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A cidadania vive-se, não se aprende por discursos ou a estudar

Professor por inteiro e diretor da escola Tangerina todos os dias, Manuel Rangel nunca deixou de dar aulas desde que concluiu o curso do Magistério Primário, no Porto. Da formação de educadores e professores ao 1o Ciclo, ser professor foi o seu “múnus” e a Tangerina o projeto central da sua vida – que terminou apenas algum tempo depois desta entrevista, que seria a última. Recebeu a PÁGINA com o sorriso que era marca da sua imagem, e como tal irá perdurar na memória de tantos que com ele partilharam a construção de saberes. Até sempre! [1956 / 2015]

 

A Tangerina é um projeto que nasceu em condições muito especiais.

Sim. Era um projeto já antigo, de algumas pessoas. Há cerca de 20 anos, quando a escola foi fundada, não havia um espaço com um projeto educativo que, do ponto de vista da filosofia de base, fosse realmente diferente. O projeto acabou por nascer de uma forma um bocadinho diferente do que é costume, a partir dos próprios pais. Um grupo de professores estava a trabalhar numa escola, também privada, onde se começou a aplicar um programa de Matemática que acabou por ser um êxito, o Comprehensive School Mathematics Program. Os pais organizaram-se para avançar com uma escola onde se desse continuidade a esse programa, que é o que ainda usamos. Teve o lado bom de ter partido dos pais, mais ainda por ter começado pelo lado da Pedagogia, da Educação.

 

O que é que distingue esta escola das outras?

Isto não tem nada de especialmente novo. O que seguimos aqui são os princípios que há cento e tal anos se anda a dizer que deviam orientar a chamada Escola Nova. A grande questão é traduzir isso em mais do que declarações de intenção. Foram criados os chamados projetos educativos e aquilo é papel do princípio ao fim… Ou seja, são princípios, objetivos, intenções, e depois burocracia, caracterização pseudossociológica dos meios, mas não tem influência nenhuma sobre a ação. Costumo dizer que não temos nada de novo, a não ser tentar fazer o que está dito nesses princípios. O que tem sido difícil para a instituição Escola é encontrar em cada uma das disciplinas, em cada um dos conteúdos, e até na forma de estar, a tradução prática desses mesmos princípios no dia-a-dia, gesto a gesto. Acho que, em geral, as pessoas acreditam neles, mas depois vão trabalhar a Matemática e nem a Matemática é posta daquela maneira, nem os professores se colocam daquela maneira. Mas isto em tudo, mesmo na centralidade que é dada à criança. Vivemos anos quase disparatadamente pedocêntricos; a criança tornou-se a ‘rainha’, mas nas partes mais inúteis, fúteis e perigosas. As crianças têm tudo, é-lhes dado tudo, é-lhes proporcionado tudo. Não digo que seja universal, mas com frequência tornam-se chantagistas, birrentas... E os pais acabam por ceder. Mas depois, no essencial, e isso é muito nítido na Escola, elas não ocupam o centro, porque não lhes é reconhecido o estatuto de pessoa, de cidadania, de quem tem opinião.

 

Nas escolas, o foco pedagógico não está ‘bem direcionado’?

Não. Diz-se que a criança tem de ter opinião, mas depois isso não se traduz, sobretudo nas matérias. A Escola continua a querer as coisas fechadas e padronizadas. Por exemplo, o Português é dado com respostas fechadas e aquilo que no fundo se ensina às crianças é a responder ao que o professor quer. A criança preocupa-se mais em saber o que o professor quer que ela responda do que aquilo que ela acha. Não se lhe dá o estatuto de maioridade no pensamento. É evidente que não é de maturidade, mas é de maioridade. As crianças são pertinentes naquilo que dizem, têm um pensamento válido, são capazes de discutir entre elas. Nós vamos aplicando aqui esse programa da filosofia para crianças. No fundo, a intenção de explorar questões a partir do grupo. E com a convicção de que as crianças são capazes de fazer perguntas pertinentes, de discutir, de argumentar. Mas isto é uma aprendizagem que se faz. E o programa de Matemática é isto, também.

 

Como é ensinada-aprendida a Matemática?

No fundo, trabalhamos os mesmos conteúdos previstos no programa oficial do 1o Ciclo do Ensino Básico, mas com uma metodologia totalmente diferente, mais assente em conceitos do que em técnicas. A Escola em geral preocupa-se em ensinar rapidamente truques e técnicas às crianças, como se o 1o Ciclo fosse o fim da escolaridade obrigatória. Este programa é mais centrado em conceitos e, sendo da área da Matemática, reclama-se um programa socrático. Temos uns manuais que seguimos, onde os professores têm o que devem fazer aula a aula. E a coisa mais espantosa, que até assusta um bocadinho, é que, parecendo que o professor vai ter de estar condicionado àquilo, ao fim de algum tempo, percebemos que esses manuais são em si um instrumento de formação dos próprios professores, porque não há fala do professor que não acabe com um ponto de interrogação. Portanto, o que nós aprendemos com este programa é que até na Matemática, que parece distante, tudo pode ser tirado das próprias crianças.

 

O programa não dá margem aos professores?

A princípio é um bocadinho condicionante, porque os professores têm ali toda a aula, as situações e até as respostas possíveis dos alunos. Mas, no fundo, para condicionar o professor a que continue a fazer perguntas. O que acontece é que, ao fim de uns meses, ele vai-se libertando daquilo, vai adaptando aquela estrutura ao grupo, vai mudando a situação e o contexto, vai suprimindo aulas ou juntando aulas... Os professores são todos diferentes, mas todos usam o mesmo programa.

 

 

E os resultados?

De facto, o que é espantoso é o resultado. Porque ao fim destes anos, todos os dias temos dúvidas: se é este o caminho, se estamos a fazer bem, se podíamos ir mais longe... Acho que ter dúvidas é o que nos torna vivos. E nessa vigilância quotidiana nunca estamos muito seguros de que chegamos ao modelo final, mas o que nos dá mais gosto – e talvez seja a nossa maior vitória – é termos demonstrado nestes já quase 20 anos que é possível manter todos os princípios e ter bons resultados. O que se tem dito muito nos últimos anos é que nas escolas onde os alunos estão contentes, alegres, felizes, não se aprende e os resultados baixam. Parece que para haver bons resultados é preciso ser tudo uma chatice. E eu acho que aqui na escola o mais gratificante para nós é o feedback dado pelos pais, de que os alunos vivem bem aqui dentro, têm um grande à-vontade e depois têm muito bons resultados.

 

Não estamos aqui a trabalhar para o exame. A nossa preocupação vai muito mais longe

 

Portanto, a escola segue os currículos e o que muda é o método?

Não diria que seguimos, mas temos como referência final os conteúdos. Por exemplo, em Estudo do Meio praticamente não seguimos o programa; trabalhamos por projetos e, portanto, é o que aparecer. Partimos do princípio inverso. Os conteúdos de Estudo do Meio nos quatro primeiros anos são, e bem, as coisas mais próximas da vida das crianças: elas próprias, o meio onde vivem, a família, o bairro… Os programas tentam dar uma visão enciclopédica do mundo que cerca as crianças. Nós chegamos lá de outra maneira, fazemos um bocadinho ao contrário: em vez de darmos no primeiro ano um bocadinho do corpo humano, da família, do bairro e das instituições, e no segundo ano outro bocadinho do corpo humano, um bocadinho do espaço, do meio... Deixamos que as coisas fluam, que eles peguem nos temas que lhes interessem e vão trabalhando e estudando, confiando que na maior parte das vezes vão ao encontro do que é pretendido. E o que nós, professores, temos de fazer é a leitura oposta, ou seja, eles já trabalharam isto, isto e isto. É certo que há coisas importantes a que não se chega, acontece muito no 4o ano, mas então nós acrescentamos isso. É isto que eu distingo entre ter como referência ou seguir o programa. E na Matemática é um bocado a mesma coisa.

 

E vão cumprindo as metas...

Temos de cumprir, até porque os nossos alunos são sujeitos a exame. Mas fazemos o nosso programa normalmente. Temos é de fazer um levantamento daquilo que está nas metas e não está no nosso programa e de chegar ao 3o e 4o anos e, consideremos absurdos ou não, acrescentar os pontos em falta. Temos essa preocupação, mas não deixamos que a pressão exterior estrague as nossas perspetivas. Uma coisa muito frequente – e é um dos problemas dos exames – é as pessoas estarem sempre a desculpar-se por não fazerem isto ou aquilo porque têm exames, porque têm muito programa para dar... O que nós temos vindo a provar é que podemos fazer aquilo em que acreditamos e que consideramos mais importante: que eles tenham a cabeça bem estruturada, que saibam pensar nas coisas. O resto torna-se mais fácil.

 

Valorizam muito os verbos “aprender” e “divertir”.

Sim. Uma coisa e outra não são inconciliáveis, pelo contrário.

 

E acham que essa conjugação se tem perdido nas escolas?

Sim. Sobretudo agora, com a competição que existe na entrada para as faculdades, as pessoas acham que tudo é decisivo desde os primeiros anos. E a história dos rankings veio agravar isso. As pessoas preferem os bons resultados académicos, embora isso, às vezes, nem traduza exatamente o bem-estar e o contentamento das crianças. Tenho dito a vários pais que talvez esta não seja a escola que procuram. Nem toda a gente educa da mesma maneira: há pessoas que são, de facto, rígidas, centradas no estritamente académico, nos resultados, e há outras que pensam um bocadinho mais longe. O que acontece muitas vezes é que os resultados são conseguidos a partir de sistemas muito estreitos, muito forçados, em vez de se pensar em alunos mais autónomos, mais interessados, capazes de se governarem a si próprios. Essa é a nossa preocupação. Nós não estamos aqui a trabalhar para o exame; a nossa preocupação vai muito mais longe. Para nós, é mais importante que eles se submetam a exame sem demasiado nervosismo, com alguma segurança, que façam o seu melhor e que percebam que quatro anos da sua vida não se resumem a um exame. Para nós, é muito mais importante que estejam emocionalmente bem, que gostem de vir à escola, que gostem de aprender, que sejam interessados por questões culturais. Gratifica-me mais saber que os nossos alunos são fabulosos num museu, enquanto outros acham uma seca. Para mim, o interesse cultural, o saber discutir um tema, é muito mais importante do que uma boa nota nos exames.

 

Eles são desafiados e estimulados para isso?

Uma criança com a cabeça bem organizada faz a parte escolar, que é a mais simples. O resto é muito mais complicado: estudar, saber procurar, levantar questões, ir mais longe... A parte escolar é como os algoritmos na Matemática: se souberem os conceitos, os algoritmos são mais simples; se não perceberem o que estão a fazer, falham sistematicamente. E este é o erro do ensino mais tradicional, estar tão preocupado com um certo tipo de eficiência que queima etapas e portanto não lhes dá as armas para que percebam o que estão a fazer. Portanto, quando os pais põem aqui as crianças, têm de ter muito claro que o nosso trabalho não é para bons resultados traduzidos em questões académicas. Mas temos a segurança das notas dos nossos alunos serem muito boas no 5o ano, e tanto faz irem para o setor público ou continuarem no privado.

 

 

Há uma boa integração?

Há um choque na forma de estar, sobretudo. Uma mãe contou-me que há tempos foi chamada à escola e todas as queixas que lhe fizeram eram coisas que ela considerava boas: que o filho fazia muitas perguntas, que estava sempre a responder às questões, que tratava os professores com uma proximidade muito grande – tudo o que essa mãe sempre quis. Existe esse choque relativamente à forma de estar, mas as crianças têm uma grande capacidade de se adaptarem e de perceberem quais são as novas regras. E a verdade é que têm sucesso escolar, e isso dá-nos gozo. Embora não trabalhemos para a nota académica, é bom saber que aquilo que elas aprenderam aqui funciona como um bom suporte, mesmo no ensino mais tradicional. Acreditamos que, no fundo, estamos aqui para perceber o mundo e para colocar questões sobre o mundo. Nós estamos muito mais interessados nas perguntas dos miúdos do que nas respostas, e o ensino preocupa-se muito mais com o contrário: a resposta, o fechado, o tipificado, o estereotipado, o não questionar. É triste que a Escola se preocupe sempre mais com a avaliação do que com o ensino. Aliás, pouco se ensina para se avaliar imenso. A Escola devia estimular a linguagem, a expressão, o conhecimento, o contacto, a experiência.

 

A escola deve servir para as crianças perceberem o mundo e expressarem ideias e sentimentos sobre ele

 

É necessário mais espaço para as expressões?

Os nossos dois pilares são as expressões e os projetos; são as nossas opções metodológicas instrumentais. A expressão é o que nos permite respeitar as crianças e dar um sentido correto ao trabalho que fazemos com elas; é pensar que toda a escola deve servir para as crianças entenderem o mundo e expressarem ideias e sentimentos sobre ele. E só podemos fazer isto se dermos uma importância grande à expressão. As pessoas reduzem as expressões a umas pinturinhas, a uns ‘macacos’ expostos na parede. Não é isso! É a centralidade da expressão efetiva das crianças! A primeira coisa que uma criança faz é exprimir-se por desenho, por gestos. E o que temos é de dar abertura e espaço para ela se exprimir, porque aos três, quatro anos é isso que ela tem de fazer: exprimir as suas preocupações, os seus medos, as suas ideias… Por outro lado, trabalhar as expressões é trabalhar diferentes linguagens. Aqui, as expressões são centrais e atravessam todas as áreas. São o reflexo do nosso olhar sobre o papel da escola, que é tornar a criança capaz de entender o mundo através de múltiplas linguagens, para depois saber exprimir o seu pensamento, as suas ideias e os seus sentimentos sobre o próprio mundo. Por isso, uma das nossas linhas é a Educação pela Arte. Esta é uma escola geral, mas a Arte é um instrumento fundamental, que valorizamos muito.

 

E relativamente aos projetos?

Os projetos são um instrumento que nos permite dar às crianças a noção do que é a escola, onde elas podem estudar o que quiserem saber. Esta é a diferença em relação ao Estudo do Meio – não é dar-lhes 20 aulas sobre o corpo humano, mais cinco sobre o espaço ou mais sete sobre História. Há coisas que nós sabemos, que são o nosso património cultural e histórico, que é importante passar, mas isso que venha delas, que venha a propósito das suas inquietações. Há algum tempo, entrei na sala dos quatro anos e vi que estavam a estudar Matisse. Estranhei, mas a educadora explicou-me que um dia estavam a fazer colagens e, ao ver um dos trabalhos, comentou que parecia um quadro de Matisse. Um dos miúdos perguntou quem era e ela explicou que era um pintor que trabalhou muito com recorte e colagem. E uma das crianças disse que esse podia ser um assunto a estudar. Isto é um pequeno exemplo. Aos 4 anos eles já tinham percebido para que deve ser a escola, que é para estudar aquilo que nos despertar a curiosidade.

 

Falemos da proximidade entre alunos e professores. Eles almoçam juntos nas salas de aula...

Sim. Nós temos, oficialmente, um espaço de cantina, mas este acaba por ser mais um momento de convívio muito importante. Cria responsabilidade e envolvimento. E para nós faz parte da educação. Em cada sala, temos equipas responsáveis por limpar a sala depois de trabalharem, ir buscar a louça e pôr a mesa e limpar no fim. Isto trabalha muito a questão dos papéis. Todos estamos ali, todos temos obrigação de fazer; se sujamos, temos de limpar. É a tal educação para a cidadania, uma expressão que, sinceramente, até me incomoda, porque não se traduz em nada. Há escolas que têm aulas de Educação para a Cidadania, mas depois estão organizadas de forma anti-cidadã. É mais um conteúdo que os alunos têm de decorar para ‘papaguearem e vomitarem’ nos testes. A cidadania não se aprende por discursos, por se dizer ou por estudar. A cidadania vive-se e só se aprende se se viver.

 

A Tangerina é o projeto da sua vida?

É um projeto central na minha vida. E continua a dar-me gozo vir para aqui todos os dias, reencontrar as crianças, e pensar no que fazemos. Tenho sempre uma grande inquietação, nunca estou satisfeito. Mas tenho um grande gozo nisto!

Maria João Leite (entrevista)

Ana Alvim (fotografia)


  
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