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A escola prepara para a vida sendo vida

David Rodrigues é presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial (ANDEE). Iniciou há cerca de 40 anos uma cruzada em defesa de uma educação de qualidade, inclusiva e equitativa. É professor aposentado da Faculdade de Motricidade Humana – Universidade Técnica de Lisboa, e autor de diversos livros e artigos sobre o tema, sendo a sua obra mais recente a «Equidade e Educação Inclusiva», da coleção A Página, lançada pela ProfEdições. Este volume reúne uma série de textos que levantam problemas e debatem formas de tornar a Escola mais equitativa e inclusiva. O autor não procura consensos, mas espera que o livro seja útil na reflexão, na análise e na mudança.
Nesta entrevista, David Rodrigues deixa críticas à Escola desigual, ao sucesso parcial e à autoridade autoritária; frisa que é preciso acabar com a desigualdade, pois só assim “vamos perceber se somos ou não diferentes” e que é preciso ensinar todos os alunos, de modo a que todos sejam “acolhidos e ensinados”, sendo este o primeiro passo para se chegar a uma Escola inclusiva.

 

Em «Equidade e Educação Inclusiva» refere que tem uma ambição: que o livro seja útil, que seja um elemento de reflexão, de discussão e de análise, para a mudança de práticas e de opiniões. Há muito por mudar?

Muito já mudou, mas continua a haver muito por mudar. Penso que uma das estratégias mais importantes e mais determinantes para a mudança e para a melhoria de práticas nas escolas pode ser organizada à volta do que chamamos a formação em serviço. Precisamos que circulem ideias novas e, sobretudo, que a formação apoie os professores nas suas práticas. Muitas vezes a formação em serviço revela-se pouco útil, porque vive ainda muito de modelos da formação inicial. Temos de pensar que a formação em serviço é epistemologicamente diferente da inicial, que tem de se organizar com base nos problemas que as pessoas enfrentam e que se possa constituir como um apoio à mudança. Estamos a desenvolver isto na ANDEE, para que a formação em serviço se torne, na verdade, uma supervisão da prática, isto é, um momento em que os professores tenham oportunidade de refletir sobre aquilo que fizeram, de encontrar caminhos eventualmente novos para resolver os problemas e que possam avaliar também conjuntamente as suas práticas. Portanto, ser útil é isso.
Espero que este livro seja um elemento que possa ser usado na formação em serviço e que sobretudo desassossegue algumas certezas que alguns professores ainda pensam que têm. Este desassossego é em relação a práticas que sejam mais cooperativas, mais inclusivas, mais diferenciadas. Espero que estes textos possam ajudar as pessoas a desassossegarem-se em direção a estas práticas.

No prefácio, António Nóvoa aponta três críticas que atravessam o livro: à escola desigual, ao sucesso parcial e à autoridade autoritária. Quer explorar um pouco estas ideias?

A primeira questão é muito interessante: a diferença que existe entre sermos diferentes e sermos desiguais. Só quando conseguirmos acabar com a desigualdade é que vamos perceber se somos ou não diferentes, porque muitas das diferenças que hoje atribuímos às pessoas são causadas, não pelas suas características individuais, mas pelas características que as pessoas construíram pelo facto de viverem numa sociedade desigual.
Portanto, só quando conseguirmos ultrapassar a questão da desigualdade é que vamos perceber a diferença. E na Escola continua a haver esta confusão. Claro que é bom sermos diferentes, mas é péssimo sermos desiguais e a desigualdade social é um flagelo injusto.
A segunda questão é o sucesso parcial.
Sem dúvida, o sucesso parcial foi eleito como um mal menor, porque já que não se pode dar sucesso a todos então vamos dar sucesso a alguns. Claro que esta é uma prática que foi naturalizada pela história da Escola. A Escola habituou-se a que algumas pessoas tenham sucesso e a legitimar este sucesso. Portanto, a questão é: sucesso parcial? Não. Temos que pensar numa Escola que proporcione sucesso para toda a gente. Para isso é preciso que a escola mude: não se atinge sucesso para todos com uma organização tradicional, com este tipo de constrangimentos, com um ethos conservador. Como muito bem diz o professor António Nóvoa, só percebemos quão ridículo é falar em sucesso parcial se compararmos a Educação com outras áreas sociais e falarmos em “Justiça parcial” ou em “Saúde parcial”. Realmente isso fica muito claro.
Finalmente, a questão da autoridade.
Hoje em dia clama-se muito pela falta de autoridade que a Escola tem e muitas vezes procuramos resolver essa questão a partir de uma perspetiva aditiva, isto é, procuramos que a autoridade se resolva a partir do reforço dos meios de repressão à disposição do professor. E a questão é que a autoridade que o professor tem, e que a Escola tem, é uma autoridade que tem de ser sobretudo percebida, reconhecida.
Reduzir a autoridade à possibilidade de infligir castigos é muito pobre: é essencial incentivar pelo exemplo, pelo diálogo e pelo contexto. E quando pensamos numa autoridade autoritária estamos de certa maneira a procurar apagar o fogo com gasolina, quer dizer, a encorajar um ambiente de tensão, estamos a aumentar a distância com os alunos, quando o que nós precisamos é do contrário, que seja uma autoridade próxima dos alunos, que desenvolva o gosto pelo conhecimento e reconheça o papel do adulto e do trabalho para o seu progresso pessoal.

Disse que a equidade é frequentemente vista como um obstáculo ao desenvolvimento. Mas há estudos a provar o contrário. Portugal está no bom caminho nesse sentido?

Estamos no bom caminho. O que nos mostram os estudos transnacionais é que os bons sistemas educativos são aqueles que ao mesmo tempo são capazes de criar a excelência e também a equidade.
Qualquer sistema educacional fraco ou insuficiente consegue criar excelência. É muito fácil criar bolsas de excelência. O que é realmente difícil é conseguir equidade, isto é, conseguir que as características e as circunstâncias de cada um dos alunos não originem o tratamento desigual em termos educativos. E o que nos provam os estudos transnacionais é que os países que conseguem ir mais longe na equidade são aqueles que também vão mais longe na excelência. Um exemplo muito interessante: antes do terramoto, o Haiti tinha uma Escola pública fraquíssima e as escolas que eram realmente consideradas importantes eram as escolas de excelência, que caíram com o terramoto. E aí o Haiti ficou sem Educação, porque o Haiti estava preocupado com a Educação de excelência, mas não conseguiu criar a equidade.
Hoje em dia, penso que há uma grande preocupação em pensar numa perspetiva de equidade mais do que numa perspetiva de inclusão. O termo inclusão, que continuo a usar, sem dúvida que se fatigou, porque a inclusão aparece-nos muito como se fosse o contrário de exclusão, isto é, nós temos de ser inclusivos porque existe exclusão, e dá a ideia que estamos constantemente nesta cruzada contra a exclusão, o que de certa maneira diminuiu o impacto do termo. Por outro lado, a inclusão acabou por se conotar muito com as pessoas com deficiência. Portanto, hoje em dia, penso que o grande desafio é a equidade na Educação.
A equidade é uma qualidade dos sistemas educativos que conseguem ou que procuram diminuir o impacto da origem dos alunos na forma como os tratamos.
Outra questão muito importante sobre a equidade é que ela está conotada com a justiça social. Aliás, na literatura inglesa, muitas vezes a equidade e a justiça social aparecem como sinónimos e isso é dizer que qualquer sistema educativo que não seja equitativo é injusto. E isso é muito interessante como uma linha de pensamento e de atuação.

Portugal está bem “qualificado” entre os restantes países, no domínio da equidade?

O último relatório do programa PISA mostra que Portugal é dos países europeus que fez maior progresso ao nível da equidade, isto é, em que subiu mais lugares relativamente à classe social não ser determinante no sucesso na Educação. Um resultado que foi muito valorizado. Aliás, quando falamos de rankings das escolas, gostaria que utilizássemos muito mais este valor da equidade e não só os resultados que os alunos que aprenderam ou não. Preconizo que devia haver um ranking das escolas que mais eficazmente conseguiram combater o insucesso, o abandono escolar e ser mais equitativas. Diria que até há pouco tempo estávamos no bom caminho, no sentido em que fomos dos países onde houve mais ganhos em relação à equidade.

Um currículo igual para todos é sinónimo de igualdade de oportunidades ou deve ser flexível?

Estamos a criar uma nova perspetiva sobre a igualdade de oportunidades, porque durante muito tempo tivemos a ideia de que a igualdade de oportunidades era dar o mesmo a todas as pessoas. Hoje sabemos que se dermos o mesmo a todas as pessoas vamos originar desigualdade, porque o que precisamos é de dar às pessoas diferentemente em função das suas necessidades e da capacidade que têm de aprender essas coisas. Costumo dizer que a igualdade avalia-se do lado do que se recebe e não do lado do que se dá. Este conceito é muito conflitual com muitos valores tradicionais da Educação que prezam a igualdade pelo que se dá (por exemplo: “Eu já dei essa matéria!”). Sempre se pensou na igualdade de oportunidades mais ao nível do que se dá e menos ao nível do que se recebe. Estive recentemente numa reunião do Conselho da Europa, onde vários países apresentaram relatórios. A Bélgica, por exemplo, aprovou há pouco tempo uma legislação muito interessante em que reafirma o valor da inclusão mas só se os alunos com dificuldades seguirem o currículo igual aos outros e os acompanharem no mesmo ritmo de aprendizagem. E eu lembrei-me daquela frase: as mulheres podem ter os mesmos direitos dos homens se se comportarem como homens… Isto é completamente absurdo.
A inclusão implica que as escolas devem ter possibilidade e espaço para adaptar os seus currículos. Para isso, precisam de apoio, porque muitas vezes os professores sozinhos, com o número de alunos que têm, com o número de horas que lhes são atribuídas, não são capazes de pensar na diferenciação curricular numa perspetiva eficaz. Quando dizemos que é preciso apoio para os professores queremos dizer que precisamos de apoio também na formação permanente, para que os professores sejam incentivados, encorajados e apoiados a fazerem uma diferenciação curricular.

 

A HOMOGENEIDADE É UMA QUIMERA

No ensino regular, a integração é boa para todos os alunos?

Temos evidência de que sim. Estudos de investigação mostram que os alunos não só aprendem quando estão em contacto com pessoas que os ensinam, mas que os alunos também aprendem quando ensinam. Há pouco tempo foi publicado um artigo que mostrava exatamente isso, que a forma mais eficaz de os alunos fixarem e consolidarem a aprendizagem era terem uma oportunidade de ensinar isso a outros alunos. Portanto, não é só uma questão ética, de solidariedade ou de cooperação, que também são valores que nos interessam, mas tem a ver também com a própria perspetiva da qualidade da aprendizagem. Temos é de criar na escola, na sala de aula, momentos e ambientes para que o aluno possa ter oportunidades diferentes de aprendizagem, não só a oportunidade de estar sentado, o ‘senta-te, cala-te e ouve’, mas também a oportunidade de procurar ensinar aos outros, de discutir, de interagir com outras pessoas, porque estas são, sem dúvida, formas reconhecidas como muito importantes ao nível da aprendizagem.

Além de que é importante, também, criar a consciência de que existem diferenças…

A consciência constrói-se à volta do que pensamos que deve ser a Escola como comunidade. Eu gostaria que a Escola fosse uma amostra representativa da comunidade.
Tanto uma escola em que não sejam reconhecidos alunos com dificuldades como uma escola em que estes alunos com dificuldades sejam uma maioria, são escolas desequilibradas e provavelmente pouco eficazes. A verdadeira escola, a que prepara para vida, é aquela que consegue funcionar com todas as variáveis integrantes de uma comunidade humana. Nessa escola têm que ter lugar alunos com deficiência, alunos com comportamentos inusuais, excelentes alunos, alunos “mais ou menos”, alunos que gostam de Matemática, alunos que a detestam… Todas essas pessoas fazem parte da Escola. Uma escola saudável, uma verdadeira escola pública, é assim. Às vezes acontece com algumas escolas que criam fama de serem melhores no atendimento às NEE e, de repente, toda a gente quer lá pôr todos os alunos com dificuldades – mesmo morando longe. E uma escola que era boa e equilibrada, precisamente por ser diversa e heterogénea, fica desequilibrada porque começa a ter um número absolutamente anómalo de alunos que têm condições de deficiência ou dificuldades. Portanto, o que gostaríamos era que as escolas pudessem ser representativas da comunidade onde existem. Temos evidência que as escolas podem trilhar este caminho e terem excelentes resultados quando exploram novas estratégias, quando usam modelos de desenvolvimento curricular que permitam a progressão personalizada dos alunos. Sabemos que as escolas se podem organizar de forma a que os alunos mais atrasados não atrasem a progressão dos alunos mais adiantados. A Escola Inclusiva não pretende promover a aprendizagem dos alunos mais frágeis à custa dos alunos mais fortes.
Isso é também um erro de equidade. É ótimo um aluno com mais dificuldades poder estar atrelado a uma boa locomotiva, isto é, ligado a um contexto estimulante e com boas expectativas sobre o seu sucesso para lhe dar mais ambição ao nível da aprendizagem.

E, então, qual a sua opinião sobre o sistema dual?

A questão do ensino dual é muitas vezes justificada pelo facto de querermos que a escola onde andam as crianças com dificuldades seja uma escola perfeita. E a minha questão é: porque é que a escola há de ser perfeita se mais nada na sociedade é perfeito?
A nossa democracia não é perfeita, o nosso sistema económico não é perfeito, o nosso sistema de saúde não é perfeito.
Mas quando chega o momento de educar crianças com dificuldades dizemos que tem de ser um sistema perfeito, e para ser uma escola perfeita dizemos que o melhor é a homogeneidade. O grande problema do modelo dual é que procura a quimera da homogeneidade. Fazemos diferentes vias na escola, porque cada uma destas vias vai ser mais homogénea. E continuamos realmente a incidir no mesmo problema. O que nós pensamos é que, em lugar destes sistemas duais, precisávamos de melhorar a nossa perspetiva de apoio aos sistemas unificados.
Precisamos de continuar a trabalhar no sentido de proporcionar mais apoios, mais formação, mais cooperação entre os professores, de maneira a melhorar a educação das crianças com dificuldades. Os sistemas duais perseguem a homogeneidade mas se eu fizer uma turma homogénea em Português, essa turma vai deixar de ser homogénea em Matemática ou em Educação Física. É homogénea quando e em que conteúdos? Fazendo uma comparação: alguns países árabes não permitem que as mulheres saiam à rua, porque o que se passa lá fora pode ser “desaconselhado” para elas, podem dizer-se coisas, podem tocá-las, pode acontecer qualquer coisa, não é? Às vezes parece que fazemos a mesma coisa em relação às pessoas com dificuldades, mantemo-las num ambiente mais protegido porque “lá fora” pode ser muito mau para elas. Mas é o contrário. Lá fora é onde está a vida, é onde as coisas se passam. Não estou a dizer que isto se faça de uma maneira descontrolada, de uma maneira não apoiada, mas precisamos de colocar as nossas energias, o que podemos e o que sabemos, nesta questão de fortalecer as vias unificadas, as vias onde existe uma maior validade ecológica e uma maior similitude com as comunidades.

O nosso sistema educativo é inclusivo?

No que toca à inclusão, Portugal tem uma boa imagem a nível internacional.
Temos uma percentagem muito elevada de alunos com dificuldades integrados na escola regular e isso é um sucesso. Há um longo caminho que foi feito, mas não nos podemos esquecer da fábula da lebre e da tartaruga – pode ser que tenhamos partido muito depressa, mas é preciso continuar a correr, porque se ficarmos muito entusiasmados com os nossos resultados, é muito provável que todo o sistema regrida.
Para lá dos números, precisamos de ter estratégias de melhoria porque existe uma grande margem de progresso naquilo que podemos fazer em relação à educação de alunos com dificuldades. Temos de melhorar o apoio, de melhorar os currículos, a formação dos professores, a cooperação entre os professores… Mas neste momento podemos dizer que temos um bom ponto de partida, no sentido em que temos uma grande percentagem de alunos com dificuldades e temos professores – de Educação Especial e de apoio – que são pagos para apoiarem os alunos com dificuldades. Isso é um aspeto muito positivo e que temos que defender a todo o custo.

Sendo necessário manter esse investimento, os cortes na Educação são um problema...

Com certeza. Às vezes parece que estamos na fábula do burro que morreu quando já estava quase desabituado de comer. Vamos cortando coisas em cima de outros cortes que já foram feitos antes. Isto é realmente crítico, porque não há possibilidade de mantermos um bom sistema de inclusão se não tivermos recursos, se não tivermos professores, se não tivermos horas para trabalhar com alunos com dificuldades, oportunidades, terapias… Se não tivermos todo um conjunto de apoios para esses alunos, não estamos a trabalhar realmente numa perspetiva de inclusão. Sem apoios torna-se óbvio que o melhor é os alunos com dificuldades não estarem na escola.
Portanto, isso é muito preocupante.

Em outubro, a Federação Nacional dos Professores e duas associações ligadas a pessoas com deficiência apresentaram algumas preocupações ao presidente do Conselho Nacional de Educação, David Justino, e pediram medidas mais inclusivas. Portanto, há descontentamento e muita preocupação...

Repare, se queremos construir um sistema inclusivo, esse sistema tem de ser concorrencial com o que era o antigo sistema.
Muitas vezes acho que é útil colocarmo-nos na posição de pais. Nenhum pai estaria disponível a trocar um serviço que tem numa escola especial por um serviço de pior qualidade só porque é feito numa escola regular. Portanto, precisamos que a escola regular ofereça às crianças e às famílias serviços em tudo equivalentes aos serviços que têm numa escola especial.
E aí, sim, poderemos encontrar aspetos comparativamente melhores na escola regular, porque realmente a interação é maior, a socialização é maior, o desafio é maior, as expectativas são maiores. Aí, realmente, a escola regular tem vantagem. Mas precisamos de criar essas condições. Há pouco tempo, fiquei muito perturbado ao falar com um grupo de pais. Disseram-me que estavam a pensar contratar uma educadora para trabalhar com os seus filhos, porque a escola não dava resposta. Como é que não conseguimos dar a estas pessoas as condições mínimas para que os filhos tenham dignidade na sua educação, tenham proveito na sua educação? Sem um apoio eficaz, que é possível e desejável, os pais começam a pensar que o melhor é resolverem a educação dos seus filhos de uma forma privada e doméstica.

 

PRECISAMOS DE UMA INCLUSÃO QUE ESTEJA ENRAIZADA NAS PRÁTICAS DA ESCOLA

A propósito de um dos seus artigos, e de uma frase que já utilizou nesta entrevista, a Escola prepara para a vida?

A Escola prepara para a vida sendo vida. A escola preparará tanto melhor quanto mais conseguir criar situações efetivamente válidas para que as pessoas possam realmente aprender de forma contextualizada aquilo que queremos que aprendam. Dou muitas vezes o exemplo da cidadania. Acho que não há melhor exemplo de cidadania do que seria o funcionamento de uma instituição como a Escola. No entanto, estamos muito atrás disso, porque falamos muito de cidadania na Escola, mas praticamos muito pouca cidadania na Escola. Portanto, diria que a Escola prepara para a vida fazendo as pessoas viverem essa vida e esses valores.
É nisso que acredito. Acredito nisso em relação à sustentabilidade, à ecologia, à cidadania, à resolução de conflitos. Acho que uma grande lição que as pessoas podem ter é viverem as situações dentro da escola, e viverem-nas plenamente, em vez de só falarem delas e dizerem que é assim que se deve fazer.

Precisamos – Governo, Sociedade, Escola – de ouvir mais as pessoas com deficiência, as pessoas com mais necessidades?

Precisamos de ouvir toda a gente. Precisamos de ouvir talvez mais particularmente as pessoas com deficiência, porque essas foram sempre, historicamente, as menos ouvidas, mas precisamos de continuar a ouvir toda a gente. E, sobretudo, precisamos de ter a ideia de que a inclusão não é um acrescento à Escola. Muitas vezes pensamos que temos uma escola que funciona normalmente e que depois juntamos a isto um projeto de inclusão. Poderíamos chamar a isto uma inclusão por adição, quer dizer, temos a Escola e depois temos ao lado um acrescento de inclusão. Mas isto não funciona assim. Os valores da inclusão, os valores que têm a ver com as pessoas aprenderem a viver em conjunto, aprenderem em conjunto, revelarem-se em conjunto, não são uma adição à Escola tradicional. Trata-se de uma modificação, de uma reforma educativa profunda, que precisamos de fazer, de maneira a que ela se possa aproximar mais do que são os valores da inclusão. É, sem dúvida, difícil e exigente, mas não podemos pensar que a inclusão é mais um daqueles projetos que existem nas escolas, porque quando acabar o projeto acaba a inclusão. Precisamos de uma inclusão que esteja embutida, profundamente articulada e enraizada nas práticas da Escola. Nas práticas que têm a ver com o acesso à Escola, com a avaliação, com o desenvolvimento curricular, com as estratégias, com a resolução de conflitos, em tudo isto precisamos que a inclusão esteja presente. A inclusão não é a sala onde se faz a inclusão; a sala onde se faz a inclusão é a escola toda.

O que falta fazer?

Um dia, no final de uma conferência, um jovem professor pôs-me essa questão: o que era preciso fazer para chegar à Escola Inclusiva. Disse-lhe que a primeira coisa a fazer é ensinar todos os alunos. Isto é, organizar o trabalho de maneira a que todos os alunos sejam acolhidos e ensinados.
Ensinar todos os alunos, acho que é muito importante. Mas há outras questões muito importantes relacionadas com as escolas.
Acho que devíamos, e precisamos, melhorar o sistema de apoio aos alunos com dificuldades. Muitas vezes, os alunos com dificuldades são detetados tardiamente e não temos uma resposta rápida para lhes dar. Antes de mais, temos de ter um sistema de prevenção, um sistema de apoio rápido e eficaz, para que as dificuldades dos alunos não se tornem em problemas inultrapassáveis. Portanto, um dos aspetos mais importantes para a inclusão é conseguir criar nas escolas um sistema de apoio adequado e atempado. Depois, como já disse, é muito importante o apoio aos professores. Ninguém consegue ter práticas diferentes se não for apoiado para isso, porque é mais fácil fazer aquilo que estamos habituados a fazer, é fácil, é o óbvio, já sabemos como é. As pessoas precisam de ser apoiadas para conseguirem fazer essa tal reforma educativa. Mel Ainscow diz que precisamos que as escolas sejam incentivadas a correr riscos, a ousar fazer uma coisa diferente, a sair da rotina. E para isso as pessoas precisam de ser incentivadas. Precisamos que a Escola vá modificando os seus valores, de maneira a não estar a perseguir as mesmas coisas que persegue desde o século XIX. Estamos cansados de que a Escola persiga a homogeneidade, a perspetiva de uma comunicação, de uns objetivos e de um ensino que é só para certos alunos e que exclui outros. Portanto, talvez responda: ensinar todos os alunos, apoiar os alunos e os professores, formar e mudar os valores nas escolas. Parece um programa político… [risos]

Um programa para uma Escola ideal?

Quer dizer… Essa coisa da escola ideal não existe. Há pouco tempo, fizeram uma entrevista muito interessante à professora Fátima Vieira, em que ela falava da questão das utopias e dizia uma coisa muito importante: nós não andamos à procura da Escola ideal, nós andamos à procura das utopias que nos aproximem da Escola real. Como se dizia, andamos alguns passos, mas a utopia anda mais do que nós, e portanto nunca encontraremos a tal Escola ideal. Mas há uma Escola que eu persigo: que seja ética, que seja equitativa e que seja justa. Se ela é perfeita ou não, não sei, mas estes são os valores que penso que são inalienáveis, valores por que vale a pena lutar para procurarmos fazer a nossa sociedade melhor e do mundo um lugar melhor para viver.

 

NÃO DEVEMOS NUNCA TOMAR A EDUCAÇÃO COMO UM DADO ADQUIRIDO

É presidente da Pró-Inclusão. Qual a principal missão dessa associação?

A nossa missão fundamental é procurar desenvolver atividades que nos aproximem de uma maior inclusão. Por exemplo, trabalhamos muito ao nível da formação e do apoio dos professores. Esperamos que tudo o que fazemos nos venha a aproximar dessa perspetiva de uma Escola de melhor qualidade, sem dúvida.

Assumiu “um compromisso de 40 anos com a Educação e com a inclusão”. Como deu início a esta cruzada?

Muitos de nós somos protagonistas improváveis, isto é, muitas vezes pensamos que é preciso fazer reformas e não sabemos quem as devia fazer. E quando vamos ver, se calhar são muitas vezes pessoas que não estavam preparadas, ou como se diz em linguagem corrente, que não estavam para aí viradas, que acabam por fazê-las. De certa maneira, considero-me um protagonista improvável. Fui professor do Ensino Secundário e de repente fui desafiado para entrar na Educação Especial.
Podia ter dito que não, mas disse que sim. E pronto. Depois, obviamente, vesti esta pele, este compromisso de lutar pelos direitos das pessoas com deficiência, de lutar pela Inclusão como um Direito Humano em particular dos cidadãos que estão na escola. Não tive nenhum motivo especial para isso. Já depois de ter assumido este compromisso, um parente muito próximo teve um acidente e ficou tetraplégico.
Há quem pense que fui para a Educação Especial por causa do meu sobrinho, mas não, eu já lá estava. Fui realmente um protagonista improvável desse ponto de vista.

Uma outra protagonista – destacada nesta edição – é a jovem Malala Yousafzai, que recentemente foi distinguida com o Prémio Sakharov pela sua luta pelo direito à Educação, em especial pelo direito à Educação das mulheres. É importante este reconhecimento?

É! Segundo a UNESCO, 75 milhões de crianças estão fora da escola e não há esperança que tenham escola até 2015. Quando pensamos nisto, percebemos melhor o que diz a Malala. Em alguns países, a Educação tornou-se quase como um dado adquirido, mas não é verdade. E vemos isso em países europeus. Não devemos nunca tomar a Educação como um dado adquirido. Temos sempre de procurar que se constitua e seja encarada como uma prioridade, também nos países considerados desenvolvidos. Nos países onde existem níveis de escolarização muito baixos e, sobretudo, crianças fora da escola, precisamos de fazer um esforço redobrado para levar todas as pessoas à escola e para que a escola lhes possa permitir manusear instrumentos sociais que, por sua vez, lhes permitam a sustentabilidade, a equidade e o desenvolvimento. É o triângulo da UNESCO: sustentabilidade, equidade e desenvolvimento. E a Educação tem um papel absolutamente central em todas estas áreas.

Relativamente aos imigrantes, Portugal acolhe-os bem? A Educação é inclusiva nestes casos?

Também aqui, penso que temos ainda muito caminho para andar. Portugal sempre foi um país com grande mobilidade de populações que chegam e que partem. É muito importante que haja um apoio que seja verdadeiramente centrado nas dificuldades das crianças, que seja por uma educação bilingue, que seja por uma Educação que ajude essas crianças a não abandonarem os seus valores para abraçarem imediatamente outros. A inclusão não quer trabalhar com as diferenças para acabar com elas.
Através da perspetiva inclusiva, queremos compreender as diferenças, pois pensamos que as diferenças podem ser meios muito importantes para que as pessoas possam conviver melhor. Portanto, precisamos certamente de modelos educativos em que as crianças imigrantes possam fazer o trânsito entre o que são os seus valores e a sua língua de origem e os valores e a língua de acolhimento. Precisamos de uma perspetiva equitativa sobre estas crianças e de considerar que, independentemente de muitas vezes serem mais pobres ou terem um banho cultural mais difícil de entender, elas têm exatamente os mesmos direitos educativos que os nossos filhos. Portanto, não podemos baixar o nível de exigência sobre os direitos educativos e os direitos sociais de todas as crianças, tenham elas deficiência ou não, sejam elas imigrantes ou não, sejam rapazes ou raparigas. Baixar o nível da educação é um atentado à possibilidade de inclusão e de mobilidade social. Sobretudo, porque os direitos não têm “ses”. Direito é direito. E as pessoas têm direito a uma Educação de qualidade.

A questão da inclusão é transversal ao nível da discussão em toda a Educação. E o papel dos pais tem sido importante?

Estamos a assistir a mudanças extraordinárias por parte dos pais. Durante muito tempo, habituámo-nos a dizer que os pais preferiam as escolas especiais por causa do conforto dos filhos, dos serviços de que os filhos dispunham, etc. Hoje assistimos ao contrário: pais na rua, pais com abaixo-assinados, pais com uma capacidade reivindicativa a dizerem que querem que os seus filhos tenham uma educação inclusiva, porque se aperceberam que os filhos vão ter necessidade de dispor de redes sociais de apoio quando forem adultos. Se eles não tiverem possibilidade de usufruir de uma rede social de apoio, não adianta estarem numa escola especial muito “confortáveis”; precisam é de ter pessoas que falem com eles, com quem possam interagir, com quem possam ser interdependentes. E portanto, neste momento assistimos a um grande movimento de pais pela Inclusão. Alguma coisa está a mudar, e ainda bem.

Entrevista conduzida por Maria João Leite


  
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