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O futuro constrói-se no presente

Numa altura em que a Associação de Professores de Matemática (APM) assinala 30 anos de existência, a presidente Lurdes Figueiral falou à PÁGINA dos desafios com que a associação se tem deparado no seu percurso, da resistência que ainda existe à disciplina e das expectativas para o futuro. Ser professor de Matemática é uma “dupla arte”, porque além dos problemas com que todos os docentes se deparam, estes ainda têm de lutar contra os mitos e preconceitos que envolvem a disciplina. Por isso, Lurdes Figueiral defende que é necessário olhar para o futuro com “esperança” e com os professores unidos: “Juntos somos mais do que a soma individual de todos nós.”

 

Como têm sido os 30 anos da APM?

Os 30 anos de atividade da associação quase coincidem com os meus 30 anos de vida profissional. Quando comecei a dar aulas, a APM estava a nascer e, logo no segundo ano de existência da associação, inscrevi-me e comecei a participar nos encontros. Como professora associada, devo à APM toda a atualização e formação que fui tendo em todas as áreas que têm a ver com a prática profissional, como as didáticas específicas e as metodologias; devo à APM a formação, o incentivo e o gosto pela atualização permanente neste desafio que é ensinar Matemática às crianças e aos jovens. Fora da minha experiência pessoal, os 30 anos da associação significam uma grande intervenção na reforma curricular que se fez a partir da aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, em 1986, ano em que a APM nasceu. A associação foi criada em ‘86, mas há um movimento prévio, desde 1982/84, quando começam a chegar a Portugal os primeiros mestres que fizeram estudos em Didática em Boston e que iniciam uma grande renovação. O grande movimento de renovação do ensino da Matemática faz-se, desde meados dos anos 80, um pouco por todo o mundo, nomeadamente nos Estados Unidos, onde esses professores estudaram e de onde nos veio muita influência em termos das abordagens e da atualização necessárias para o ensino da Matemática.

 

A criação da APM inscreve-se, portanto, nesse movimento de renovação.

Sim, e desde logo começa a ter muita importância na reforma curricular que Roberto Carneiro inicia. Em 1987, com um ano de vida, organizámos um seminário, em Vila Nova de Milfontes, para a renovação do currículo da Matemática. E os documentos aí trabalhados e produzidos estiveram na base dos documentos da reforma de Roberto Carneiro para o ensino da Matemática. A partir daí, a APM tem-se destacado, por um lado, para os sócios e para os professores de Matemática, por um trabalho de formação, de acompanhamento, de partilha, de reflexão e debate e, por outro lado, pela intervenção nas políticas educativas, como proponentes, críticos, analisadores. Portanto, estamos sempre atentos às questões das reformas educativas, em geral, e com o ensino da Matemática, em particular. E sobretudo nestes últimos quatro anos, elas têm sido tão fortes e, em nosso entender, tão mal encaminhadas, que passámos de um papel de trabalho conjunto – ao longo destes 30 anos, tivemos um trabalho de apoio às reformas curriculares, ao exercício e à formação dos professores – para uma atuação de uma grande crítica e denúncia das reformas do ministro Nuno Crato. Entendemos que foi um retrocesso enorme. Para quem não está dentro destes mecanismos e da história destes processos, dentro dos movimentos internacionais e do que foi a nossa própria experiência em Portugal, é difícil perceber com profundidade até onde estes quatro anos foram, de facto, desastrosos para o ensino em geral, mas – atrevo-me a dizer – muito particularmente para o ensino da Matemática.

 

Em que sentido?

Primeiro, num entendimento muito sectarista da Escola e da Educação, muito elitista, muito segregadora, baseado em processos de aprendizagem repetitivos, no treino de rotinas, com muito pouca valorização da compreensão e das interações matemáticas com outras áreas do Conhecimento, com as áreas sociais, com a vida quotidiana dos alunos, com o uso das tecnologias… Sobretudo uma abordagem que não prevê, nem valoriza o trabalho de descoberta do aluno. O aluno é apenas um recetáculo, que deve ser treinado para adquirir algum tipo de competências muito técnicas e de aplicação direta, e não é ajudado a desenvolver o raciocínio, a compreensão, a capacidade de resolver problemas. Tudo isso passou a ser muito desvalorizado. Além do mais, é uma abordagem muito formalista da Matemática, muito precocemente. E tudo isso causou muita perturbação, sobretudo quando tínhamos programas acabados de ajustar e que estavam no terreno. De repente, mudou tudo.

 

De que forma é que as mudanças políticas podem afetar o ensino da Matemática?

A questão das constantes mudanças é um preconceito. É algo que se instalou na opinião pública, que estamos sempre em mudanças. É evidente que os governos têm passado e cada ministro da Educação, com toda a legitimidade, e com a ideia que tem do que é melhor em Educação para o país, deixa a sua marca. E fazem-no no sentido de querer melhorar. O que nunca tinha acontecido até Nuno Crato é que essa mudança fosse tão radical. Ou seja, desde a aprovação da Lei de Bases, têm alternado governos de várias sensibilidades políticas, mas o trabalho na Educação tem sido, de alguma forma, continuado; sobretudo em termos de currículo e programa, são basicamente mudanças de continuidade. Os ajustamentos e as alterações feitos ao longo de 30 anos foram no sentido de ir fazendo pequenos ou grandes ajustamentos; o que o governo anterior fez foi mudar tudo profundamente. O rigor é sermos capazes de, na sala de aula, avaliar os alunos e ensinar para que aprendam. Isso é que é o rigor, não é andar a treinar para fazer exames. Penso que essa ideia de que chega um ministro e que tudo muda criou raízes e está a ser um travão para as mudanças que são, de facto, precisas, como repor a normalidade anterior a Nuno Crato.

 

E que mudanças necessárias são essas?

Nuno Crato introduziu uma mudança extremamente radical, para modelos que já tinham sido postos de parte desde os anos 50, pelo menos nos países com Educação mais desenvolvida. Em Portugal, inclusivamente antes do 25 de Abril, com a reforma de Veiga Simão, já se começava a apontar noutro sentido. Com Nuno Crato mudou tudo. E agora vamos precisar de tempo, de paciência e de sabedoria para sermos capazes de repor a normalidade num sentido de continuidade e de melhoria daquilo que estava a acontecer na Educação antes de Nuno Crato. Compreendo que haja muita resistência, também porque – justiça seja feita – quem maltratou os professores, reduzindo-os a meros funcionários, sem tempo para estar e para trabalhar com os alunos, sem condições, sem ambientes de escola humanos, foi o ministério de Maria de Lurdes Rodrigues. Tendo tido medidas muito importantes, inclusive para a Matemática, teve uma postura para com os professores… E nessa época houve alterações ao Estatuto da Carreira Docente e à gestão das escolas que introduziram graves perturbações nas escolas e provocaram o esgotamento dos professores, que neste momento, obviamente, também sentem resistência a mais mudanças.

 

E entre os professores, há agora mais competitividade.

Muito mais, claro. Esta mentalidade muito neoliberal de avaliar tudo, de justificar tudo, de haver papéis para tudo, grelhas para tudo... Isto é insano! E o que é importante no ensino, que é a relação próxima dos professores, das direções – dos conselhos executivos, que era o que havia antes, que respondiam perante os professores e que tinham uma relação de proximidade com eles e com os seus alunos –, tudo isso foi cortado e já está a ter consequências; tudo isso fez com que as escolas e os professores estejam num estado de esgotamento e de não valorização. Este desgaste torna-se difícil de ultrapassar, depois de tantos contratempos e com todos os constrangimentos que convergem na Escola: problemas sociais, familiares, educativos. Os professores, que se viravam do avesso para enfrentar todas essas situações, de repente viram-se sem chão, assoberbados por uma burocracia estúpida. Nos últimos oito anos, em Portugal, a Escola conheceu um retrocesso, levou uma machadada tal que, agora, provavelmente e infelizmente, vamos precisar do dobro de tempo para recuperar.

 

Nestes últimos anos assistiu-se a uma “valorização” do Português e da Matemática em relação, por exemplo, às Expressões…

Esse é um caso que até parece que nos valoriza, mas é uma má valorização. Retirar a Matemática e o Português do equilíbrio curricular dá-lhes importância, sobretudo, de uma função selecionadora. Não quero meter-me na questão do Português, que não conheço em termos de didática, mas parece que o ensino do Português também é um bocado perturbado pela mentalidade muito pragmática de obter resultados rapidamente, quando o importante, sobretudo nos primeiros anos de ensino, é o desenvolvimento equilibrado, harmonioso e completo das crianças. Portanto, não faz qualquer sentido que as disciplinas de Português e Matemática sejam privilegiadas de uma forma que as torna muito seletivas para os alunos e que, no caso da Matemática, agrava a tendência, que estávamos a ultrapassar, de olhar para a disciplina como bicho-papão, que ninguém consegue entender. É muito importante ultrapassar estes tabus, porque as crianças, e mesmo as famílias, incorporam uma espécie de quase fatalismo genético para não serem capazes de obter qualquer desempenho matemático válido.

 

Antes de continuarmos a falar dos preconceitos em relação à Matemática e do reconhecimento da disciplina, há várias formas de a ensinar, diferentes métodos…

Claro. Não há soluções mágicas ou receitas milagrosas. A nossa busca é pela melhor forma de chegar aos alunos, para que os alunos compreendam, e existem diversas formas que têm a ver com o trabalho interativo na sala de aula, ou seja, dar mais protagonismo ao aluno. A APM não segue um método, mas defende métodos interativos, que desenvolvam a compreensão, que coloquem o aluno como sujeito da sua aprendizagem, com um grau de autonomia que deve ir crescendo ao longo dos anos, mas sempre necessitando de um professor. O aluno tem de ser levado ao desenvolvimento de um raciocínio, de uma capacidade analítica e crítica dos conteúdos, da capacidade de resolução de problemas não triviais – os problemas que aparecem no atual programa são problemas de aplicação, de fim de capítulo, que até aparecem descritos passo a passo... Isto é o contrário daquilo que é a resolução de problemas. Qualquer metodologia baseada na resolução de problemas confronta o aluno com uma situação não inteiramente conhecida, ou seja, perante uma situação nova, ele é desafiado a encontrar formas novas e diferentes de resolver um problema que não é rotineiro, baseado nos conhecimentos que tem, mas muito na sua intuição. Portanto, tudo isto faz apelo a métodos interativos, em que o aluno tem o protagonismo e uma ação preponderante na construção da sua própria aprendizagem, obviamente sempre acompanhado pelo professor.

 

É essa busca constante que carateriza a evolução do ensino da Matemática?

É. Com evolução e com regressão, porque ao que nós estamos a assistir atualmente é a uma involução, a um retrocesso do que entendemos que deve ser o ensino da Matemática. Que cada vez mais é necessário, também pela complexidade dos desafios sociais e culturais que hoje enfrentamos e que, no futuro próximo, os alunos vão ter de enfrentar. E, certamente, não é a memorizar muitas coisas ou a treinar muitos procedimentos que serão capazes de enfrentar esses desafios do futuro.

 

Voltando à resistência…

Neste momento, a resistência à Matemática está a aumentar outra vez, exatamente porque os alunos são confrontados com currículos completamente desadequados. Houve uma altura em que a situação esteve melhor (não bem), mas também não devemos esquecer que esta é uma área de conhecimento que tem o seu grau de abstração.

 

E é isso que gera a resistência?

Provavelmente isso causa alguma dificuldade. De facto, na sua essência, a Matemática é uma disciplina muito abstrata. Mas não podemos confundir a ciência matemática, a Matemática do Ensino Superior, com as abordagens matemáticas das crianças desde os primeiros anos de contacto com a escola. Se enfrentam logo essa Matemática, vão criar resistência, porque lhes está a ser dado algo que não são capazes de digerir. Por isso é que temos insistido em que estes programas são maus; não porque tenham erros matemáticos, mas porque têm erros didáticos, inclusivamente daquilo que é o programa, as abordagens dos conteúdos matemáticos. Isso está muito desajustado. Não há aprendizagem consistente apenas na repetição de procedimentos que não compreendem, que mecanizam e não compreendem. Um exemplo muito claro é o desenvolvimento do sentido do número, um trabalho que o anterior programa do Ensino Básico desenvolvia. O importante é que uma criança, confrontada com um número ou uma operação, perceba o que está a acontecer em termos da grandeza do número, do sentido que aquele número tem. Porque se apenas memoriza e treina algoritmos, ou seja, processos de chegar a um resultado, muitas vezes sem compreender, está apenas a mecanizar um procedimento. A criança que faz as somas do ‘e vai um’ não tem qualquer noção dos números com que está a trabalhar. O cálculo mental não é desenvolvido utilizando estes procedimentos e as crianças não aprendem a desenvolver um sentido de número que lhes permita olhar para um resultado com sentido crítico. Os atuais programas não desenvolvem isso, não preparam para isso.

 

Ciência abstrata e, no entanto, tão exata. É que dois mais dois são quatro, não há outra hipótese.

A Matemática tem muitas abordagens, mas na sua essência trabalha com a abstração pura. O que é o dois? Já é uma abstração. No entanto, está muito presente, rodeia-nos por todos os lados. Nos padrões, nas regularidades… Nas engenharias, nas arquiteturas, nas economias, que são áreas muito valorizadas, a Matemática é uma ferramenta muito importante. Mas também é mais do que isso, e nem todos os jovens vão seguir áreas de trabalho que têm a ver com a aplicação dessa Matemática. No entanto, todos têm de saber compreender, de saber analisar um resultado, saber fazer uma argumentação ou uma conjetura. Tudo isso é trabalho que deve ser feito com as crianças no seu desenvolvimento harmonioso, com coisas que elas sejam capazes de compreender, de manipular intelectualmente e, muitas vezes, com as próprias mãos.

 

A sociedade reconhece a importância da Matemática em todas a áreas?

Reconhece, mas também afasta muitas vezes a Matemática das pessoas. Quer dizer, é tão importante, tão importante, que é só para alguns... Nesse sentido, é uma importância que afasta a Matemática daquilo que devia ser a experiência matemática dos alunos.

 

Ainda há muitos mitos e preconceitos?

Há muitos. Por exemplo, o preconceito do rigor – sendo uma ciência rigorosa, tem um grande grau de incerteza em muitas áreas; o preconceito da inacessibilidade, de ser só para alguns; ou de que há um gene inato para se gostar ou não gostar. O preconceito de que os matemáticos são pessoas muito sérias, sisudas, muito quadradas. Tudo isso são preconceitos.

 

O que pode ser feito para a Matemática deixar de ser vista como bicho-papão?

Há duas vertentes. Uma é a questão da divulgação: desde há muitos anos que temos tido exemplos de divulgação que chama a atenção da sociedade, e dos alunos em particular, para aspetos que não estamos muito habituados a ver associados à Matemática – por exemplo, o «Isto é Matemática» [SIC Notícias] e programas desse tipo chamam a atenção da ligação da Matemática com todas as áreas de atividade e da vida quotidiana, e às vezes com as mais insuspeitas e inesperadas. Mas depois há outro trabalho, que não chama tanto a atenção, que é o ensino, o trabalho de sala de aula. E aí, volto a insistir, é preciso uma abordagem matemática, um trabalho com os alunos que não os afaste, que não lhes dê uma sensação de impotência, de incapacidade. Pelo contrário, que inclua e seja capaz de levar cada vez mais alunos a um desempenho que lhes permita ter, pelo menos, aquilo a que chamamos literacia matemática. Não é o ‘ler, escrever e contar’ da escola do Estado Novo, mas ser capaz de compreender, de argumentar, de ter um sentido crítico sobre aquilo que aparece como algo que é perfeito. A Matemática é muito manipulável. Por exemplo, na Estatística, é manipulável e muito manipuladora. Muitas vezes pode utilizar-se o rigor dos números ou os números com aparência de rigor para enganar as pessoas. Por isso, é muito importante trabalhar a literacia estatística dos nossos alunos como deve ser, como área do conhecimento que envolve grandes números e a descrição de fenómenos sociais que precisam de ser analisados com grande sentido crítico.

 

Que expectativas tem para o futuro?

O que posso dizer em relação ao futuro e às expectativas é olhar sempre com esperança. O futuro tem uma coisa muito boa que é ser sempre o amanhã, o território onde habita a esperança. Podemos sentir que está tudo muito negro e que não há futuro, mas o futuro há sempre. E constrói-se com os nossos esforços, no presente. Podemos não ser tantos como há 20 anos, o movimento associativo conheceu um grande decréscimo, por via de uma sociedade muito mais individualista e competitiva, e o que é próprio de um movimento associativo é a colaboração e a partilha. O pagamento de quotas também foi afetado por tantos cortes que os profissionais têm conhecido. E tudo isto se junta num fenómeno que é o isolamento das pessoas, dos profissionais, dos professores em particular. Mas aquilo que a APM continua a dizer é que é importante estarmos juntos. Uma associação, uma comunidade, seja qual for, é uma mais-valia, porque juntos somos mais do que a soma individual de todos nós, juntos podemos mais. Continuamos a ser um grupo coeso, um grupo interessado, que continua a lutar por uma Educação de qualidade, com significado para os alunos. Por muito negro que seja o horizonte, acreditamos que o nosso trabalho deixará pegadas e não passos (como recorda a nossa primeira presidente, a propósito de um sermão do Padre António Vieira), porque os passos passam e as pegadas ficam. E são a semente de um futuro para o qual temos de olhar sempre com muita esperança.

 

Exatamente, a primeira presidente da APM, Leonor Filipe, disse que ser professor é uma arte. E concretamente, ser professor de Matemática?

É uma arte muito especializada, exatamente porque tem de lutar contra fortes preconceitos da sociedade e dos alunos. Além das dificuldades que todos os professores têm para passar aos alunos e às famílias a importância do conhecimento e do estudo, o professor de Matemática tem de ultrapassar o grande preconceito de que a Matemática é inacessível, de que é muito difícil… É, por isso, uma dupla arte. E uma prova de resistência.

Maria João Leite (entrevista)

Ana Alvim (fotografia)


  
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