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Os alunos que formamos são o nosso grande património

Depois de ter feito parte do elenco de várias companhias de teatro, como a Seiva Trupe, o TEAR ou A Barraca, António Capelo esteve na criação da Academia Contemporânea do Espetáculo: primeiro, da ACE/Escola de Artes (1990), e mais tarde, da ACE/Teatro do Bolhão (2003). Escola e companhia, duas vertentes que se complementam e que enchem de orgulho os fundadores da ACE, “um projeto com valores” e que revitalizou o panorama criativo do Porto. Completados 25 anos de existência, a academia inaugurou “a sua” casa, o Palácio do Bolhão, onde António Capelo conversou com a PÁGINA. O ator, que é também o diretor artístico da ACE, falou da luta pela conquista do palácio e do apoio da cidade, do teatro e da academia, da relação do Estado com a Cultura e da sua terra – Pedorido, em Castelo de Paiva.

 

E cá estamos no Palácio do Bolhão! Uma luta de anos e que contou com o apoio da cidade…

Um apoio tão díspar como o de um sindicato ou de uma enceradora, por exemplo. Pessoas individuais e coletividades, sindicatos e mercearias, uma panóplia muito diversa… E é interessante perceber que, apesar de as pessoas e as organizações serem diferentes, há um bem comum que tem a ver com a Cultura e com o facto de as pessoas pensarem que isto também é uma necessidade para a vida delas. Para nós, é extremamente motivador ver que há imensa gente que percebe que aquilo fazemos pode ser também interessante para elas. No fundo, essa é a essência do trabalho de um ator, tem a ver com o facto de ele ter uma opinião sobre qualquer coisa, de ter o descaramento de ir para cima de um palco e partilhar essa opinião com os outros. Se aquilo que te faz mexer também é interessante para os outros, isso é muito gratificante. Significa, também, que nós [ACE] agora temos aqui uma responsabilidade acrescida: nós fizemos isto neste espaço, entregamos isto à cidade, mas a cidade espera mais de nós, espera que o nosso trabalho de criação tenha pelo menos a qualidade que isto tem.

 

Há um compromisso.

Claro. Fizemos uma escola porque entendíamos que a formação de técnicos e de atores era fundamental. Fazemos teatro e temos uma unidade de produção porque entendemos que o que fazemos em termos de produção e de programação pode ser interessante para as pessoas, também do ponto de vista da sua formação. Entendemos que a formação de públicos é essencial para o desenvolvimento das nossas relações. E agora os públicos são mais exigentes. Isso é muito bom para nós, porque eles exigem- -nos mais e nós, evidentemente, temos de ser mais responsáveis.

 

A inauguração do Palácio do Bolhão é um marco importante nos 25 anos da Academia.

Importantíssimo! Quando começou, a escola tinha um espaço muito pequeno, e para termos aulas usávamos pelo menos mais dois espaços: o Teatro Universitário do Porto e o teatro da minha antiga companhia, TEAR, na Rua do Heroísmo. A dada altura, conseguimos instalar num espaço provisório, no antigo Colégio Almeida Garrett, praticamente todas as nossas atividades. Fizemos um auditório onde era o ginásio e conseguimos instalar ali tudo, mas foi sempre um espaço provisório para nós. Andávamos à procura de um espaço definitivo, procurámos muito, identificámos este e abalançámo-nos a ele. Evidentemente que demorou este tempo todo, porque foi preciso arranjar cerca de dois milhões e 800 mil euros. E nós somos uns desgraçados de uns pobretanas que não temos onde cair mortos... Tivemos de andar à procura desse dinheiro e de consegui-lo das mais diversas formas. Mas finalmente temos o nosso espaço; não um espaço provisório, não um espaço de outro – este é o espaço da ACE e, ao fim de 25 anos, podemos dizer que acrescentamos mais-valia ao nosso próprio projeto. Conseguimos instalar-nos num espaço que é paradigmático daquilo que entendemos que deve ser uma escola de arte, porque tem a ver com o centro da cidade, com a recuperação de património, com a revitalização da Baixa. Estamos muito felizes por comemorar os 25 anos aqui, num espaço que há muito queríamos que fosse nosso.

 

Como avalia estes 25 anos de atividade?

Devemos estar muito orgulhosos do projeto que desenvolvemos, porque ao longo destes 25 anos manifestou-se um projeto com valores. Os alunos que formamos são o nosso grande património: em qualquer parte onde desenvolvam o seu trabalho, eles são um espelho daquilo que, de alguma maneira, a escola é; são o nosso orgulho! É muito gratificante recebermos frequentemente dos produtores uma opinião muito positiva sobre o trabalho dos nossos ex-alunos; é o melhor património que podemos ter. Por outro lado, sentimos que contribuímos fortemente para a revitalização do tecido produtivo das artes de palco na cidade do Porto. Era um dos objetivos da criação da escola e estamos muito felizes por isso.

 

E agora o futuro, que é já hoje…

Agora temos de lançar a nós próprios novos desafios. A gestão deste espaço vai ser também um desafio, porque além do Palácio temos o auditório, e é preciso utilizarmos esses espaços de uma forma continuada para os públicos. E isso é muito complicado. É preciso perceber que somos uma pequena estrutura de produção e de criação teatral – pequena no sentido do apoio da Secretaria de Estado da Cultura; qualquer estrutura de Lisboa tem muito mais apoio do que nós. Portanto, é preciso que o próprio Estado olhe para esta realidade e a entenda. Nesse sentido, esperamos ter um diálogo com os representantes da Cultura muito mais produtivo para todos. É preciso entender que isto mudou, que há um paradigma que mudou na cidade com a abertura deste espaço. É preciso que o Estado olhe finalmente para o Porto como uma cidade com uma dinâmica cultural própria e muito interessante para o resto do país.

 

A ACE é escola e companhia de teatro. Que relação existe entre as duas vertentes?

Elas acrescentam-se a todos os níveis, até do ponto de vista da rentabilização de meios. Por exemplo, nós temos um curso de luz e som, um curso de cenografia e figurinos e um curso de interpretação. Para termos um curso de luz e som precisamos de material de luz e de som para darmos as aulas; é preciso que os alunos percebam para que serve este projetor ou aquele tipo de material. Ora, tendo este material, é uma pena que só seja usado na sala de aula. Assim, é possível pô-lo também ao serviço da produção. E ele está na sua função mais nobre que é iluminar atores e cenários para que os espetadores possam ver as obras que fazemos. Há aqui uma rentabilização de meios, e o mesmo se passa, por exemplo, no curso de cenografia: para fazermos figurinos temos de ter mesas de corte e costura, máquinas de costura, mestres costureiras que vão ensinar os alunos, e seria uma pena não rentabilizar isso. A nossa ideia sempre foi esta.

 

De complementaridade.

Exatamente. E do ponto de vista da interpretação, há uma mais-valia que a escola acrescenta à companhia, que é a interrogação. Quando trabalhamos com jovens dos 15 aos 20 anos que chegam ao teatro porque querem ser atores, e que têm um caminho para percorrer, é evidente que eles chegam cheios de interrogações, e as interrogações estendem-se às nossas próprias interrogações. Isto é muito bom para o trabalho que desenvolvemos, o trabalho criativo. Um grande pensador dizia que uma companhia que permaneça na mesma cidade durante vários anos e não tenha uma escola que a interrogue há de morrer mais dia menos dia. Mas tendo uma escola que o faça, ela será sempre nova e inovar-se-á constante e permanentemente. Por exemplo, nós fizemos agora o “Édipo”. Que valor tem hoje fazer o clássico dos clássicos, a tragédia grega? O coro é um coro de anciãos de Tebas, mas hoje damos conta de que quem vai para rua questionar, quem acampa na rua, são os jovens, que querem saber qual é o seu futuro. E como tal, nós fazemos um coro de jovens. São eles que nos fazem as interrogações; de repente, depois de o encenador dizer para retirarem as palavras que de alguma maneira os inquietam, são eles que tiram palavras como ‘justiça’ e arremessam essas palavras ao público. Isso tem a ver com as interrogações deles, mas se formos abertos, entendemos claramente este tipo de interrogações. Portanto, o que fazemos nesta relação há de ser sempre novo, de alguma maneira, e isso é gratificante para o trabalho que fazemos.

 

Foi ator em várias companhias antes do Teatro do Bolhão. Como surgiu a vontade de criar uma escola? Sentiu que havia essa necessidade?

Sou de um tempo em que se não fizesse as coisas ninguém as fazia por mim – ou por nós; falo de uma geração. Hoje os jovens ficam mais expectantes do que nós. Há aquela palavra de ordem que é ‘o caminho faz-se a caminhar’ e como tal tivemos de fazer o nosso caminho. Antes da escola fiz duas ou três companhias, como o TEAR, que dirigi durante alguns anos. A escola nasce de uma inquietação muito grande, que tivemos nos finais dos anos 80. Lembro-me que na altura escrevi um artigo sobre o panorama da produção teatral no Porto que apontava três pontos que, para mim, eram fundamentais: primeiro, encontrar espaços de apresentação de espetáculos, porque havia muito poucos; a segunda necessidade tinha a ver com a formação de técnicos e de atores; e em terceiro lugar, a formação de públicos, para que sejam mais exigentes. E para isso é preciso que a oferta cresça, que seja mais exigente, para que eles possam escolher e ser mais exigentes.

 

Criar massa crítica...

Obviamente, não se pode fazer formação de públicos se não houver oferta. Portanto, começámos por fazer aquilo que achávamos que podíamos fazer – no caso, criar a escola para formar elencos e técnicos. E ao mesmo tempo, junto com a escola, criar um espaço de apresentação, porque não fazia sentido nenhum ter só uma escola e não ter, por exemplo, um auditório. Por isso, criámos um auditório provisório no Colégio Almeida Garrett – para mim sempre foi fundamental, para ter uma certa autonomia artística; ao contrário de algumas estruturas do Porto, que, além de não terem equipamento, não têm um espaço de apresentação e estão sempre dependentes de terceiros. Durante algum tempo, tinha a sensação de que éramos uma espécie de aldeia gaulesa na cidade, porque sempre tivemos o nosso espaço, onde podíamos trabalhar e apresentar o nosso trabalho e não ficar dependentes de terceiros para isso. Neste momento, a grande questão que se levanta tem a ver com a formação de públicos – é preciso trabalhar bastante na formação de públicos, por isso é que a nossa programação é muito diversa: espetáculos para a infância, para adolescên- cia e, obviamente, para o público em geral.

 

E como se forma o público?

A ideia de fazermos os clássicos tem a ver com a formação de públicos. Fazemos muito os clássicos, nomeadamente com o Kuniaki como encenador. Fizemos Molière, Brecht, Shakespear, Sófocles e há muito mais para fazer. Além do prazer que é revisitar textos maravilhosos da dramaturgia mundial, há este lado interessante da formação de públicos. No ano passado fomos ao Chipre com o “Édipo” legendado em grego e inglês, mas é curioso que as pessoas não olhavam para as legendas, porque é uma história que elas conhecem. E eu pergunto: e os nossos públicos, conhecem esta história fundamental da dramaturgia? Pois... Se calhar não conhecem e, portanto, é preciso que conheçam. É preciso trabalhar para educar o gosto pela Cultura. Vendo o “Édipo”, as pessoas ficam a conhecer, talvez, a história mais maravilhosa da relação dos homens com os deuses e da violência da procura da verdade num ser humano. Isso é transversal à nossa civilização e, como tal, o trabalho que fazemos não deixa de ser uma espécie de serviço público.

 

Acha que há uma boa relação entre o público e o teatro?

Neste momento, acho que há uma extraordinária relação. Mais... O que vou dizer pode ser estranho, mas acho que o facto de vivermos numa época tenebrosa torna as pessoas mais solidárias; nestas alturas, elas sentem que lhes faz bem estarem juntas. E o teatro é um sítio onde as pessoas estão juntas, e é sempre um sítio de interrogação. Virem ao teatro como os gregos iam à Ágora discutir as questões da polis faz bem às pessoas, que andam deprimidas. Há pessoas que passam fome! Os políticos dizem que o país está melhor; nós dizemos que o país não está melhor, porque o país são as pessoas. As pessoas sabem que nós trabalhamos para elas, sentem-se bem estando connosco e, portanto, vêm mais ao teatro; sentem-se bem aqui e são mais solidárias connosco. Se as pessoas vêm e enchem os espetáculos, sentimo-nos felizes porque podemos partilhar anseios, interrogações, vida…

 

São seres vivos, próximos, sem telas à frente…

Claro. E seres inquietos... E quanto mais inquieto é um personagem, mais te interroga enquanto espetador.

 

É ator de teatro, televisão e cinema. Sente que o teatro é uma espécie de ‘irmão’ menos querido?

Não. O teatro é uma espécie de casa com as janelas viradas para dentro, como disse um colega nosso. Acho que o teatro é uma essência, é ‘a’ casa. Podes ir por muitos caminhos, podes ir para muitos sítios, mas voltas sempre a casa. E eu sei isso muito bem, por experiência própria. O teatro é ‘a’ casa onde te sentes bem! Falamos muito no trabalho dos atores enquanto orgânico, enquanto verdade, e é aqui que procuramos isso.

 

Então é o ‘irmão’ mais mimado pelo atores.

É, claro. Nós damos mais mimo em nossa casa do que propriamente na rua.

 

E pelas outras pessoas?

Para ver teatro, o espetador tem de sair de casa e de vir cá, ao passo que para ver televisão não. A televisão torna as pessoas preguiçosas a todos os níveis, intelectual e fisicamente, mas o teatro não: as pessoas têm de sair de casa, de estar com outras, de socializar mesmo que não queiram. Nesse sentido, o teatro é socialmente muito mais válido, e não é por acaso que é a primeira das Artes. E depois está cheio de códigos, de ‘faz de conta’, que as pessoas aceitam, jogam. O Brecht acabou praticamente com as cortinas, com a ideia da ilusão. Hoje, as pessoas vêm ao teatro e podem olhar para cima e ver os projetores, e até perceber como são feitos, que não são todos iguais, etc. Nesta relação com o público em anfiteatro – o anfiteatro grego, meio circular, nasce das festas a Dionísio, nas quais as pessoas andam às voltas, a dançar, e os que vão ficando cansados sentam-se, enquanto os outros continuam a bailar, e de repente temos a arena em baixo e em cima o anfiteatro –, parece que o público está todo no mesmo sítio. Se o cenário for uma sala parece que estão todos na mesma sala, ou na praça pública, seja onde for. O que é outra coisa curiosa da tragédia: tudo o que era da intimidade passou a ser público. A mulher mata-se lá dentro, ninguém vê, mas alguém vem cá fora contar e torna isso público. Esse lado social é curioso, e os clássicos são fundamentais para perceber essas coisas.

 

A ACE forma atores e técnicos. Tem havido muito talento?

Muito!

 

E há mercado para esse talento todo?

Uma grande percentagem de alunos que saíram para o mercado estão a trabalhar na área, outros não. Mas também é natural que miúdos com 14/15 anos – que acabam o 9º ano e vêm para uma escola destas para se formarem até ao 12º – percebam que o desejo de serem atores ou técnicos de luz, de som, de cenografia, pode não ser comportável com as suas ânsias ou com as suas aprendizagens. E eles podem fazer outro tipo de coisas, até continuar os estudos – há ex-alunos que hoje são psicólogos, por exemplo. Nada disto é eterno… No início da ACE/Escola fizemos uma série de companhias. Passados estes 25 anos, o objetivo seria que essas companhias pudessem absorver outros alunos que saem daqui, mas a verdade é que o tecido produtivo da cidade degradou-se muito. Porque, de facto, não se pode trabalhar um ano inteiro com as condições miseráveis que o Estado entrega! Por isso, espero que o facto de termos aberto o Palácio do Bolhão possa abrir os olhos aos nossos responsáveis da Cultura junto do Estado, para que eles percebam que o paradigma na cidade do Porto mudou e que eles têm de ter outra relação connosco.

 

Como é que sobrevive a companhia?

É um grande, grande, esforço, com ordenados miseráveis. Trabalhamos muito e ganhamos muito pouco. Mas gostamos tanto disto que o fazemos por amor. Sobrevivemos com o nosso trabalho e este vira-se para muito lado; por exemplo, fazemos guarda-roupa para fora… Quando fazemos um espetáculo, mesmo que a sala esteja cheia e toda a gente pague bilhete, a verdade é que nós não o conseguimos rentabilizar: porque, no fundo, os apoios que o Estado dá à criação são dados aos públicos, para que venham e possam usufruir deste bem, que é essencial para se viver numa sociedade equilibrada e minimamente solidária e ativa. Para ser rentável um bilhete teria de custar dez vezes mais. Um espetáculo de teatro é caro e tem muita coisa envolvida. Dá emprego a costureiras, coladores de cartazes, gráficos, pintores, músicos, atores, cenógrafos, figurinistas, técnicos de luz, etc. É uma atividade economicamente muito dinâmica, mas ao mesmo tempo é cara. E nós, os produtores, suportamos os custos de tudo isto.

 

Como caracteriza o estado da Cultura?

Há uns anos, foi feito um estudo, do ponto de vista económico, que concluiu que a Cultura gera cerca de 3,6% do nosso produto interno bruto. Ou seja, é dinâmica. Mas é muito curioso, porque há uma rentabilidade da Cultura que não pode ser contabilizada por estes prismas, pela Economia só. Uma pessoa que usufrui, que lê, que vai ao teatro, que vê cinema, que é mais culta é, também, mais exigente política e socialmente. E de repente percebemos que há aqui qualquer coisa que não joga muito bem com a atividade dos políticos. Eles têm de perceber que a Cultura é importante e essencial. A relação que o Estado tem tido com a Cultura em Portugal não é a melhor, a todos os níveis. No teatro, esta relação tem vindo a degradar-se ao longo dos anos. Se formos aos programas dos partidos políticos vemos que todos eles, sem exceção, têm como objetivo ou como ideário o 1% do orçamento de Estado para a Cultura, mas depois, na prática, vemos qual é a percentagem... É isto que descredibiliza tudo. As pessoas deixam de acreditar, porque se fazem promessas que nunca se cumprem. Parece que a Economia é tudo neste mundo, que não há mais nada. E o ser humano está a ficar um bocadinho bruto.

 

Foi um dos fundadores do Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI), um evento de grande importância e que este ano vai ter lugar aqui, no Palácio do Bolhão.

Sim! O FITEI perdeu bastante nos últimos anos, mas este ano vai renovar-se completamente. No início, foi importantíssimo; nunca se perdeu, mas perdeu muito na relação com o público. Este ano, finalmente, vai ser renovado. O que espero para o FITEI é que se renove sistematicamente e tenha uma longa vida. Porque a ideia, na essência, é interessante: a ideia dos países de língua oficial portuguesa e espanhola, da lusofonia de alguma maneira... Nós que estamos sempre virados para o Atlântico, viramos-lhe as costas e, de alguma maneira, viramo-nos para a Europa. Parece que nos esquecemos de que o Atlântico sempre foi o nosso ‘ver para além de’. O FITEI tem esse lado de nos virarmos para África, para as Américas, e pelo menos aí mantermos alguma da nossa identidade, que pelos vistos andamos a perder há algum tempo. Nós não podemos perder as relações que temos com estes povos. Continuo a dizer que não pode ser só a Economia que nos move. Há outros valores, caramba! É preciso dizer aos políticos que isto tem de ser feito de outra maneira e que pode e deve ser feito de outra maneira. Tenho pena das vozes que se calam, umas porque se calam de vez – como o Mário Viegas, a Natália Correia ou o João César Monteiro – e outras porque, apesar de estarem cá, se foram calando…

 

A população de Pedorido, Castelo de Paiva, comprou um dos degraus do Palácio do Bolhão.

Sim. Lancei-lhes o desafio e eles, amavelmente e solidariamente, compraram um degrau. E está aí um degrau com o nome deles. Eu e o João Paulo Costa fomos fazer uma sessão de poesia lá na aldeia e eles vieram cá fazer uma visita ao palácio, do qual lhes contei as histórias e peripécias. Quando fizemos a Parada da Mudança foi a banda de música da minha aldeia que veio cá tocar, gratuitamente. Isto são valores. Eles quiseram e foram solidários connosco e nós temos de estar gratos.

 

Pode dizer-se que é “o menino da terra”…

De alguma forma, sim. Eu saí de lá muito novo, mas quem é que esquece a sua infância, a sua adolescência? E a relação com a terra, com o rio e com as pessoas? Isso é muito genuíno. O que tenho da minha aldeia são, acima de tudo, memórias afetivas. Lembro-me de quando era miúdo estar lá de férias e que um primo que tocava muito bem trompete ia todos os dias à janela, ao fim do dia, e tocava um tema. E a sensação que tenho é que a aldeia parava para ouvir; durante dois minutos parava tudo, e depois a vida recomeçava. Acho que isto é um bocadinho lírico da minha parte, mas que há lá qualquer coisa há. Se calhar a relação que tenho com a terra é mais lírica, porque é muito ligada a memórias afetivas. São sentidos, sabores, sons… No fundo tenho uma relação lírica com a terra, com a terra e com as pessoas.

 

Para terminar, que expetativas para o futuro da ACE?

O primeiro desafio é conseguirmos ter tudo isto a funcionar em pleno. Não nos podemos deixar adormecer e na escola é mais fácil que isso não aconteça porque os alunos se renovam sistematicamente. Mas temos de valorizar algumas coisas da companhia mais do que temos vindo a fazer até agora. Temos de ser mais exigentes e de conseguir criar correntes de públicos mais diversos. Agora estamos na Baixa, num sítio emblemático da cidade, e temos de fazer valer isso tudo. Há que ir passando testemunho, porque muitas vezes as estruturas não se renovam e morrem. Nós temos vindo a fazer isso: por exemplo, temos muitos professores na escola que foram nossos alunos e é preciso que esta ideia de nos renovarmos se mantenha. Portanto, espero muito; esperamos todos muito dos nossos antigos alunos e da maneira como eles se relacionam connosco e com o trabalho que aqui fazemos.

Maria João Leite (entrevista)

Ana Alvim (fotografia)


  
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