua, dos direitos em geral. Com a atividade do sindicato, tem disponibilizado o que de melhor se reflete e escreve sobre a educação, da Pré-Primária ao Superior, e sempre na defesa de um ensino público de qualidade, universal e gratuito. Sem esta informação e este trabalho persistente, certamente também com dificuldades e a exigir o empenhamento da sua comunidade de leitores, não teríamos o nível de consciência cidadã e de ação coletiva que temos na sociedade portuguesa. Os meus parabéns, portanto, à PÁGINA, e que possamos continuar a encontrar-nos durante muitos mais anos nestes dois projetos de resistência que partilham valores, princípios... E esta teimosia de que o mundo tem de ser melhor e que isso passa necessariamente pela informação, pela educação, pelo conhecimento.

Maria João Leite (entrevista)

Henrique Borges (fotografia)


  
Ficha do Artigo

 
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