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As políticas educativas nacionais deixaram de existir

Professora adjunta da Universidade do Algarve (UAlg), onde é diretora do curso de Educação Social da Escola Superior de Educação e Comunicação, Rosanna Barros é doutorada em Educação pela Universidade do Minho (2009). Com licenciatura em Antropologia Social e Cultural (1998) e mestrado em Sociologia do Desenvolvimento e da Transformação Social (2002), ambos em Coimbra, fez pós-graduações em Direitos Humanos e Democratização (Coimbra, 2000) e em Educação de Adultos e Desenvolvimento Comunitário (Sevilha, 2003). Natural de Caracas (Venezuela), viveu na Madeira e na região do Porto, antes de se fixar no Algarve, onde reside, e também foi diretora do Centro de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências da UAlg. Integra os corpos gerentes da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, é membro das associações portuguesas de Antropologia e de Sociologia e investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e do Instituto Paulo Freire de Portugal. Co-organizadora, com Deise Choti, de «Abrindo Caminhos para uma Educação Transformadora» (Chiado Editora, 2013), publicou também «As Políticas Educativas para o Sector da Educação de Adultos em Portugal» (2013), «Subsídios Breves para o Debate de Princípios e Valores na Formação Política do(a) Educador(a) Social» (2012) e «Genealogia dos Conceitos de Educação de Adultos: da educação permanente à aprendizagem ao longo da vida» (2011) – temas que, naturalmente, deram o mote à conversa com a PÁGINA. Da qual é a mais recente colaboradora permanente.

 

Hoje é recorrente, a diferentes vozes, a ideia de repensar a Educação e reconstruir/reconfigurar a Escola. Concorda com esta necessidade?

Eu diria que repensar a Educação e reconstruir ou reconfigurar a Escola é algo transversal à história dos sistemas nacionais de educação. O que me parece importante é não confundir repensar e reconstruir com destruir e com a intermitência e a indecisão em termos de políticas educativas. Isso sim, seria perigoso, como se constata, por exemplo, na nossa educação de adultos. Pensar e reconstruir é, no fundo, a essência do social – todas as instituições são construções sociais e, portanto, incorporam uma dinâmica cuja característica principal é ser móvel, permeável aos contextos. No entanto, a forma como isto pode configurar novas modalidades da Educação, novas propostas pedagógicas, deve ser sempre no sentido de alargar e melhorar, em lugar de simplesmente destruir. Neste sentido, concordo com essa necessidade, mas é uma necessidade que tem de ser positivamente apropriada, especialmente em termos de agendas políticas.

 

No prefácio ao seu último livro [Abrindo Caminhos para uma Educação Transformadora, Raiz Editora], António Nóvoa considera que hoje, talvez mais do que nunca, precisamos de regressar a Paulo Freire, a uma pedagogia do diálogo e da autonomia.

A ideia desse livro é, precisamente, convocar um pensamento e um contributo que no campo da Educação me parece perene e absolutamente fundamental. Estamos a comemorar 40 anos de democracia em Portugal e, ao longo destas quatro décadas, a dicotomia diálogo/autonomia tem sofrido tensões e contradições importantes, que têm de ser vistas numa perspetiva de longo prazo e com uma sustentabilidade que não têm tido até aqui. O diálogo é essencial no pensamento de Paulo Freire: ninguém é detentor da palavra absoluta, ninguém é detentor de uma configuração absoluta da realidade social – é no diálogo, na relação dialógica, que a sociedade e a essência do ser se realizam. Penso que esse é o sentido principal do diálogo em Paulo Freire e que precisa de ser convocado de novo e alargado a todas as esferas. A Educação tem aqui um papel muito importante, porque precisamos também de aprender a lidar com a palavra dos outros e a tomar o silêncio como constituinte do diálogo, no sentido de saber escutar. A escuta é parte do processo do diálogo, mas nem sempre é evidente que isso seja uma ideia adquirida. Muito pelo contrário... Se tomarmos como exemplo a questão da autonomia, tal como tem vindo a ser considerada nas políticas educativas, percebe-se com facilidade que a autonomia concedida às escolas e às universidades tem tido características diferentes ao longo destas quatro décadas, mas que também tem tido uma constante na maior parte desta trajetória – é uma autonomia muito celebrada ao nível da retórica política, muito celebrada ao nível de alguns documentos políticos e de alguns preâmbulos de legislação, mas muito pouco efetivada.

 

É uma “autonomia mitigada”...

Uma autonomia que não concede efetiva delegação de poder é, de facto, uma autonomia fictícia. E nesse sentido, a conjugação entre autonomia e diálogo parece-me absolutamente pertinente e oportuna, quando se comemoram 40 anos de democracia. O propósito do livro é, precisamente, lembrar que a Educação é transformadora. E os autores que contribuíram com ensaios partilham dessa perspetiva. Portanto, julgo que o sentido das palavras do professor António Nóvoa é lembrar que os pressupostos desta educação transformadora constituem uma herança que não nos podemos dar ao luxo de ignorar nos dias que correm.

 

E como se explica o “apagamento” das pedagogias freireanas durante tanto tempo?

Eu penso que os pressupostos político-pedagógicos de Paulo Freire – como prefiro dizer – não têm sido completamente esquecidos em contexto educacional, sobretudo em contextos não formais, onde há lugar para modos de fazer educação mais desestruturados no sentido da formalidade. E se pensarmos no âmbito da educação social e da educação de adultos, é possível mapear casos interessantes em que esses pressupostos – ou esses reflexos de um paradigma próximo do que é a essência do pensamento de Paulo Freire – estão presentes. Por exemplo, na última formação promovida pela Agência Nacional para a Qualificação em articulação com as universidades (2010), foi estabelecido um plano de formação com diversos módulos inter-relacionados, abrangendo várias necessidades sentidas pelas equipas pedagógicas, que passou por uma metateoria baseada em pressupostos freireanos: relação pedagógica horizontal, importância da dialogicidade, não neutralidade da prática educacional e desempenho docente, foram questões de reflexão transmodular.

 

Paulo Freire dizia que a educação sozinha não transforma a sociedade, mas que sem a educação a sociedade não muda. É disto que se trata quando fala de “educação transformadora”?

Eu penso que a expressão pretende lembrar que tudo o que nos rodeia é um constructo social, que pode ser construído de uma forma ou de outra. Então, o essencial da ideia de educação transformadora, na minha leitura, é que é possível transformarmos os nossos contextos de vida. No entanto, quando se pensa no papel da Educação nesta ambição, não se trata de afirmar que ela pode efetivamente fazer tudo, ou que cabe à Educação alterar a macro-estrutura da sociedade. De modo algum. A Educação é uma esfera da vida em sociedade e, como tal, obedece às mesmas lógicas de relação entre estrutura, ação e agência social em que as outras esferas estão inscritas. Mas em qualquer contexto educacional que usufrua de autonomia e onde o diálogo esteja presente, é possível fazer um trabalho de conscientização. E este contexto de conscientização é que, no fundo, explica e sustenta a ideia da educação transformadora: da capacidade de ler o mundo, de o entender e de perceber a ação possível no mundo. Penso que aqui reside o principal da ideia de transformação – não é indiferente o modo como percecionamos que a nossa ação pode ser transformadora do nosso quotidiano e daquilo que nos rodeia. Fazendo uma leitura um pouco mais abrangente, é importante perceber que os atores da educação conscientizados da sua capacidade, da possibilidade de interferir e de usar as esferas de ação e as margens de liberdade dos seus contextos, podem dar um contributo significativo para criar uma sociedade mais reivindicativa, mais consciente, mais capaz de usar publicamente a palavra e dizer qual é o sentido que deseja para os contextos em que se envolve.

 

Ainda Paulo Freire: todo o ato educativo é um ato político; a Educação, como a política, não é neutra. Como observadora/investigadora, parece-lhe que os discursos da Educação têm presente essa dimensão política?

Bom... Eu estou envolvida em vários projetos de investigação, quer a nível nacional, quer internacional, e aquilo que os dados empíricos e as investigações vão permitindo perceber é que, neste momento, a dimensão política do ato de educar não é a prioridade. A Educação tem vindo a sofrer profundas transformações internas, inclusive em termos conceptuais, e a lógica com que se pensa hoje nos circuitos hegemónicos da decisão política sobre Educação é sobretudo técnica.

 

Educação de adultos está catastrófica

 

Por falar em termos conceptuais: uma das suas áreas de interesse é a educação de adultos. Ou deveria dizer educação permanente? Ou aprendizagem ao longo da vida? É tudo a mesma coisa ou são áreas conceptuais distintas?

Aquilo que a investigação tem claramente mostrado é que a linguagem conceptual é muito importante. Não podemos ignorar que uma configuração de pensamento é traduzida por conceitos, e os paradigmas que estão presentes nas lógicas de produção de políticas educativas, desde o final do século vinte até ao momento, são efetivamente distintos. De facto, educação permanente e aprendizagem ao longo da vida não são a mesma coisa. Há uma envolvência, uma conceptualização e uns pressupostos de caráter político associados à educação permanente que não são os mesmos da aprendizagem ao longo da vida. Um dos meus livros, sobre a genealogia dos conceitos da educação de adultos, pretende dar conta disso, dos fundamentos político-pedagógicos da prática educacional e da importância de perceber os conceitos e saber aplicá-los em contexto educacional.

 

O que distingue, então, a educação permanente da aprendizagem ao longo da vida?

Há uma matriz e uma lógica associada à ideia de educação permanente, historicamente mais relacionada com as orientações e a importância da UNESCO [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], que significa pensar a Educação, por um lado, como um conceito público, coletivo, que envolve as comunidades, o grupo, e por outro lado, como um conceito que envolve uma ação política. Ou seja, pensar na educação permanente enquanto direito social – e consequentemente, um dever do Estado, nomeadamente ao nível da sua oferta em termos públicos e, portanto, tendencialmente não oneroso. E com margem de autonomia para que as pessoas diretamente envolvidas nas comunidades educativas possam decidir sobre as configurações da Educação a nível local.

 

E a aprendizagem ao longo da vida?

Quando falamos da aprendizagem ao longo da vida, as ideias de base são outras. O papel que atribuímos à Educação é diverso, o papel que atribuímos ao Estado é diverso, e é importante que isto seja tido em conta. Falar de aprendizagem convoca toda uma esfera de sentido e de significado diferente de educação. A dimensão da aprendizagem é individual; se passarmos a atribuir ao indivíduo a responsabilidade sobre a sua educação, estamos a dizer que é o indivíduo que tem o dever de assegurar e garantir o seu percurso educacional, as suas iniciativas de aprendizagem. E também estamos, de certa maneira, a permitir uma lógica de desresponsabilização do Estado quando se pensa na Educação enquanto direito social. Portanto, falar de aprendizagem nestes termos é perigoso, porque mais do que os direitos coletivos e os direitos sociais e públicos, está-se a cair numa lógica privada, de consumo, mais associada aos interesses do mercado. Esta transição tem acontecido desde o último quartel do século XX e, efetivamente, envolve uma ressemantização de conceitos.

 

Como avalia a situação da educação de adultos em Portugal? Para a administração educativa, parece ser uma área sem grande importância...

A situação atual é catastrófica, porque desde há um ano, sensivelmente, que a educação de adultos está suspensa... Levita entre algo que se espera venha a acontecer e algo que ainda não aconteceu. Pensando no que tem sido a realidade, pelo menos desde o 25 de Abril, esta história tem tanto de diversidade interna como de inconstância, e isso é algo que tem jogado em desfavor da educação de adultos, quer da afirmação da sua força, quer de encarar o problema de fundo, que o estudo sobre iliteracia feito em ‘95, coordenado por Ana Benavente, já mostrava – o estado da escolaridade e da educação dos adultos portugueses é significativamente grave e tem de ser encarado com políticas sérias. Se pensarmos neste contexto, verificamos que esta inconstância na agenda política tem tido consequências gravosas para as pessoas, sobretudo os adultos, que deveriam ser os principais beneficiários.

 

Desocultar as dinâmicas da sociedade é complexo e requer tempo

 

Outra das suas áreas de interesse, a Educação Social tem vindo a ganhar expressão académica e profissional. O que a distingue do assistencialismo? Que fronteiras demarcam os dois campos?

A Educação Social e a assistência social não são campos completamente separados. Existe fronteira, mas também pontos de conexão. Eu defendo que em contextos de depressão e de exclusão social, a prioridade comum a qualquer trabalhador do social – todas as pessoas que atuam em grupos e comunidades em condição desfavorável – é prestar assistência quando são detetadas e diagnosticadas situações que precisam efetivamente de ser assistidas. Quando o patamar é de sobrevivência e gravoso do ponto de vista de pobreza, de indigência, não podemos fazer outra coisa que não seja, em primeiro lugar, intervir no sentido da ajuda, da solidariedade. Isto, sendo uma característica dos trabalhadores sociais, deve ser uma característica de qualquer cidadão e do nosso modo de viver em sociedade. Dito isto, nada obsta a que o educador social, neste enquadramento e num primeiro momento, faça assistência. Mas o seu ethos, aquilo que caracteriza o seu modo de atuar, não é este; a preocupação de fundo não é apenas resolver os sintomas, mas estudar, diagnosticar e compreender os problemas. A partir desse momento, a sua lógica de atuação passa por tentar interferir nas causas dos problemas, e é aqui que reside a importância da sua intervenção. Intervir em comunidades deprimidas do ponto de vista da sua condição social passa sempre por tentar perceber, com elas, como se pode interferir no que está a causar aquela condição. É a partir daqui que a verdadeira missão da Educação Social se manifesta e operacionaliza. É através da prática educativa que se pretende deixar algumas ferramentas para que as pessoas, em contexto, possam ser mais autodeterminadas e mais conscientes das causas dos seus problemas. Este trabalho de desocultar o que são as dinâmicas da sociedade é complexo e requer um tempo de intervenção que se pode considerar longo e que se vai fazendo ao ritmo do contexto, das pessoas, das comunidades. E este é um aspeto que me parece absolutamente importante – a fronteira que demarca o assistencialismo stricto sensu da lógica de intervenção para a transformação passa por aqui.

 

Numa conjuntura hegemonicamente associada ao primado da técnica, da produção e do lucro, qual deve ser a intervenção do educador social?

Uma das disciplinas que leciono no curso de Educação Social é Políticas Socioeducativas, onde tento refletir com os meus alunos precisamente sobre qual deve ser a intervenção de um educador social. Porque não me parece que haja ideias pré-determinadas, e no sentido de respeitar a autonomia e a conscientização de cada aluno, o que me parece interessante é refletir sobre como diversos modos de agir e de ser educador social se relacionam com vários tipos de resultados, numa tensão entre fazer uma educação social que promova a adaptação aos contextos que referiu ou agir no sentido de transformar aquilo que domina, que é hegemónico. Portanto, o essencial é que os educadores sejam pessoas conscientizadas e que saibam ler o mundo; só depois poderão decidir que tipo de papel querem ter. Se me perguntar não tão diretamente sobre qual deve ser a intervenção do educador social, mas qual tem sido o meu modo de sentir a intervenção pela prática da educação, dir-lhe-ei de forma muito clara que tenho um sentido crítico e que me indigno com a evolução que Portugal tem tido nestas quatro décadas de regime democrático, porque me parece que ao fim de 40 anos estamos a involuir do ponto de vista do ganho de democracia, de autonomia e da possibilidade de termos uma relação de poder entre Estado, mercado e sociedade que se revele favorável à sociedade. Estamos a passar um momento que me causa profunda indignação e, como tal, aquilo que eu sinto, enquanto educadora e intelectual, é que este estado de coisas tem de ser combatido.

 

O que distingue e aproxima o educador social do animador social?

De facto, há muito a relacionar estes dois domínios. As ferramentas de trabalho – de tipo informal, de tipo não formal, de tipo flexível – que o animador tem ao seu dispor beneficiam em grande medida o trabalho educacional, seja do educador social ou de um educador em sentido lato, porque toda a lógica de intervenção pela animação socioeducativa, ou sociocultural, permite convocar técnicas de educação comunitária que vão mais ao encontro das especificidades de cada grupo e de cada elemento de um grupo, rentabilizando dinâmicas e interesses de caráter mais cultural, ou artístico, ou lúdico, mas sempre numa perspetiva educacional. Penso que é este o ponto de encontro principal entre as duas áreas. Depois, o sentido da prática varia um pouco. Na minha leitura da Educação Social, a ambição é mais vasta, passa pelos sentidos mais politizados de transformação, de intervenção, de diagnosticar em cada contexto as situações específicas, para poder intervir de modo adequado e prolongado. Portanto, apesar de haver interesses comuns e muitas afinidades, há um modo de atuar que caracteriza cada um dos profissionais. Mas a Educação Social é uma área interdisciplinar e, naturalmente, aqui reflete-se também uma interdisciplinaridade que cria sinergias entre as lógicas de atuação do educador social e do animador social.

 

A Educação Social pode/deve resolver ou atenuar tensões e conflitos sociais?

Resolver e atenuar não são léxicos muito comuns no âmbito da educação em geral. Penso que esta lógica de olhar a Educação como algo que “resolve” interesses do imediato, essa sim, tal como começámos esta conversa, tem de ser repensada e reconstruída, porque não leva a nada de significativo. Temos inúmeros exemplos na história da Educação, em qualquer um dos seus campos, de que quando se toma a Educação como panaceia, normalmente não se produzem benefícios reais e não se resolve efetivamente nada. Porque o papel e a missão da Educação não é esse! O sentido do trabalho educativo tem de estar situado noutra esfera e de ser conceptualizado noutra ordem de ideias, tem de obedecer a uma matriz de pensamento que não pode ser do imediato e do conjuntural. A Educação é, por definição, algo que se relaciona com o longo prazo, e só por isso não resolve problemas do imediato.

 

Predomina uma agenda política redutora

 

Então, na sua opinião, qual deve ser o papel da Educação?

A Educação tem um potencial de interferência muito interessante e muito importante, como temos visto ao longo desta conversa. Penso que é talvez mais nesse sentido que pode ser visto o papel da Educação – contribuir para despertar consciências. A Educação pode contribuir para pensar em soluções relacionadas com modos de vida, que fazem sentido em contexto e que são identificadas e definidas, em primeiro lugar, pelas pessoas que os vivenciam. Aí, a Educação pode contribuir de um modo dialógico, pôr a palavra a circular no sentido de ponderar de modo aberto as possibilidades de atuação das pessoas em determinado contexto e em determinado momento: se para chegarem a um determinado momento, precisam de ler mais sobre um determinado tema, de melhorar o seu desempenho ao nível do domínio de uma área de conhecimento, ou ao nível do domínio técnico… Tudo isto são formas de equacionar a forma como a Educação pode ir contribuindo para alterar os contextos de vida, e a consciência sobre os contextos de cada grupo, de cada comunidade. Mas a Educação não resolve nada – é um erro pensar na educação como panaceia!

 

E qual pode ser o contributo da Escola?

A minha leitura passa sempre pela complementaridade. Não se ganha nada em considerar que o formal, o não formal e o informal são setores separados e estanques. Na realidade, eles são modalidades distintas de fazer a mesma coisa, que é o trabalho educacional. E se temos modalidades que obedecem a racionais distintos, que utilizam ferramentas, metodologias de trabalho e técnicas pedagógicas distintas, naturalmente, só se vai ganhar com a complementaridade que cada uma dessas dimensões aporta para o trabalho educativo em última estância. Neste sentido, não só a Escola pode contribuir para melhorar as práticas da educação não escolar, como esta pode contribuir para melhorar as práticas da Escola.

 

Voltando às tensões e aos conflitos... A mediação deve ter uma função normalizadora, reguladora, ou emancipadora?

O que me parece é que a mediação é importante porque a lógica de mediar pode contribuir para o que acabei de dizer, para um entendimento de complementaridade mais efetivo. Neste sentido, a mediação – escolar, mas também noutros contextos – pode ser usada como mecanismo de interrelacionar, importante para desobstruir e criar maior fluidez, especialmente em contextos e organizações onde a hierarquização e a burocratização impedem os fluxos, o diálogo e a rentabilização de intervenções destinadas ao mesmo fim.

 

Para terminar: as políticas educativas estão a ser mais determinadas pela “crise” ou condicionadas pelas prioridades da economia e da finança e por diretivas supranacionais?

As políticas educativas nacionais deixaram de existir. Neste momento, não se podem ler contextos nacionais em agendas políticas da Educação sem relacionar várias escalas de interferência. Os conceitos de globalização e europeização são precisamente duas tentativas de convocar a complexidade que se gerou em torno da construção de políticas em geral e de políticas educacionais em concreto. Neste sentido, entender as políticas num determinado contexto nacional passa por perceber como a matriz de governação supranacional está a funcionar; perceber, por exemplo no caso europeu, quais são os métodos concretos de governação que foram sendo construídos e que, a partir da Agenda de Lisboa (2001), operacionalizam e condicionam o modo como se produz a decisão política. O que me parece é que esta nova complexidade do fenómeno político em educação precisa de ser melhor estudada, mais debatida, e que precisamos de contextualizar isto, não tanto na crise como é lida na comunicação social, mas num contexto de apreciação crítica do que tem vindo a ser a desconstrução do Estado-providência e a reconfiguração do próprio Estado em constelações de poder muito distintas, nalguns contextos e áreas de intervenção, das que predominavam no âmbito do Estado-providência e dos Estados modernos nacionais.

 

Nessa perspetiva, quais lhe parecem, em linhas gerais, as possibilidades e os limites do sistema educativo “nacional”?

O espírito de possibilidade aberto há 40 anos não é o que temos hoje, 25 de abril de 2014. De algum modo, vive-se uma inflexão e o que eu sinto é que a perceção das possibilidades está em segundo plano. Predomina uma agenda política redutora, que tem tido a preocupação de desconstruir aquilo que, apesar de tudo, tem dado mostras de trazer dinâmica e abertura de sentidos e de possibilidades interessantes. Vivemos com um autoritarismo de direita, de tipo neoliberal, que não deixa muita margem para sermos esperançosos. No entanto, se tivermos consciência de que a História não é determinada e de que as conjunturas, apesar de condicionarem, podem ser alteradas, perceberemos que o estado da nossa democracia não é inevitável nem irremediável. Ao fim de 40 anos, vivermos num contexto de profundo e inaceitável défice democrático – por exemplo, ao nível de políticas educativas – não se pode aceitar de ânimo leve. Compete-nos a todos fazer algo, e nesse sentido, criticar o que existe é importante, mas apontar possibilidades diferentes também é. Espero que a investigação e a intervenção de caráter educacional tenham esse sentido e tragam esse deslocamento de horizonte às pessoas. E que as gerações que estão agora a ouvir falar do 25 de Abril possam percecionar uma possibilidade mais ampla de viverem como sujeitos verdadeiramente sociais e não como recursos de qualquer lógica produtiva que vigore hoje ou possa vir a vigorar.

 

 

Educadores sociais. “Paulo Freire fala do educador ingénuo, que não tem verdadeira consciência da inscrição complexa dos fenómenos sociais em que atua, nem da importância do ato de educar. Fala também do educador crítico, que toma o facto de a educação não ser neutra para ponderar como agir e em prol de quê, e nesse sentido fazer uma leitura crítica do mundo – a este, Paulo Freire atribui um engajamento político e uma preocupação em promover transformação social com as pessoas e nas escalas tidas como possíveis em cada momento: não se trata de querer mudar o mundo, mas de perceber que pequenas alterações se podem ir fazendo e que, de facto, deixam um sentido crítico nos educandos. E fala ainda do educador astuto, que lê criticamente o mundo e está conscientizado para a politicidade da sua prática, mas não quer engajar-se, não quer envolver-se na transformação social; apesar de saber que a sua intervenção não é neutra e pode interferir nos contextos em que atua, opta por não o fazer, e em algumas circunstâncias pode, inclusive, optar por fazer aquilo que lhe convém mais a ele próprio.”

 

Educação de adultos. “Desde o 25 de Abril, penso que apenas se pode falar de uma altura particularmente feliz, que eu gosto de chamar os anos dourados da história da educação de adultos, que é o período compreendido entre 1974 e 1976. (...) O que se adivinha hoje é uma perda significativa da sua importância na agenda política, no sentido em que ela cai no contexto das prioridades para a qualificação e para o ensino profissional. A educação de adultos pode passar por aqui, mas tem de ser muito mais do que isto, e não se adivinha que neste momento seja este o entendimento. (...) Penso que se deveria assistir a um debate público mais sistematizado e mais politicamente engajado do que nunca. Porque, efetivamente, estamos a ver ruir todo um edifício que foi sendo construído ao longo de anos.”

António Baldaia (entrevista)

Sufya Cacau (fotografia)


  
Ficha do Artigo

 
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