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Os professores têm de tomar consciência da sua própria força

“Sérgio Niza é a presença mais constante, mais coerente e inspiradora da pedagogia portuguesa dos últimos cinquenta anos. […] Nestes cinquenta anos, tem-se batido pela transformação da instituição escolar, por uma escola de todos que permita a cada um ir o mais longe possível no seu processo de aprendizagem e desenvolvimento. […] A sua vida é inseparável do mais importante movimento pedagógico português, o Movimento da Escola Moderna, que ajudou a criar em 1966 e do qual tem sido a principal referência”.

 [António Nóvoa, Escritos sobre Educação: Sérgio Niza, Tinta da China, 2012]

Diplomado pela Escola do Magistério Primário de Évora, Sérgio Niza foi professor do ensino primário e de educação especial, tendo participado no projeto pioneiro de integração de crianças cegas e amblíopes (Centro Infantil Helen Keller). Mais tarde, especializou-se em Investigação em Educação e em Psicologia Educacional e, entre outra atividade docente, foi professor convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, da Faculdade de Ciências do Desporto e da Educação Física da Universidade do Porto, do Departamento de Pedagogia e Educação da Universidade de Évora e do Instituto Superior de Psicologia Aplicada.
Manteve uma longa colaboração com Rui Grácio em projetos de formação contínua, no âmbito do Sindicato Nacional de Professores e do Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Calouste Gulbenkian. Posteriormente, integrou o grupo de redação do Projeto Pedagógico para criação das Escolas Superiores de Educação, integrou o Departamento de Desenvolvimento Curricular do Instituto de Inovação Educacional e foi membro do Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores e do Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua de Professores. Grande-Oficial da Ordem da Instrução Pública, Sérgio Niza dirige o Centro de Formação de Professores do MEM e a revista Escola Moderna. É membro do Conselho Nacional de Educação. A conversa com a PÁGINA começou por aqui. 

 

Foi cooptado pelo Conselho Nacional de Educação como pedagogo...

Estou no CNE desde que a Ana Maria Bettencourt foi eleita presidente. O Conselho elegeu-me, aceitando assim uma voz da Pedagogia, o que fora difícil até então.
Costumo dizer que quem me inventou como pedagogo foram o António Nóvoa e a Graça Vilhena, quando escreveram sobre mim um capítulo do «Pédagogues Contemporains» [1996, ed. Armand Collin], publicado por Jean Houssaye. Tratava-se de oito pedagogos, todos ainda vivos nessa altura. O Houssaye fez um belíssimo prefácio onde ironiza sobre a definição de pedagogo.
Era a altura das grandes batalhas, em França, entre republicanos e pedagogos, como se os pedagogos fossem os da ciência da educação – os do eduquês, designação cunhada nessa altura como forma de os republicanos conservadores hostilizarem as propostas inovadoras dos pedagogos.

E essa contenda continua? Que argumentos se contrapõem?

Digamos que em França, quando se fala em República e republicanos, estamos a falar claramente da burguesia das luzes, das pessoas que ascenderam ao poder através da República e que defendiam as ideias liberais e parlamentares como uma forte crença, e que vieram, com o tempo, a afirmar-se cada vez mais como conservadoras. Os pedagogos, que a direita tem vindo a combater na polémica atual, são afinal todos aqueles que procuram mudar a Escola tradicional, apoiada pela velha República do século XIX: a Escola para o povo, com o ensino simultâneo, para muitos como se fossem um só, altamente seletiva, para fabricar uma elite, só com os melhores da escola pública, que nem sequer eram os filhos dos republicanos. Se calhar eram, inicialmente, mas como os republicanos se tornaram a grande burguesia, os filhos deles passaram para a Escola Nova, as escolas românticas na designação inglesa, que eram falanstérios de luxo. Como cá havia a escola da Figueira da Foz, uma ou outra no Porto ou em Lisboa, que tinham reserva agrícola, laboratórios, internato… Todo esse sonho da Escola pensada para a grande burguesia que acabava de tomar o poder à aristocracia.

Estamos a falar do movimento da Escola Nova…

Ou talvez, de preferência, às escolas novas do movimento de Educação Nova. No entanto, em rigor, as escolas novas nunca chegaram ao povo – talvez algumas migalhas das suas práticas. [Célestin] Freinet teve essa utopia de trazer a Escola Nova para dentro da escola do povo.
Em boa verdade, foi a isso que ele quis chamar Escola Moderna, para marcar a diferença. Quer dizer, que a escola nova da burguesia também era possível na escola popular, para os filhos de operários e de camponeses.
É claro que era possível, através de pessoas como ele ou dos professores da Escola Moderna de então, mas isso tudo numa luta de equívocos. Porque, entretanto, a herdeira da Escola Nova, em França, foi o grupo da Educação Nova, liderado pelo Partido Comunista e pelos seus grandes intelectuais, como o Henri Wallon – o Freinet também pertenceu ao Partido Comunista, mas foi expulso. O que é relevante é que em cima do tempo não havia a possibilidade de apreender as diferenças, de ver que a verdadeira Escola Nova, com todas as características de que se revestia, era inviável, porque tinha de ter internato, terras para cultivo, laboratórios, etc. Era a escola que convinha à burguesia – tal como a aristocracia teve as escolas para os nobres de orientação religiosa, a burguesia republicana queria ter uma escola laica de grande qualidade.

Mas havia aí algum paradoxo ou… acreditavam que seria possível criar uma escola para todos com essas características?

São muitos paradoxos… [risos] Alguns pensaram que essa escola podia ser para todos, valha a verdade. O certo é que não chegou a todos, ficou só nalguns. E o mais curioso é que esses alguns (a burguesia) perceberam muito depressa que todo aquele requinte – como é ainda hoje na École des Roches, na Normandia, com campos de aviação para os alunos, ateliês para fazerem cinema…

São umas AEC topo de gama…

Exato. Mas era essa a Escola Nova, não vale a pena iludirmo-nos acerca disso. Mesmo cá em Portugal, as coisas da Escola Nova que chegaram à escola pública, à escola popular, foram coisas mínimas, isoladas: as expressões, os trabalhos manuais, coisas assim… Mas não a conceção de um sistema, de outra forma de educar, etc.

Dizia que a burguesia percebeu muito depressa que…

Todo aquele requinte era dispensável para assegurar o estatuto social e económico dos seus filhos. A burguesia apercebeu-se de que se os seus filhos estivessem com os filhos dos amigos deles, muito ricos, tendo alguns professores tradicionais muito esforçados, essa era a vantagem: colégios ricos, onde os professores ensinam da mesma maneira que na escola pública, utilizando os mesmos métodos simultâneos, lições, etc. Portanto, perceberam rapidamente que o estatuto social e o prestígio que tinham, a rede social de vantagens, o capital social que a própria classe oferecia, constituíam um poder imenso, e podiam prescindir dessa escola nova.
O que é interessante é verificar como a Escola Nova foi desejada pela burguesia e frequentada pelos seus filhos (porque os pobres não podiam ir para lá). E que os intelectuais, os partidos de esquerda, os revolucionários, etc., estabelecem entre si diferendos vários, com o equívoco de pensarem que aquela Escola Nova era possível como escola do povo. Mas o certo é que os governos, mesmo os que eles constituíram ou apoiaram, não transformaram a escola do povo numa escola outra, diferente da do século XIX, para as massas, como em Inglaterra. Uma escola de massas, com os professores a darem lições, todos a fazerem os mesmos exercícios ao mesmo tempo, etc.
O Nuno Crato, por exemplo, se pensa o que pensa sobre a Escola, pensa-o em nome da sua experiência cultural e histórica, porque frequentou escolas tradicionais que acha que foram boas para ele; quer dizer, que aquelas escolas davam para fazer ministros... O que falta provar ... é que hoje essa conceção de Escola assegura um futuro digno e satisfaz o direito à aprendizagem escolar com êxito para todos.

Portanto, a Escola Nova acaba por não ser solução ao nível da escola para as massas. É então que surge a Escola Moderna?

Se nos quisermos entender, há várias escolas modernas. No plano histórico, quando falamos de escola moderna, estamos a falar de uma conceção que começa a emergir no século XVII, na Idade Moderna, que tem um florescimento marcante no século XVIII, mas cujo apogeu é no século XIX, com a conquista generalizada do poder pela burguesia. Esse é que é o momento grande do que se chamou a democratização da escola, que não era mais do que alargar a Escola ao máximo de cidadãos – tornar a escola universal era uma grande ambição republicana, para prosseguimento da industrialização e expansão do comércio.
Bem, se a Escola fosse democrática… Só que a Escola, por dentro, nunca foi democrática. Quando muito, foi oligárquica! Foi tudo menos democrática. Porque não bastava que os professores fossem supostamente democratas para que os meninos se formassem para a vida democrática.
Então, temos aquilo a que chamamos escola moderna, da Idade Moderna, temos a Escola Moderna do Freinet e temos, ainda, a escola moderna dos anarquistas, sobretudo da linha “Escola Racionalista”, de Barcelona, que se chamava mesmo Escola Moderna e foi criada por Francisco Ferrer Guàrdia, anarquista e francomaçom, como era da boa tradição.

E o que distinguia a Escola Racionalista das outras?

A Escola Racionalista estava mais perto da Escola Nova, mas tinha algo relativamente diferente. Digamos que se aproximava mais da Escola-Oficina Nº 1, de Lisboa, que também pertencia à Maçonaria e que tinha uma parte de atividade manual muito desenvolvida, já perfilada para o despiste vocacional; tinha orientação libertária e espiritualista e era orientada por grandes intelectuais da maçonaria.

Quem eram as referências?

Normalmente, eram os professores da Escola Normal de Lisboa que ajudavam a construir essas alternativas – Adolfo Lima, por exemplo.
Agora, um passo mais de diferenciação. Freinet trabalhou muito com as variantes da Escola Nova: com a Escola de Rugby (onde se inventou o râguebi) e as outras escolas novas inglesas; as escolas novas americanas, que eram mais assentes no autogoverno, e que António Sérgio apoiou mais entre nós, com o seu “município escolar” – eu próprio criei um município escolar no início da minha carreira, por isso fui expulso do ensino… [risos]
E depois o resto da Europa: as escolas dos professores camaradas, as escolas libertárias da Alemanha, os trabalhos de grupo do [Roger] Cousinet, [Jean-Ovide] Decroly, Maria Montessori… Enfim, uma panóplia de caminhos. E o caminho inicial de Freinet foi o uso da impressora na escola – foi a partir desse percurso, de levar a impressora para a escola e fazer jornais, livros, etc., que ele se filiou na educação nova, na Escola Nova.

São a mesma coisa, ou são conceitos próximos?

A educação nova alarga o âmbito dos contributos e integra as escolas novas. O [Adolphe] Ferrière foi muito importante para dinamizar o movimento. A meu ver, seria um social-democrata, e às vezes havia ali tensões, pressões, inquietações, porque muitos eram anarquistas, comunistas, socialistas utópicos, etc. E querendo agradar a todos, querendo ser o líder, ficava aquém dessa dinâmica, o que não o ajudou na evolução do movimento.
Ora, depois do trabalho na Front Populaire, e após sair do campo de concentração, aquando da libertação da França, o Freinet entra em conflito com os líderes comunistas da Educação Nova, Wallon e [Paul] Langevin.
Mas ele é que tinha os professores com ele, não eram os líderes académicos. Freinet era professor do ensino primário e tinha um grande grupo de professores com ele, o que não era habitual. Então, terminada a guerra, Freinet tomou consciência de que a Escola Nova se tinha academizado, e como queria utilizar as coisas boas da Escola Nova na escola popular, com os seus colegas, isso valeu-lhe ser expulso do Partido Comunista e da escola pública e ter de criar uma escola privada para dar continuidade ao seu trabalho. Portanto, a Escola Moderna de Freinet era uma resposta de oposição à educação nova – à Escola Nova.
Depois, quando falamos de Escola Moderna em Portugal, a confusão é maior. [risos] Porque nós começámos a trabalhar com o Rui Grácio, na herança do António Sérgio. E os professores, sobretudo do ensino primário, estavam em escolas privadas, porque nas públicas seriam presos ou expulsos do ensino.

Estamos a falar em que anos: 60?

Eu fui expulso em 1963, quando criei o “município escolar” em Évora. Nessa altura, a Maria Amália Borges, a Rosalina Gomes de Almeida, a Isabel Pereira e outros, tinham introduzido no Centro Infantil Helen Keller as técnicas do Freinet para trabalhar com crianças cegas e amblíopes e com algumas que viam, dando assim início ao processo de integração educativa entre nós – e foi lá que voltei a trabalhar como professor, por se tratar de uma atividade no âmbito da saúde e assistência, o que parecia não pôr em causa a segurança do Estado. [risos]
Foi também em 1963, no Sindicato Nacional de Professores, que o Rui Grácio iniciou os cursos de aperfeiçoamento de professores (aquilo a que hoje se chama formação contínua), que frequentei a partir de ’64, enquanto trabalhava com ele no Centro de Investigação Pedagógica, na Fundação Calouste Gulbenkian. E foi nesse contexto de formação profissional que, em fevereiro de 1965, criei o Grupo de Trabalho de Promoção Pedagógica.

É desse grupo que vai nascer o Movimento da Escola Moderna?

Sim. Quando passei para o Helen Keller continuei a trabalhar no sindicato, obviamente, e essas pessoas passaram a integrar o encontro semanal que se realizava no Helen Keller. Em 1966, fomos ao congresso de Perpignan, para apurar que estatuto poderíamos ter na Federação Internacional dos Movimentos de Escola Moderna, a que ficámos ligados como observadores. Era uma vantagem termos uma ligação internacional porque, se nos acontecesse alguma coisa, teríamos alguns amigos que poderiam bater-se por nós.
Então passámos a fazer muito trabalho ligado aos movimentos de Escola Moderna no mundo (éramos 38), o que foi útil, porque nós tínhamos de preparar a mudança pedagógica para quando tivéssemos liberdade de a fazer abertamente – leva muitos anos a aprender a fazer coisas diferentes no trabalho das escolas, e essa seria a nossa vantagem quando um dia o pudéssemos partilhar.`
Trabalhávamos com discrição, mas incansavelmente, em colégios particulares ou para crianças deficientes. Nas escolas públicas ainda não, só começaram a aproximar-se de nós no início dos anos 70.

E tinham ligações efetivas?

Tínhamos reuniões. E uma coisa que para os jovens de hoje deve parecer do arco-da-velha… [risos] Todo esse trabalho era apoiado por pessoas que hoje pertencem à história da educação, como o João dos Santos, que é o sócio nº 1 do movimento, o Rui Grácio, o Rogério Fernandes e por aí adiante. Uns com uma presença reconhecidamente mais política, outros mais profissional.
O que acontecia, é que nós inventámos – deve ter sido por inspiração do João dos Santos – a comemoração de um centenário todos os anos… [risos] Está-se a ver o porquê: como era proibido às pessoas fazerem reuniões, a não ser no sindicato, e só os do ensino particular (os outros não podiam ser encontrados lá, era perigosíssimo), para nos encontrarmos, levávamos um ano a organizar a comemoração de um centenário: da Anne Sullivan ou do [Édouard] Claparède, que nem os suíços da embaixada de Lisboa sabiam… Mas, quer dizer, nós é que tínhamos de saber quem fazia 100 anos... [risos]

E faziam mesmo, ou não?

Sim. Umas vezes de nascimento, outras vezes da morte, mas eram sempre centenários. O que era preciso era podermos comprovar que estávamos a trabalhar na construção de um evento. Por isso, o primeiro contacto que fazíamos era com as embaixadas; dizíamos que íamos comemorar e que eles tinham de nos ajudar, e estava defendida a situação.
Para trabalhar, para estarmos juntos, para aprender, para estudar, para refletir em conjunto, para introduzir mudanças, foi sempre através de estratégias deste tipo.

A ESCOLA HERDOU AS CARACTERÍSTICAS DO ESTADO MODERNO E TORNOU-AS NATURAIS

Por que é que o Grupo de Trabalho de Promoção Pedagógica passou a chamar-se MEM?

Para melhorarmos as nossas práticas e para obtermos facilidades nas viagens que fazíamos aos congressos, por exemplo.
Mas há uma mudança que importa reter na história do nosso trabalho, que é a tomada de poder pelos partidos socialistas. Quando o PS francês chegou ao poder, François Mitterrand deu muito dinheiro às organizações de professores para estimularem a inovação nas escolas e formarem professores. O movimento francês da Escola Moderna parece ter ficado deslumbrado com as facilidades e, a certa altura, obviamente, estava a servir as políticas do governo, ocupando alguns lugares de assessoria ou de direção.
A seguir, veio o governo socialista espanhol e fez uma coisa muito parecida, mas mais estruturada. Reuniu todos os grupos pedagógicos já existentes (alguns de herança Freinet), passou a designá-los oficialmente por “grupos de renovação pedagógica” e atribui-lhes verbas. Portanto, esses vários grupos, alguns bem fortes, perderam a sua identidade, porque cada um passou a ser conhecido uniformemente por “grupo de renovação pedagógica”.

Costuma ser “dividir para reinar”, mas nesse caso foi agrupar para anular…

O Estado, quando se apropria, não divide, unifica, uniformiza. Como com os grupos homogéneos de alunos, que os professores herdaram e acham bem. Tudo igual é que é bom. Nada de heterogéneo, antes orientações unitárias. O Michel Foucault descreveu tudo isso muito bem; às vezes assusta, mas vale a pena lê-lo. Quer dizer, no fundo, a Escola herdou as características do Estado moderno e tornou-as naturais – este mito que os professores acalentam acerca da bondade dos grupos homogéneos. Como se fosse uma coisa natural, quando é a maior falta de respeito pela individualidade, pela identidade do outro.

E em Portugal, o que aconteceu?

Quando se aproximavam as eleições, em 1995, tivemos um congresso em Tomar e eu chamei a atenção para as consequências da governação socialista em França e Espanha para as organizações dos professores. Era previsível que o Partido Socialista ganhasse essas eleições e provável que os nossos amigos que viessem a estar no governo convidassem alguns de nós para colaborar nas políticas de educação. Impunha-se termos os olhos abertos, porque trabalhar há tantos anos, pensando que se estão a criar alternativas democráticas de educação, e de repente ir servir de animador pedagógico para as políticas neoliberais da União Europeia…
Seguiu-se, como prevíamos, um tempo de elevadas tensões, de discordâncias frontais, de muito trabalho e de profunda aprendizagem política e pedagógica, mas pudemos garantir a nossa autonomia, enquanto aprofundávamos a função de cidadania do MEM.
Digamos que ao longo dos anos 80/90 a nossa tomada de consciência se alargou. E como os franceses achavam que éramos demasiado ortodoxos na defesa dos valores democráticos no quotidiano das escolas, o conflito tornou-se mais evidente e saímos da Federação Internacional dos Movimentos de Escola Moderna. Entretanto, já tínhamos avançado claramente para o estudo mais aprofundado da perspetiva social e historicocultural, pós-vygotskyana, que começava a tomar corpo nas nossas práticas de rutura com o nosso próprio passado.

O que é que essa perspetiva acrescentava à de Freinet? Ou em que divergia?

Aquilo a que se chama “pedagogia Freinet” tem duas vertentes. Uma, que me parece excelente, é o facto de ele ter conseguido desencadear um movimento pedagógico.
Veja-se que “movimento” é uma coisa de natureza política, e acrescentar-lhe “pedagógico” é um atrevimento feliz – é uma maneira de assumir a dimensão política da pedagogia, da escolarização e do trabalho na escola. E, sobretudo, ter conseguido mobilizar tantos professores do ensino primário. Só depois é que se juntaram os de outros graus de ensino.
Mas Freinet ficou muito vinculado a uma espécie de pedocentrismo herdado da Escola Nova (o aluno como centro), quando tinha quase tudo para saltar para uma posição sociocêntrica – o grupo como o centro do trabalho, a dimensão cooperativa e colaborante da inteligência humana, que não é individual, mas social. E há aqui um equívoco: Freinet era um cooperativista assumido, criou ou ajudou a criar uma meia centena de cooperativas agrícolas. E o que transpôs para a sala de aula, e parecia muito interessante, foi os alunos organizarem-se como as cooperativas agrícolas: cotizavam-se, tinham um fundo, compravam determinadas coisas, podiam melhorar as condições materiais de trabalho, e ao mesmo tempo partilhavam as contas e as coisas que produziam e tinham uma assembleia cooperativa para tomada de decisões.
Ao tempo, isto era deslumbrante, uma estrutura de self government, à maneira dos americanos, dos ingleses e do António Sérgio, com o município escolar.

E qual era o equívoco?

Era preciso dar um salto muito maior e fazer uma rutura mais avançada, para a corresponsabilidade no plano cultural. Como o princípio que Kurt Lewin veio enunciar quanto à cooperação, no âmbito da psicologia social: para eu atingir o meu objetivo, é preciso que cada um dos outros o tenha atingido também. Então, se o objetivo é aprender o currículo, todos são responsáveis por que cada um o aprenda; se um fica para trás, tem de ser recuperado pelos outros. Aqui, o corte parece evidente, é a deslocação da centração no aluno para a centração nos objetivos de aprendizagem do grupo, da turma, como equipa intelectual que se inicia nas formas de organização e construção da ciência e da cultura como forma de aprendizagem e de desenvolvimento humano.

Daí o afastamento, digamos assim, do MEM?

Nós estimamos muito o que Freinet fez, mas ele fê-lo com referência aos valores individuais do tempo dele, de alguém que nasceu no século XIX.
No MEM, quando gerimos em cooperação com os alunos toda a atividade escolar, desde a avaliação ao planeamento, é porque toda a aprendizagem decorre do trabalho contratualizado num grupo social autêntico.
Por isso, quando fazemos planos de forma comparticipada é para gerir o currículo que o Estado nos obrigou a aprender; é para aprender por projetos, porque todo o trabalho humano é idealizado antes de processado.
Todo o trabalho humano se guia por uma ideia, um oleiro tem de antecipar uma ideia, se quer ter um cântaro ou um alguidar; se antes não o tiver na cabeça, não o terá depois no barro. Quando fazemos projetos é porque todo o trabalho humano – e o trabalho intelectual por maioria de razão – é guiado por projetos. Mais: como o trabalho intelectual tem um instrumento mediador poderosíssimo, que é a escrita, ele tem de ser passado a escrito, tem de se concretizar através da escrita. É isso a que as escolas chamam “projeto”: escrever o caminho que se vai fazer e depois monitorar, ver se se faz ou não. Então, o trabalho nas escolas tem de ser por projetos. Não porque é moda, mas porque é a natureza do trabalho humano!
Portanto, fomos pensando cada vez mais no significado político e social do trabalho que realizamos com as crianças e do papel mediador dos professores. E fomo-nos afastando do tempo da vida de Freinet.


E como é que os membros do MEM que partilham essa reflexão se enquadram no dia a dia das escolas, onde a maioria dos colegas, eventualmente, não terá esse tipo de preocupações, nem de práticas?

Aí há dificuldades. Porque os professores, normalmente, não gostam que os colegas se distingam deles profissionalmente.
Também porque pode haver falta de preparação democrática dos professores e pela muita competição que há no interior da escola e que não é visível, o que é dramático. É como se não houvesse, mas assim, oculta, impõem-se tanto que paralisa a transformação da escola.
E portanto, muitas vezes, há esta dificuldade de alguns colegas não gostarem da afirmação profissional dos professores da Escola Moderna. Por isso, o que cuidamos entre nós é de não sermos ostensivos; ir trabalhando discretamente com os alunos e compreender que os outros não têm de trabalhar como nós. A mudança tem de emergir como um desejo ou uma afirmação de cidadania.

Ia perguntar-lhe se têm espírito evangelizador… Mas gostavam que as vossas ideias se propagassem?

O mais consolador para nós é haver já um bom número de professores que, nas condições mais adversas da escola, como são as de hoje, realizem qualquer coisa que represente uma rutura efetiva dentro da própria escola, porque isso significa que é possível outra Escola. E está demonstrado que é. Se alguns o fizeram nas piores condições, é porque é possível.
Agora, imaginar que a escola portuguesa fosse toda Escola Moderna, não. Nós – cada um de nós – não estamos cá para salvar o mundo. Mas para firmar os valores democráticos e trabalhar na transformação da escola como quem trabalha na transformação da política, do ... mundo que nos coube viver. Aguardamos outras organizações pedagógicas para um diálogo criador em devir.

De qualquer forma deve haver uma motivação, uma ideia que ilumine…

Não uma ideia única, mas várias ideias fortes em diálogo. Se houver ideias fortes, demonstráveis, nisso eu acredito com [Jürgen] Habermas – num bom diálogo democrático, com uma boa argumentação. Se as pessoas forem sérias e honestas, pode-se apurar um melhor argumento que nos guie a ação. Mas isso passa por muitas coisas antes: seriedade, honestidade de propósitos, não estarmos para defender os interesses da alta finança ou as políticas neoconservadoras da nova direita portuguesa.

O MEM realizou agora (julho) o 34º congresso. Quando se faz este tipo de celebração, entre outras coisas, afinam-se estratégias: de penetração, de crescimento, de alargamento de influência…

De influência, sim. Não podemos dizer que não queremos influenciar os outros, porque seria mentir. Seria não acreditarmos no que estamos a fazer! Mas temos uma ideia da complexidade da vida social e dos caminhos da política. Por exemplo, nunca aceitamos confundir o papel da vida sindical com a ação pedagógica, para que a nenhum de nós passe pela cabeça que, por estar no MEM, está dispensado de estar no seu sindicato.
Seria não compreender algumas coisas essenciais. Porque há muito trabalho político a realizar, com forças diversas, com empenhamentos e agendas diferentes, para que os professores conquistem um estatuto que têm por realizar.

Que está cada vez mais proletarizado…

E os professores com grande culpa no cartório, porque muitos deles nem sequer querem saber o que é ser proletário. Esta é uma infelicidade grande, porque os professores não se habituaram a discutir o seu próprio poder, que é desmesurado e perigoso.
Com ele podiam fazer coisas imensas a favor deles, mas na condição de saberem que também o estão a fazer a favor dos outros. Mas falta reflexão crítica entre os professores, é algo que nunca se chegou a ganhar.

Nem com os Grupos de Estudo? Com o próprio MEM? As Ciências da Educação, os sindicatos…

Estou a falar do universo dos professores, sobretudo dos que não se integram em organizações.
Os sindicatos tinham muito que fazer, e obtiveram muitas vitórias. Mais do que esperavam à partida, mas os ministros também eram professores e, por isso, grande parte das conquistas também eram deles. Se tivesse havido alguma função clarificadora, algum trabalho de análise crítica, mais luta pelas condições de trabalho nas escolas ou pelo desenvolvimento da profissionalidade...
O que ficou por fazer no interior da vida sindical foi uma forte reflexão política, não assente nos partidos, mas no poder e na autonomia da profissão. Mas pronto, o tempo é o tempo, e chegados ao século XXI é preciso vir a OCDE, qual mão estendida da América, explicar aos professores que eles são indispensáveis e têm hoje um poder crucial, com o trabalho a incorporar cada vez mais conhecimento que só se aprende na escola.

Curiosamente, a PÁGINA também está a entrevistar agora (julho) o doutor Paulo Santiago…

Ah! Aquele perito português da OCDE? Um homem interessante e que tem algumas opiniões surpreendentes, algumas mais avançadas do que as de muitos políticos portugueses. [risos]
Ele é perito da OCDE, e a OCDE é o que ficou do Plano Marshall. Foi o que os Estados Unidos deixaram a marcar terreno. Todos os estudos que produzem, no entanto, são sempre na perspetiva de avançar, mas nunca mais do que para uma sociedade neoliberal, quando muito social-democrata...

E sempre com um padrão que não se sabe muito bem de onde vem, que não é muito explícito…

Sim, mas sabemos que têm um conjunto de ambições, de inteligência, que talvez sejam úteis para países ainda muito atrasados. Eles pensam que não se pode perder o potencial humano – que são todas as pessoas do território, e não só as que têm boas notas.
Foi por isso que, aquando do Sputnik, Kennedy investiu prioritariamente na educação como se tivesse pensado:
Nós temos negros, portugueses, hispânicos, tantos que ...

Depois de uma certa acalmia, pelo menos aparente, o mal-estar docente parece estar de regresso. Quais lhe parecem ser as questões mais prementes?

Para mim, a mais premente é a ideia de que os professores têm de tomar consciência da sua própria força. É crucial para bem dos cidadãos que estão a formar, mas também para se valorizarem a si mesmos e fazerem frente ao poder que não os respeita. Sobretudo quando o poder é ignorante, como acontece agora.
O Ministério da Educação e Ciência é de uma ignorância que faz medo: os avanços e recuos, o desnorte na organização das escolas, nos concursos, nas metas ideologicamente hipermarcadas… E de um revivalismo inquietante – quando nos Estados Unidos se utilizam standards, aqui estabelecem-se metas por objetivos, com taxonomias inspiradas nas de [Benjamin] Bloom, da pedagogia por objetivos, de má memória… Dizem que os professores têm liberdade metodológica, mas contam com os diretores dos agrupamentos disponíveis para uniformizarem o que os professores hão de fazer…
Enquanto tivermos uma fresta para respirar liberdade, temos de usá-la na escola. E temos de ousar fazer diferente.
Porque o que temos vindo a fazer é muito parecido com o que Nuno Crato quer que se faça agora – podem os professores não gostar, mas é absolutamente verdade.
Ele e os seus apoiantes nunca perceberam que as práticas educativas nas escolas de hoje são, genericamente, as mesmas de antigamente. Só os documentos curriculares foram mudando, sem terem influência no trabalho dos professores.
Há o perigo de no interior das escolas não se perceber isso; ou de parecer que se está demasiado perto do ministro e o ministro demasiado perto dos professores.
Só quando ele começou a enganar-se sistematicamente – nos aspetos da organização, nos horários-zero, nessas coisas que ele não sabe fazer – e começou a impor um certo sofrimento aos professores é que eles começaram a perceber: afinal, o Crato não é tão parecido comigo.
Mas no plano de como quer o ensino da Matemática ou do Português, o ministro Crato é muito parecido com muitos professores. temos subestimado. Se trouxermos mais pessoas destas para a escola, se estudarem mais, vamos ter mais cientistas.
E vamos nós conquistar o espaço, em vez de ser a União Soviética. Era a ideia do potencial humano! O que foi preciso foi ter a ousadia para a pensar, e muito dinheiro para investir.
São ideias como estas que a OCDE tem. Quando fala do capital humano é porque chega à conclusão de que para se enriquecer mais depressa são precisos trabalhadores intelectualmente mais bem preparados para o uso de equipamentos cada vez mais sofisticados. E como o trabalho humano cada vez tem de integrar mais conhecimento, que só se pode adquirir na escola, os grandes capitalistas precisam cada vez de mais pessoas na escola, mesmo que depois ponham de lado os que lhe não servem.

O MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO É DE UMA IGNORÂNCIA QUE FAZ MEDO

O que faz falta para dar a volta a isto?

Primeiro que tudo, a Escola não pode ser uma caixa fechada, fora do mundo. Muito menos uma caixa fechada fora da cultura. Continuando a haver escolas, terão de ser lugares onde as pessoas se iniciam na cultura como um investigador se inicia num laboratório. A Escola tem de ser um lugar de iniciação ao mundo da cultura, à vida social, e não um simulacro. Neste aspeto, está quase tudo por fazer, mas não é nada inalcançável: é só não escolarizar, não passar as coisas pelas velhas didáticas; é pôr a cultura nas mãos das crianças, compartilhando-a com os adultos, e pormo-nos a escrever, a ler, a aprender como se faz; e não gastar tempo sem fim e rios de dinheiro com uma escola que não serve a cultura nem o desenvolvimento humano.
E depois, neste mundo que se foi tornando perigoso para a inteligência humana, de tão manipulado, quem é que ensina: são os professores ou são os manuais e os materiais escolares? Esses materiais feitos exclusivamente para a Escola, cada vez mais caros, e os manuais de todos os feitios foram a pior coisa que nos aconteceu, porque nos afasta do conhecimento autêntico, das suas fontes e sobretudo do caminho para o alcançar. Quer dizer, dos processos de apropriação da herança cultural e da sua produção atualizada.

Pode estar aí uma desvalorização da relação pedagógica, distanciando cada vez mais professores e alunos? Há pouco questionava o que é que os professores ensinam hoje, mas eles quase já não precisam de ensinar…

Sim… Se o professor trabalhar com os alunos na construção dos instrumentos e dos produtos culturais, está mais perto deles, é mais respeitável. A relação torna-se mais solidária e pertinente.

… Porque, no limite, quase é possível o professor não dar aulas: manual, quadro interativo, CD, caderno de atividades, fichas… Quase lhe sobra ficar à porta, a vigiar os meninos.

Bem, supostamente… Mas se a relação mínima não se estabelecer, o professor vai ser vítima dos alunos, que acabarão por destruí-lo. Quando um professor se anula, se transforma numa sombra, os alunos ficam cruéis e destruidores. É o ódio, como em qualquer animal, e nós somos animais. Esquecê-lo é perigoso, e nas escolas esquece-se muitas vezes que somos animais – nós e os meninos. Se as coisas correm mal, há um retrocesso, uma regressão emocional brutal, uma reação selvagem, e tanto o professor como os alunos se podem tornar selvagens.

Já o sugeriu, os professores não têm consciência do poder da profissão. Ser professor hoje é o quê? E estou a lembrar-me dos milhares de jovens – e de menos jovens, que se sentem traídos pelo sistema – que vivem angustiados, sem saber o que lhes vai acontecer dentro de dias, com o próximo ano letivo à porta.

São muitas coisas complexas ao mesmo tempo. Há um momento de desespero resultante da relação de um trabalhador com um patrão traiçoeiro, porque é um patrão que gere o Estado por um momento mais ou menos longo, mas sempre passageiro; um patrão que, ainda por cima, me paga com o dinheiro do meu bolso. E há toda a história da função pública, que garantiu aos funcionários um lugar de algum prestígio, mas também de alguma ocultação. Depois há ilusões que todos nós tínhamos e que hoje é difícil manter, como a sensação de que um funcionário público não deixaria de ter emprego. Isto acrescido ao facto de que, em Portugal, os professores tiveram um tempo em que ganharam razoavelmente bem – mesmo quando o escamoteávamos.
Hoje, os professores sentem que esses “mitos” estão a desaparecer e ficam mais frágeis no momento em que as políticas obsoletas de direita cada vez vigiam mais o resultado do seu trabalho, selecionando-os cada vez mais, tal como a escola seleciona os seus próprios alunos.
Por outro lado, fabricámos professores sem conta, e o que aconteceu foi isto: na Europa, há dezenas de anos que fazem falta professores; em Portugal há professores a mais. E dizemos nós que os professores são muito respeitados e acarinhados na Finlândia, na Noruega…

Se fazem falta, têm de ser bem tratados.

São preciosos! Porque faltam: em França, em Inglaterra, em toda a Europa.
E o que eu estava a dizer significa que o estatuto do professor em Portugal, ao contrário do que acontece na Europa, não só se proletarizou, como essa proletarização é mais dura. Porque se há professores a mais, os patrões e o ministério podem selecioná-los e sujeitá-los às regras mais desumanizantes do mercado de trabalho.

Como é que se pode contrariar isso?

Eu, verdadeiramente, não sei. Mas não será com os remédios para os erros de estratégia e de cálculo do Nuno Crato. O que mais desespera é termos de sofrer agora, após alguns pequenos avanços, o violento retrocesso às políticas conservadoras anglo-saxónicas implementadas sem êxito nos anos 80. E o que mais repugna é o espectáculo da ignorância e o gáudio do populismo.
Teremos de nos mobilizar para contrariar esta contrarreforma ideológica, avançando com outras visões e práticas disponíveis.
O que mais repugna é o espetáculo da ignorância e o gáudio do populismo

António Baldaia


  
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