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Que a investigação quebre as amarras do sistema e se aventure fora da escola

A Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE) assinalou o seu 25o aniversário, em maio, com uma sessão comemorativa na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Após a mesa-redonda Imaginar o Futuro das Ciências da Educação e um momento musical, a SPCE prestou homenagem a três dos seus fundadores: Bártolo Paiva Campos, Maria Teresa Estrela e Agostinho Ribeiro, que passaram a ser os seus primeiros sócios honorários. Para perceber o significado da homenagem e indagar sobre os desafios que se colocam às Ciências da Educação, a PÁGINA questionou o Professor Agostinho Ribeiro, que gentilmente respondeu por escrito. Doutorado em Ciências da Educação pela Universidade de Lovaina (1983), Agostinho Ribeiro lecionou em escolas de formação de educadores de infância e nas universidades do Minho e do Porto – é jubilado da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação – e, entre outras referências, coordenou o projeto de investigação CRIA-SE (Criatividade e Sucesso Escolar), que na segunda metade dos anos ‘90 deu origem a múltiplas publicações.

 

Que significado atribui à homenagem que lhe prestou a SPCE?

Uma homenagem tem sempre dois níveis de significado: o de quem a promove e o de quem a recebe. À razão institucional que justifica a homenagem pode não corresponder idêntica justificação da pessoa homenageada. É possível até que considere injusta a homenagem, por reconhecer que grande parte do mérito que lhe atribuem pertence de direito aos verdadeiros autores do saber que acumulou, ou aos colaboradores que concretizaram os projectos de que foi institucionalmente responsável. É de todo razoável que a SPCE, ao comemorar o 25o aniversário, evoque a sua fundação distinguindo três dos sócios fundadores, já retirados da vida activa. Pessoalmente, porém, sou um tanto avesso a homenagens em geral, e mais ainda em fim de carreira. Disse-o ao presidente da SPCE, quando me comunicou a intenção de me outorgar tal distinção, e repeti-o publicamente no acto da homenagem. É que as homenagens em fim de carreira visam alguém a quem se quer dizer que cumpriu, isto é, desempenhou mais bem do que mal o seu papel. Mas é como dizer-lhe: “Fizeste o que tinhas a fazer, o teu tempo útil esgotou-se; podes ficar tranquilo, não te pediremos mais nada”. A homenagem diz isto publicamente e em voz alta, para que todos saibam. Além disso, é natural que a homenagem, evocando selectivamente o que o homenageado fez, active na sua mente a memória do que não fez. Felizmente, a quem olha para o seu passado, ele apresenta-se-lhe comprimido; e se ainda consegue fazer uma ideia aproximada do tempo que ocupou a fazer o que fez, o tempo do que não fez, porque vazio de experiência, tende a diluir-se até desaparecer completamente. Por isso, quando olha para trás, parece-lhe que não podia ter feito muito mais do que fez.

 

Quais são os desafios que atualmente se colocam à comunidade científica educacional?

Uma comunidade científica educacional tem, naturalmente, por função produzir conhecimento no domínio da educação. Mas para se poderem identificar os desafios que a comunidade científica deve esperar – ou que provavelmente a esperam – é preciso clarificar o conceito de educação com que nos propomos lidar. Quando no discurso comum se fala de educação, está-se a pensar na aquisição de certas qualidades ou na observância de certas normas de comportamento. Ainda assim, a mesma palavra pode referir-se a duas realidades distintas. Consideramos bem-educada uma pessoa que nas situações sociais adopta o comportamento socialmente correcto, ou seja, as boas maneiras de polidez ou cortesia a que Erasmo chamou civilidade. A boa educação, neste sentido, é algo de superficial, um verniz que decora a imagem, ocultando a verdade da pessoa. Num sentido mais largo e mais profundo, educação refere-se ao desenvolvimento global das potencialidades corporais e mentais do indivíduo, que lhe estruturam a personalidade e balizam todo o comportamento. Este é o sentido genuíno de educação, e é do que se trata quando se diz educação escolar, sistema educativo ou ciência educacional. Estas expressões são, porém, de uso recente. As artes e ofícios sempre foram, desde a Idade Média, objecto de ensino e de aprendizagem, que não de educação, o mesmo acontecendo com as artes liberais e com as universidades de estudos; e até ao século XX, o que se ministrava nas escolas era também ensino ou instrução. No meu tempo de escola primária, o ministério que antes era da Instrução Pública já se chamava da Educação Nacional. Mas a minha escola era de instrução primária e ao completar a 4a classe tive direito a um diploma de 2o Grau do Ensino Primário Elementar. Tudo o que dantes era aprendizagem e ensino ou instrução é hoje, oficialmente, educação: temos um Ministério da Educação e um sistema educativo, e até se usa chamar educação a processos específicos de ensino-aprendizagem como os da Matemática ou da Física. Poder-se-ia esperar que a substituição de ‘ensino’ por ‘educação’ traduzisse uma verdadeira refundação da Escola, uma alteração radical dos seus objectivos e âmbito de intervenção, no sentido pleno e genuíno do termo adoptado. A verdade, porém, é que está longe dos propósitos do sistema educativo – que mais propriamente se chamaria sistema escolar – realizar educação nesse sentido. E tudo indica que o défice de eficácia que se vem notando em algumas vertentes da sua função de ensino se deve em grande parte à inexistência de uma instância verdadeiramente educativa que vele pela formação pessoal, social, ética e política das crianças e jovens. Creio ser este o grande desafio que a comunidade científica educacional deve assumir. Abundam trabalhos de reflexão identificando as disfunções da Escola e sugerindo maneiras de as corrigir, se bem que nem sempre os decisores lhes prestem a atenção devida. O certo é que o sucesso da Escola na sua função específica de ensino-aprendizagem se vem revelando, infelizmente, limitado; mas o défice de educação, no sentido pleno do termo, de que dão mostra as novas gerações, não só é causa de infelicidade para os indivíduos, como representa, para a própria sociedade, uma ameaça permanente. Já não basta, pois, à comunidade científica investigar a Escola e o sistema ao nível dos currículos e conteúdos disciplinares, da competência científico-pedagógica dos professores ou da relação professor-aluno. É preciso que a investigação quebre as amarras do sistema e se aventure fora dos muros da escola, desbravando terreno ainda inculto na busca dos fundamentos de uma educação total.

A Página da Educação


  
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