Página  >  Entrevistas  >  Muitas vezes faltam meios necessários para fazer investigação em Portugal

Muitas vezes faltam meios necessários para fazer investigação em Portugal

Começou por estar ligada às Artes, mas mudou para Ciências, quase em cima da hora. Primeiro, Física, depois Engenharia da Energia e do Ambiente. Atualmente é bolseira de investigação e trabalha no Instituto Dom Luiz, na Universidade de Lisboa. Ana Filipa Bastos, 26 anos, é um dos investigadores a quem foi atribuído o Prémio Gulbenkian de Ciência, na área Ciências da Terra e do Espaço, pelo trabalho “Influência da Variabilidade Climática na Dinâmica da Vegetação e no Ciclo de Carbono na Região Euro-Asiática”, uma parte do plano de trabalho para doutoramento. Agora vai seis meses para a Universidade de Montana (EUA), para realizar uma parte do projeto que não consegue fazer em Portugal. Apesar de reconhecer que é difícil ser investigador dentro de portas, não pensa emigrar. E quanto ao futuro, não gosta de fazer projeções.

 

Qual a importância de ganhar um Prémio Gulbenkian de Ciência?

A Gulbenkian escolhe trabalhos em quatro áreas diferentes, a desenvolver posteriormente, o que acaba por ter mais importância do que se fosse por trabalho já realizado, porque permite suportar a investigação. É importante no sentido de apoiar o desenvolvimento de um plano de trabalho.

 

O que pode mudar a partir daqui?

O plano de trabalho com que concorri é uma parte do que já estava a planear desenvolver no doutoramento. O que acontece é que facilita muito, por exemplo, para ir a conferências ou fazer algumas viagens necessárias. Acaba por facilitar um trabalho de três anos que poderia ser mais complicado. O prémio é financeiro e a ideia é suportar o projeto por um ano. É que, muitas vezes, o trabalho de investigação peca por não haver os meios necessários para ser realizado.

 

É difícil fazer investigação em Portugal?

É terrível. Primeiro, porque muitas vezes não há os meios necessários – por acaso, tenho alguma sorte no Instituto Dom Luiz, mas em termos gerais, normalmente, faltam meios que poderiam estar disponíveis e não estão. Depois, há toda a questão de se ser bolseiro de investigação, não só de doutoramento. Os investigadores vivem à base de bolsas, têm um contrato de bolsa, descontam para o Seguro Social Voluntário, que não dá direito a subsídio de desemprego (a praticamente direitos nenhuns), não descontam para o IRS... Quando a FCT [Fundação para a Ciência e a Tecnologia] não tem dinheiro, podem ficar meses à espera de receber a bolsa, como aconteceu este ano. Portanto, ser investigador em Portugal é assim: somos tratados quase como privilegiados, porque nos pagam para estudar, mas na verdade não temos quase direitos nenhuns, porque temos uma bolsa. As pessoas que querem assentar para fazer investigação não têm grandes incentivos, nem grande estabilidade para o fazer.

 

No final da bolsa, o que acontece?

Depende. No meu caso, a bolsa é de três anos, mas é renovável todos os anos. Portanto, todos os anos tenho de fazer um relatório, e pode ser cancelada. Mas à partida não, se tiver feito o trabalho. No fim de um doutoramento, a perspetiva é, provavelmente, concorrer a uma bolsa de pós-doutoramento, e no fim dessa, que são mais três anos, talvez concorrer a outra por mais três anos… E isto pode continuar por muito tempo.

 

Há sempre uma incerteza...

Sim, porque há um concurso em que as pessoas têm de fazer um plano de trabalho que pode ou não ser escolhido e financiado. Por outro lado, temos institutos que vivem muito à base de bolseiros de investigação. Um instituto, ou um grupo, que pretenda desenvolver um projeto científico não pode planear de três em três anos, tem de planear a muitos anos, e precisa de saber quem é que vai ter e durante quanto tempo. Portanto, viver à base de bolseiros de um, dois, três anos, não é muito sustentável para realmente construir um sistema científico sólido e com pernas para poder fazer coisas.

 

Faz parte da Comissão de Bolseiros da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Tem havido muitos problemas no pagamento das bolsas?

Tem. Este ano, uma grande parte das novas bolsas de doutoramento foi paga com seis meses de atraso, algumas com sete. Estamos a falar de pessoas que vivem disto, que precisam de comer, de ter disponibilidade mental para trabalhar e não para se preocuparem onde é que vão dormir e o que vão comer. Além desses, há atrasos sistemáticos no reembolso do Seguro Social Voluntário, atrasos também de muitos meses. Mas há mais: por exemplo, como houve atraso na transferência de verbas da FCT para a fundação da Faculdade de Ciências, os contratos para os bolseiros de investigação – não os que estão afetos à FCT, mas os projetos que são financiados via faculdade – passaram a ser concedidos de três em três meses. Estamos a falar de desenvolver projetos de investigação, mas sem se saber se dali a três ou seis meses vamos ter aquela pessoa para ir alimentar as moscas ou para ir fazer trabalho de campo, o que é impensável.

 

Em que consiste o projeto em que está a trabalhar?

Estou a trabalhar no meu projeto de doutoramento, que consiste em estudar a influência do clima na dinâmica da vegetação, e depois perceber como é que isso afeta o balanço de carbono na atmosfera, o ciclo do carbono. Os ecossistemas a nível global removem cerca de metade das nossas emissões anuais de dióxido de carbono e estima-se que, dessa metade, metade é da responsabilidade dos ecossistemas terrestres e a outra metade é dos ecossistemas marinhos. Por sua vez, o clima também afeta o comportamento da vegetação. Sabemos que quando há uma seca, as árvores morrem, as colheitas não produzem tanto, etc. Portanto, o que acontece é que o clima afeta a vegetação, mas depois a vegetação influencia o clima através do ciclo do carbono e há uma espécie de mecanismos de feedback, que são um bocadinho complicados de perceber. Por isso, é preciso estudar estas coisas por partes.

 

Como analisa a questão das alterações climáticas?

Muitas vezes há a ideia de que o clima pode estar a mudar, mas a culpa não é nossa. As pessoas veem isto quase como duas opiniões que se contradizem, mas que são tão válidas como eu dizer que gosto de amarelo e alguém dizer que gosta de vermelho e depois discutimos se o vermelho é melhor do que o amarelo. Na verdade não é assim. Há muita gente a estudar isto desde há muitos anos. No século XIX, já havia um químico sueco, o [Svante] Arrhenius, que percebeu que o dióxido de carbono absorvia radiação e voltava a reemitir. Na altura, dizia que a quantidade de dióxido de carbono que a indústria emitia para a atmosfera poderia ter um impacto na temperatura média da Terra. Entretanto passou quase um século e houve mais algumas pessoas a desenvolver trabalho, mas sem grande projeção. Em meados da década de 50, começou a ser registada diariamente a concentração de dióxido de carbono na atmosfera. No fim da década de 70 e início de 80, percebeu- se que a concentração de dióxido de carbono estava a subir sistematicamente e começou-se a perguntar o que é que isso ia provocar na dinâmica do clima e da Terra e a tentar perceber de que forma é que o aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera ia afetar o balanço de energia da Terra. Quando os estudos começaram a apontar que nós, seres humanos, estávamos a ter um impacto na concentração de dióxido de carbono, emitido por causa do petróleo, do carvão e dos combustíveis fósseis, e que isso podia provocar um aumento da temperatura da Terra (o que ia ter impactos ao nível, não só da temperatura, mas da precipitação, do nível médio do mar, dos glaciares, da própria dinâmica de ventos, etc.), houve quem não gostasse muito e essa ideia começou a ser contestada. Isso é saudável em Ciência, haver contestação de teorias ou de ideias novas. Faz parte. O que acontece é que desde a década de 80 há centenas de pessoas a estudar isto, desde quais os impactos do aumento da temperatura em ecossistemas, nos oceanos, etc., até tentar perceber qual é a nossa contribuição para o aquecimento global. Agora, em 2012, já há um consenso muito alargado da esmagadora maioria dos cientistas da Terra em que realmente são as nossas emissões de gases com efeito estufa que estão a provocar o aumento da temperatura que se tem observado.

 

E isso tem uma influência direta na nossa vida...

Acho que agora as pessoas já começam a preocupar-se mais, mas durante muito tempo não se preocuparam porque pensavam “qual é o problema da temperatura média subir um ou dois graus quando de dia para dia a temperatura pode variar cinco ou seis e nós vivemos com isso?” As pessoas não percebiam qual era exatamente o problema, e o problema é que esse pequeno aumento, como o clima tem os tais mecanismos de feedback, acaba por provocar reações ou consequências em cadeia que nos afetam diretamente. Por exemplo, uma seca (e na Península Ibérica as secas estão a tornar-se mais frequentes), como vimos este ano, tem um impacto brutal para os agricultores, para as pessoas que vivem da agricultura, para os consumidores, que pagam mais pelos alimentos, etc. Acho que só muito recentemente é que as pessoas começaram a perceber que isto vai mexer com as próprias vidas e daí começarem a preocupar-se um bocadinho mais.

 

Existe mais consciência ambiental?

Não digo que exista uma grande consciência ambiental generalizada. Mas, se calhar, a crise, que tem todos os seus defeitos, acaba por ajudar nisto, no sentido em que as pessoas largam o carro, por exemplo, porque a gasolina é cara, e passam a andar a pé. Lembro-me que há dez anos quase ninguém fazia reciclagem e agora a reciclagem é uma coisa generalizada. No Porto, há dez anos, ninguém andava de bicicleta e agora vejo dezenas de pessoas a pedalar... Quer dizer, se é só por consciência ambiental ou não, não sei, mas parece-me que, apesar de tudo, melhorou alguma coisa.

 

E nas instituições, há essa preocupação ambiental?

Acho que há um grande caminho a percorrer nesse aspeto. Sobretudo nas universidades. Há luzes que ficam acesas dia e noite, mesmo que não esteja ninguém, e os computadores ficam sempre ligados. Há alguns exemplos maus… Por acaso, na Faculdade de Ciências de Lisboa temos um exemplo giro: há três ou quatro anos, um grupo de estudantes propôs fazer uma horta urbana num jardim da faculdade. Um relvado que não tinha utilidade nenhuma transformou-se numa horta onde há couves, tomates, etc. Se pensarmos nisto como um pequeno passo... Não é uma horta descuidada, é uma horta bonita com preocupações estéticas: tem um lago, tem caminhos, tem trepadeiras, é uma coisa que pode servir como jardim, mas que tem uma utilidade prática. E poupa combustível, porque não se vai ao supermercado buscar a comida de carro ou de camioneta. Tem-se tudo ali produzido. É um exemplo, mas acho que é das coisas fáceis de fazer e que são úteis.

 

O que tem de especial a área do clima?

Bem, mudei de Física para Engenharia da Energia e do Ambiente porque tinha começado a ler sobre essas questões. Queria ajudar a desenvolver tecnologia de energias renováveis para ajudar a reduzir o consumo de combustíveis fósseis. Neste curso tive várias cadeiras que eram de Física, mas aplicada à Terra (por exemplo, Meteorologia, Climatologia, Mecânica de Fluidos), e comecei a perceber que, na verdade, o que eu gostava era dessa parte da Física. Além do interesse intelectual, também há essa preocupação social, porque acho que realmente é um problema de que não tenho a certeza se vamos conseguir sair airosamente. Comecei a perceber que isto ia mexer com a vida das pessoas e a mexer sobretudo com a vida das que já são mais prejudicadas, ou porque são mais pobres, ou porque dependem da agricultura…

 

Vai agora para a Universidade de Montana?

Sim, vou fazer investigação durante seis meses. Há uma parte do meu trabalho que eu não conseguiria fazer cá.

 

Depois dessa experiência, a ideia é voltar?

Voltar e acabar o doutoramento. Comecei em janeiro, portanto ainda tenho muito tempo pela frente.

 

Já pensou alguma vez emigrar?

Não, porque sou teimosa. Na verdade seria muito mais fácil se quisesse emigrar, isto é, provavelmente teria uma vida melhor. Tenho vários colegas que estão a fazer o doutoramento na Suíça ou em Inglaterra, por exemplo, e as condições não só físicas, mas também o reconhecimento do trabalho de investigação é muito diferente daquele que há em Portugal. Mas a verdade é que estou a trabalhar num bom centro de investigação, com um grupo muito bom, e acho que se formos todos embora, não há ninguém para tentar fazer com que o sistema científico melhore e se consolide. Prefiro tentar dar esse contributo e, se calhar, ter mais dificuldades e ter de estar na Comissão de Bolseiros, etc., do que ir para fora. É uma opção minha. Acho que não me sentia confortável. Claro que se me oferecessem qualquer coisa fantástica tinha de pensar duas vezes, mas não tenho aquele desejo de emigrar por emigrar. Reconheço que tenho sorte porque estou num grupo de investigação muito bom, que tem imensas publicações, e tenho orientadores que são muito competentes. Não sinto que esteja propriamente à margem do sistema científico internacional.

 

A secretária de Estado da Ciência disse em julho que não havia fuga de investigadores qualificados do país. Acha que existe fuga de “cérebros”?

Acho que sim. Claro que não tenho as estatísticas, mas sei o que vejo à minha volta, de uma grande parte dos meus colegas que estão a fazer investigação. E até mesmo de pessoas que fizeram o mestrado e que estão a trabalhar em empresas de trabalho altamente qualificado. Há muita gente que vai para fora e não é só no sistema científico. Eu acho que existe e que se deve, sobretudo, há falta de apoio e de reconhecimento do trabalho que os bolseiros de investigação e os investigadores fazem e, por outro lado, ao atraso que há no mercado de trabalho português.

 

Como é que imagina o seu futuro?

Tento não fazer grandes projeções, porque acho que assim temos surpresas melhores. Gostava de continuar ligada à investigação, porque não me vejo a fazer outra coisa que não seja investigar. Gosto mesmo de estudar e de aprender e gostava de continuar a fazer investigação. Além disso, nestes dois anos dei algumas aulas na faculdade e adorei, pelo que uma das coisas que também gostava de fazer era dar aulas. Mas prefiro não fazer grandes projeções.

 

Estudou na Escola Secundária Soares dos Reis, no Porto. Como se passa das Artes para as Ciências?

Durante dois anos estive convencida de que ia para Escultura, que era o que queria fazer e nem pensava noutra coisa. Só que, na altura, podíamos fazer a formação em Artes, mas ter Matemática, Física e Química. E tive dois professores de Matemática ótimos e uma professora de Físico-Química e Física excelente. Quando, no 12º ano, chegou a altura de escolhermos e eu disse que ia para Escultura, disseram-me que era uma pena, que devia ir para Ciências, porque tinha imenso jeito para a Matemática e para a Física. Na verdade, foi assim uma decisão um pouco repentina: ok, vou para Física e depois vê-se. Correu bem.

 

Continua ligada às Artes?

Não, rigorosamente nada. Na altura, ainda achei que era mais fácil tirar um curso de Física e no tempo livre fazer qualquer coisa ligada às Artes do que o contrário. Só que não tinha tempo, comecei a fazer outras coisas do meu interesse e desliguei-me um bocadinho. Continuo a interessar- me pela Arte em si, mas fazer alguma coisa… Não, não pego num lápis há anos.

Maria João Leite e Sílvia Enes (entrevista)

Ana Alvim (fotografia)


  
Ficha do Artigo

 
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo