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A utopia tem uma função crítica; não é um objetivo, é um processo

série II nº 200 primavera 2013

Fátima Vieira é presidente da Utopian Studies Society/Europe desde 2006. Professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto desde 1986, doutorou-se com dissertação sobre a obra de William Morris e a tradição de literatura utópica inglesa (1998). Especializada em estudos sobre a utopia, coordena projetos de investigação nessa área, dirige a Nova Biblioteca das Utopias (Afrontamento) e duas publicações eletrónicas.
Como docente, leciona essencialmente na área da Cultura Inglesa. É membro do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e do Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies, integrando, desde a fundação, a equipa que se dedica à tradução e ao estudo da obra de Shakespeare. Em 2012, o projeto STEPS-UP (Support for Teaching English in Primary Schools-University of Porto), de que é coordenadora administrativa, foi considerado pelo Programa de Aprendizagem ao Longo da Vida (PROALV) o melhor projeto português no ensino de línguas estrangeiras.

Para que serve a utopia? Tem um sentido utilitário?

Tem, e o Eduardo Galeano explica muito bem no “Direito ao Delírio”. A utopia é algo que colocamos no horizonte – nós damos dois passos e a utopia dá dez, damos outros dois passos e ela dá outros dez, foge… Eu diria que a utopia serve para isso, para nos fazer caminhar. E acrescentaria: com sentido. O que é importante nesta visão utópica é que toda a utopia confere um sentido a esta caminhada. Costumo dar um exemplo para se compreender a diferença entre a visão utópica e a visão reformadora: imaginemos que estamos num cruzamento, que temos quatro estradas possíveis, não sabemos qual delas seguir tomar e todas estão esburacadas… O que é que eu faço, com o meu ímpeto reformador? Vou tapar os buracos de todas as estradas e fico toda contente, porque, de certa forma, estabilizo algo que está destabilizado. Mas no final, gastei tanta energia, tanto tempo, e ainda estou no mesmo cruzamento… Na utopia, o que é que fazemos? Primeiro, definimos a visão: que sociedade quero ter? que escola quero ter? o que quero ser?... Depois de termos definido essa visão, então sim, escolhemos o caminho e tapamos os buracos. Não vale a pena gastar energias a tapar os buracos dos outros caminhos.

É definir um horizonte possível e caminhar em direção a esse horizonte…

Exatamente, é definir um horizonte… Mas é importante que essa visão utópica tenha grande ambição, deve ter até uma ambição desmesurada, porque é uma ambição que vai ser sempre reformulada. Hoje, eu defino um objetivo que daqui a dois ou três anos vou reformular, de certeza, e é saudável que o faça, porque eu serei uma pessoa diferente e as circunstâncias também serão diferentes. Recorrendo à ideia do Galeano, nós andamos dois passos e a utopia anda dez… Ou seja, por um lado, que essa visão confira sentido à minha caminhada, mas, por outro lado, que seja ambiciosa. É muito importante que esta utopia seja essencialmente dinâmica, que não tenha medo de errar e que admita o erro como uma parte do processo. Portanto, hoje, a utopia não é, de forma alguma, um objetivo, é um processo.

Pode falar-se de vontade utópica? Ou seja, a utopia resulta de uma elaboração ou surge como um flash, digamos assim?

Espero que não. Eu tento explicar a utilidade da cena utópica, muitas vezes também em ações junto dos jovens e nas escolas. O que eu tento fazer é aproximar o raciocínio utópico de algo que eles conheçam, e penso que uma comparação que funciona muito bem é com o pensamento crítico. No pensamento crítico, analiso as diferentes opções e prevejo os resultados das minhas ações. E, de certa forma, tal como no pensamento crítico, quando as minhas previsões são baseadas num raciocínio bem fundamentado, elas assumem um estatuto de verdade, não é?
Portanto, a utopia não é produto de uma ideia de génio, embora seja interessante que as visões utópicas, aquelas verdadeiramente transformadoras, têm sempre algo de iluminado. Outra comparação que costumo fazer tem a ver com «Breves Notas Sobre a Ciência», do Gonçalo M. Tavares. O livro não tem nada a ver com a utopia, fala sobre os avanços da ciência, mas quando li, pensei: a utopia é exatamente isto.

Observar pelo canto do olho é, em ciência, começar a elaborar a hipótese. O que é observado pelo centro do olho é o evidente, o óbvio, aquilo que é partilhado pela multidão. Na ciência, como no mundo das invenções, observar pelo canto do olho é ver o pormenor diferente. Aquilo que é o começo de qualquer coisa de significativo. Observar a realidade pelo canto do olho, isto é, pensar ligeiramente ao lado, a isto chama-se criatividade.
Daqui saíram todas as teorias científicas importantes. Portanto, eu diria que, por um lado, a utopia parte de um conhecimento muito concreto da realidade, daquilo que está mal e daquilo que temos de mudar, mas, por outro lado, existe esse golpe de génio, essa capacidade de ver pelo canto do olho. Galeano diz que “há tantas realidades aí a querer nascer”… É ter a capacidade de reconhecer essas realidades que estão a querer nascer.
O que obriga a alguma agilidade, alguma perspicácia, alguma criatividade e imaginação.

Quando se houve ou lê o Galeano, e também o Gonçalo, pode ficar-se com uma ideia de simplicidade...

Sim, sim.

Mas, obviamente, há muita reflexão por trás…

Claro que sim. Parte sempre de uma observação da realidade, mas, sobretudo, parte – e isto é muito importante – da noção das possibilidades. Modernamente, na área dos estudos da utopia, já não se fala da possibilidade ou do caminho. Eu dei o exemplo do caminho, mas até deveria ter reformulado, deveria dizer que é um caminho com muitas ramificações e interceções… E o que nos interessa é a direção que temos de seguir. Temos de ter a perceção de quais são as realidades, de que fala o Galeano, e da direção em que nos podem levar. Desde que seja na direção certa… Não quero ir por ali? Mas então por onde quero ir? O que nos interessa é exatamente isso.

O que pressupõe um processo de rutura com…

A utopia é sempre rutura com o presente. Nós costumamos falar em discurso ideológico, que é o discurso dominante, e discurso subversivo, que é o discurso utópico. A utopia tenta sempre transformar e, ao transformar, tenta sempre romper com o presente. E é importante que se mantenha sempre esta ideia de rutura com o presente, porque a partir do momento em que a utopia se transforma em ideologia, deixa de ser utópica. Daí o interesse, até, em que as utopias não sejam verdadeiramente concretizadas, na medida em que sejam constantemente reformuladas.
Porque a partir do momento em que a utopia é realizada, torna-se estática. E a utopia é exatamente ao contrário.

Mas ideologia nunca pode ser, se não utópica, pelo menos dinâmica…

Normalmente, a ideologia facilita…

... ou é cristalizada?

É cristalizada. A ideologia legitima. Quem faz esta comparação é o Paul Ricoeur, e explica que a utopia é sempre subversiva contra o discurso ideológico, que é dominante.
Portanto, a ideologia legitima, a utopia subverte… E tem esta função dinâmica de transformar a realidade.

E avança…

E avança.

Por causa do avança, há alguma proximidade à “Pedra Filosofal”?

A “Pedra Filosofal” tem a ver sobretudo com a apologia do sonho, não é? E também com o direito ao delírio, do Galeano. A ideia do que vale realmente a pena… Que precisamos de sonhar e de filosofar. Porque a utopia assenta sobretudo numa atitude reflexiva e dinâmica, nunca estática, e pressupõe sempre uma grande atenção à realidade, ao presente e àquilo em que podemos intervir.

Dito assim, o pensamento utópico deveria surgir naturalmente em cada um de nós… Somos nós que o “abafamos”?

Eu acho que nós estamos formatados, ou cada vez mais formatados, para não pensar que as coisas poderiam ser diferentes. Quando falo aos meus alunos na “Utopia” de Thomas More, por exemplo, costumo dizer que ela só podia nascer no Renascimento. Há exemplos de pensamento utópico anteriores, mas não de literatura utópica. Temos, por exemplo, na “República”, de Platão, quando se começa a discutir a possibilidade de a cidade ser organizada de forma diferente, ou ainda em “A Cidade de Deus”, de Santo Agostinho, mas aí, o que temos não é uma utopia, na medida em que a sociedade ideal só é alcançada depois da morte.

E porque é que a “Utopia” só podia ter surgido no Renascimento?

Porque só podia ter nascido no contexto do humanismo, do pensamento renascentista. E da ideia de que o ser humano tem a capacidade de mudar a sociedade. É esta a grande descoberta renascentista, e a “Utopia” do Thomas More é testemunha disso: é que nós temos alternativas.

Já agora, é possível fazer uma sinopse da “Utopia” do Thomas More, sobretudo para quem, como eu, não a leu? Até pela particularidade de Rafael Hitlodeu ser…

Ser português? [sorrisos] É muito engraçado, porque eu estudo a “Utopia”, enquanto professora, há 27 anos, e durante muito tempo sentia-me muito orgulhosa pelo facto de Rafael Hitlodeu ser português – andava toda contente, a pensar que era uma homenagem aos descobrimentos… [sorrisos] Mas eu sabia que o sobrenome é um neologismo de raiz etimológica grega… E então, por um lado, Rafael significa mensageiro de Deus, portador da verdade divina, mas depois há a outra parte, que contradiz essa mensagem, que é o facto de Hitlodeu significar perito em bagatelas. Portanto, é um aviso de Thomas More – como quem diz, não acreditem em tudo o que ele diz – muito importante para a compreensão da mensagem da “Utopia”.

E qual é, então, o sentido de “Utopia”?

Thomas More, no livro primeiro, descreve-nos a Inglaterra e a Europa do século XVI, identificando todos os problemas, e depois, no livro segundo, através de Rafael Hitlodeu, descreve-nos a antítese dessa sociedade. Ele não está a escrever o ideal, está apenas a enunciar esta ideia de que é possível uma organização diferente. O grande problema é que temos quatro séculos de interpretações muito erradas de “Utopia”, porque muita gente pensa que Thomas More subscreveria aquilo que Rafael Hitlodeu contou…

E que seria a sociedade ideal…

Isso não, de forma alguma. Ele deixou vários indícios… Por exemplo, numa carta precatória a Pedro Egídio, publicada na segunda edição de “Utopia” (Paris, 1518), ele chama a atenção para os neologismos. E, realmente, Utopia é um não-lugar; o rio chama-se Anidro, que significa rio sem água; a cidade chama-se Amaurota, cidade sem habitantes, e o príncipe Adamus, príncipe sem súbditos… Portanto, por um lado, está a dizer-nos que é possível pensar em alternativas, mas, por outro, tira-nos o tapete, porque nós vamos embalados a pensar que aquilo é mesmo verdade, quando não passa de uma construção teórica… Mas é isto que nós temos de fazer, um exercício reflexivo sobre possibilidades. Eu diria que o sentido, ou a mensagem, de “Utopia” continua muito atual, mas foi deturpado ao longo do tempo, sobretudo no século XVII, quando as utopias se transformam em projetos políticos, e no século XIX, quando “Utopia” passa a ser confundida também com um projeto político – vou já falar disso. Hoje nós falamos de “Utopia” como alternativas possíveis, e não como uma alternativa. Eu costumo dizer que Thomas More escreveu o livro primeiro, depois escreveu o livro segundo, que é a antítese, e deixou ao leitor a missão de escrever o livro terceiro. Portanto, nós temos de procurar o equilíbrio.

Há pouco ia referir-se ao século XIX…

Queria falar na diferença entre utopia e utopias e, sobretudo, entre ideal e ideais. O pensamento utópico é um ideal – temos uma visão utópica e, depois, temos os ideais, a forma como vamos tentando concretizar esse ideal. Esses ideais muitas vezes é que morrem, é que são caducos. Há, no entanto, uma diferença muito grande entre utopia política, que é a que encontramos no século XIX, sobretudo no contexto de Inglaterra, e a utopia filosófica, que é a que eu acho que tem de ser validada e revalidada para os nossos tempos. Nós precisamos da utopia filosófica no sentido de precisarmos de uma utopia reflexiva, que nos faça pensar e nos leve a imaginar as alternativas possíveis, sempre com esta ênfase posta na pluralidade.

Quando refere “utopia política” é porque tem um sentido ideológico?

Não, é porque, normalmente, passa por um projeto político que acaba por se extinguir. Muitas vezes, quando é concretizada, transforma-se em ideologia.

Quando os movimentos e organizações informais se transformam em partidos, por exemplo…

Exatamente, tem a ver com isso. É a concretização, com todos os problemas inerentes. Transforma-se num plano de ação. Os ingleses muitas vezes dizem utopia is not a blueprint. A utopia não é um plano de ação, é algo de inspirador. Ou deve ser. Pelo menos é assim que modernamente entendemos. É o “princípio esperança”, como lhe chama Ernst Bloch. Utopia é o princípio de esperança, e é mais a nível de atitude e de estrutura mental que ela nos interessa.

Falou do Renascimento, dos séculos XVII e XIX… Há épocas, ou circunstâncias, mais favoráveis à emergência de utopias?

Todas as épocas de crise, todas. Nós só pensamos num mundo de abundância se passarmos fome, não é? Se vivermos em paz, não andamos a sonhar com um mundo de paz… Nós costumamos dizer que a utopia tem três funções. Primeiro, tem a função crítica: nós olhamos para a sociedade e tentamos ver o que é possível transformar e aquilo que rejeitamos. Depois tem a sua função compensatória: eu vou sonhar com aquilo que não tenho. E depois tem a função catalisadora: a capacidade do raciocínio utópico exposto para atrair a atenção do leitor, ou de quem o escuta, e de mobilizar para a ação. Por isso é que a nossa visão tem de ser ambiciosa. E passa por aquilo que chamamos “educação do desejo”. Quem define a utopia como o desejo, e a educação do desejo, é William Morris, no século XIX. E chamo a importância para o facto de nós termos o direito de desejar – não nos deve bastar pensar que temos o direito à sobrevivência, ter um trabalho, ter uma família, ir para casa… Temos de nos afirmar como seres humanos. E como é que afirmamos a nossa humanidade? No envolvimento com a comunidade, na forma como contribuímos para que ela se desenvolva, deixando também a nossa marca e o nosso contributo.

O que fundamenta a importância e a necessidade de uma cidadania ativa.

A utopia é exatamente isso, como parte daquela questão inicial: que sociedade quero? E eu diria, sobretudo neste contexto de crise, que o que eu quero é uma sociedade justa, uma sociedade inclusiva, que caminhe para a pluralidade e a diferença, uma sociedade onde todos tenham trabalho e onde as pessoas se sintam realizadas.
E hoje, aquilo que é dito em relação à crise, é que a sociedade não vai mudar e as coisas não vão ser resolvidas por decreto. Isto implica uma revolução intelectual, e não se pode decretar que as pessoas passem a pensar de forma diferente! A revolução intelectual não se faz por decreto – passa pela transformação das próprias pessoas.
Somos nós, enquanto sujeitos participantes, que vamos transformar a sociedade.

E como é que isso se alcança?

Claro que, por um lado, temos princípios orientadores. Mas depois, nós que estamos na área do estudo sobre a utopia, também temos de pensar quais são as soluções práticas. E as soluções práticas passam todas pelo princípio da cooperação, mas, sobretudo, pela ideia de que as lógicas neoliberais têm de ser transformadas por uma sociedade que assente na democracia participativa. A vários níveis.
E já temos passos dados nesse sentido. Por exemplo, a ideia do orçamento participativo, que começou em Porto Alegre há 20 anos, já existe em Cascais, e penso que também em Matosinhos… E é realmente muito importante, que os munícipes perguntem aos cidadãos o que querem fazer com o orçamento, ou seja, que as grandes apostas em equipamentos sociais, em subsídios, etc., assentem também na vontade dos cidadãos. Mas esta ideia de participação e de envolvimento com a comunidade, de cidadania, não surge de um momento para o outro. Portanto, o que temos de fazer é educar cidadãos para a cidadania.

É nessa perspetiva que tem trabalhado com as escolas?
A investigar ou a desenvolver projetos?

Não, tenho ido às escolas numa perspetiva de divulgação do pensamento utópico, e tentativa de despertar esse pensamento crítico, que eu chamaria pensamento utópico. O que tenho tentado fazer com os estudantes, desde a primária até aos estudos avançados para seniores, é despertar a ideia de que temos o direito de desejar, de que temos de ser criativos e de que temos de encontrar soluções...

Pan-Utopia 2100

“Chama-se Pan-Utopia porque eu apresentei o projeto em dez países, para pôr os nossos alunos em contacto com outros. Do Brasil (e também dos Estados Unidos), houve um protesto muito claro: recuso-me a participar num projeto chamado Eurotopia 2100! Para que é que eu vou pensar como é que vai ser a Europa se estou no Brasil? Então transformámos o projeto em Pan-Utopia, utopia total. Por outro lado, também ocorreu uma mudança, que tem a ver com a alteração do currículo. Deixou de haver Área de Projeto, onde esta atividade estava a ser desenvolvida, e nós, de certa forma, tivemos de limitar. Continuamos a lançar o mesmo repto, imaginar como vai ser o mundo em 2100, mas entretanto fizemos um protocolo com a Quercus e dirigimo-nos um pouco para a ideia da sustentabilidade, não apenas ambiental, mas sobretudo económica e social. Mas este ano, em que estamos a trabalhar a água, de que forma podemos aproveitar os nossos recursos também é uma questão muito importante. O projeto desenvolve-se durante um ano, e não vai ser nada uniformizado, porque entretanto também nos envolvemos com Serralves. Eles têm um projeto que se chama Lugares Imaginários - Utopia de Transição, eu fui lá falar aos professores e eles gostaram da ideia, acharam que para os alunos poderem responder ao desfio de Serralves – pintar um lençol gigante – era importante que soubessem o que é isto da utopia, e por isso é que eu tenho estado a visitar muitas escolas. Portanto, este ano vamos ter uma grande variedade de públicos, porque são muitas as escolas que estão a participar com Serralves.”

EUROTOPIA 2100

“Foi um projeto internacional que terminou em 2009/2010 e que envolveu 4.000 estudantes de todos os níveis do ensino, incluindo o profissional. Aquilo que os desafiávamos a fazer era imaginar como seria a Europa em 2100. Mas tinham de fingir que estavam em 2100 e de explicar como é que tinham chegado a esse momento, que percurso tinha sido percorrido, que obstáculos tinham sido vencidos e, sobretudo, que estratégia tinha sido tomada. O que eles tinham de fazer era um site, que estava pronto para ser trabalhado em seis línguas. Aquilo que nós pedíamos era que dissessem, por exemplo, quais seriam as inovações científicas, como seria a Escola do futuro… É muito interessante, porque o que eu tento fazer em todos os projetos é ir pelo menos uma vez às escolas, trabalhar com o grupo de alunos e explicar-lhes para que serve a utopia, que a imaginação deles não pode ter limite e que é preciso que alguém imagine alguma coisa para alguma vez ela vir a acontecer.”

UTOPIA E LITERATURA

Há uma relação, parece-me evidente, entre utopia e texto literário. Tem a ver apenas com a criatividade e a imaginação dos autores, ou há outras razões?

Há uma razão histórica para a utopia se manifestar através da literatura. É porque a literatura, ou o género literário utópico, permite a transmissão de mensagens revolucionárias e subversivas de forma clandestina. Se alguém perguntasse ao Thomas More “mas então queres acabar com a propriedade privada?”, ele diria “eu não, é uma personagem, o Rafael Hitlodeu. Eu não tenho nada a ver com isso”. Depois, se no século XVIII a literatura serve também para explorar a ideia da perfectibilidade humana, o certo é que, sobretudo no século XVIII inglês, ela torna-se essencialmente satírica. Aliás, costumamos dizer que as utopias de hoje são herdeiras da literatura utópica satírica do século XVIII – um bom exemplo são “As Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift, onde as sociedades imaginadas são já, de certa forma, distópicas.
Mas depois, no século XIX, é sobretudo política. E no século XX, o que encontramos é aquilo a que chamamos as distopias canónicas, que são as grandes distopias de referência. Começam com o H.G. Wells, com “A Máquina do Tempo”, “A Guerra dos Mundos”… E depois com o Evgeni Zamiatin (“Nós”), o Aldous Huxley (“Admirável Mundo Novo”) e o George Orwell, com “1984” – estas são as distopias canónicas, que oferecem um retrato do futuro pior. Depois, nos anos ‘60/’70, encontramos um revivalismo da literatura utópica: são as utopias críticas (essencialmente ecologistas e comunistas), que apresentam visões de uma sociedade melhor, ainda assim com alguns defeitos, mas apresentadas de forma positiva, porque se quer uma utopia dinâmica e sempre aperfeiçoada. Depois, há a grande reação dos anos ’80, que também tem uma série de explicações históricas: o governo de Margaret Thatcher, a consolidação da ideologia neoliberal, etc. E aí temos novamente a literatura distópica, que eu diria que perdura até hoje. Mas essas são distopias críticas, na medida em que o fim é um bocadinho deixado em aberto – estou a pensar, por exemplo, em “The Handmaid’s Tale”, da Margaret Atwood; no final, temos a ideia de que vai acontecer alguma coisa boa. Portanto, em relação à distopia, mesmo quando oferece um retrato aterrador do futuro, tem um efeito construtivo, está a dizer “não vão por aí”…

Tenham medo?…

É. Tenham medo! Atenção! O George Orwell escreveu “1984” em ’48, e o que ele queria dizer é: se continuarmos neste caminho, em ‘84 o mundo vai ser assim. Portanto, cabe-nos reconhecer esses sinais e tomar esses avisos utópicos. É muito interessante, entretanto, aquilo que está a acontecer no que eu chamaria margens da literatura utópica. Se tivermos atenção ao que se está a passar na internet, encontramos o que eu costumo chamar hiper-utopias: textos literários que poderiam ser impressos e transformados num volume, mas que aparecem em sites e ligados por hiperlinks. É a literatura de hipertexto, que é muito interessante – o Bergonia, por exemplo, é um site literário com a descrição fantástica de uma comunidade que privilegia a pluralidade, a diferença, etc., e que apresenta a ideia moderna da utopia, não como um caminho, mas como diferentes caminhos. Bergonia é uma sociedade inventada por Joe Cometti, que fica, segundo ele, entre os Açores e os Estados Unidos, e que é formada por diferentes comunidades que apontam no mesmo sentido, embora com diferentes formas de organização: há, por exemplo, uma comunidade claramente patriarcal ao lado de uma claramente matriarcal… Portanto, o que eu queria dizer é que embora abunde a literatura distópica, ela não deve ser entendida como algo oposto à utopia. Para isso temos outro termo, que é anti-utopia.

Utopia, anti-utopia, distopia…

A anti-utopia parte sempre de uma rejeição dos ideais utópicos: deixemo-nos de sonhos e atuemos pragmaticamente. A distopia é uma variação da utopia, escrita no mesmo sentido construtivo – não quer de forma alguma matar o desejo utópico; quer inspirar o verdadeiro desejo utópico, o certo, o justo.

Voltando à literatura: o que recomenda a quem queira hoje entrar no mundo da utopia?

O primeiro que aconselharia talvez fosse mesmo o Thomas More, porque é por aí que começa a literatura utópica. Depois, um marco importantíssimo da literatura utópica, e que tem exatamente a ver com a educação do desejo, é “News From Nowhere”, do William Morris – importantíssimo, porque mostra já a contaminação do pensamento marxista, mas com aquilo que caracteriza Utopias e distopias
Uma das grandes utopias que está hoje em debate tem a ver com esta interrogação: será que temos mesmo de viver num mundo com crescimento? Será que temos de andar sempre a desenvolver?
Temos de resolver o problema das cidades, do nosso envolvimento com as cidades. Em 2050, oitenta por cento da população mundial vai viver nas cidades. Precisamos de arquitetos utópicos, que saibam prever cidades capazes de acolher e sustentar essas pessoas. No âmbito do pensamento utópico, aquilo que dizemos é que temos de manter a consciência da consequência das nossas ações e que temos de começar a relocalizar as nossas preocupações e as nossas ações. Em relação à educação, a escola democrática (com uma democracia participativa) deve ser uma escola de pequena dimensão. Uma escola demasiado grande não conhece os seus alunos. Portanto, os grandes agrupamentos são... Eu diria que são uma distopia. E todas as experiências que têm sido feitas no estrangeiro são em sentido inverso.
Temos escolas cada vez mais autoritárias, com uma forte hierarquia, que comunicam e informam as decisões, em vez de escutarem os agentes. As escolas reproduzem as estruturas, os discursos e as lógicas de organização do poder.
Andar de bicicleta é uma atitude utópica: é saudável, é barato, há sempre onde estacionar. E também o car sharing, a partilha de carro. Já agora, uma ideia que tem tomado alguma expressão em Inglaterra – o cohousing, a comunidade de prédio, a vida em comunidade de vizinhos. Quantas pessoas conhecem os seus vizinhos? Seria importante haver um portal do voluntariado. Há gente que quer fazer voluntariado, mas vai sempre aos mesmos sítios, aos organismos conhecidos. Se houvesse alguma forma de organizarmos a informação sobre pessoas que precisam e pessoas que têm tempo para ajudar... Só aprendemos coisas que sejamos capazes de ligar a conhecimento antigo. Toda a gente que leu o António Damásio sabe que só aprendemos sobre aquilo que já sabemos. Não se compreende como é que ainda continuamos a ensinar à antiga...
Na Coreia do Sul, para promover a igualdade, o governo criou um programa que funciona como um tutor virtual em casa. Os meninos vão para casa e passam mais três ou quatro horas no computador com um tutor virtual. E o objetivo do sistema é que, futuramente, os professores sejam virtuais, uma espécie de hologramas…
O campus universitário é muito interessante para a comunidade de estudantes, mas afasta-os da cidade. No Porto, nós temos uma grande interação com a cidade.
Se calhar, temos é de potencializar ainda mais essa interação. Eu gosto imenso de estar aqui! Morris, que é uma visão de uma sociedade artística e empenhada e que acolhe a diferença. E já agora aconselhava o “1984”, do George Orwell – acho que poderá causar alguma curiosidade nos leitores, até por causa do conceito do big brother, mas o que eu pedia era para lerem até ao fim, porque no final há um apêndice. A maior parte das pessoas pensa que “1984” termina com o Winston Smith vencido, a dizer que também ama o grande irmão, e não repara que há o apêndice, mesmo no final, sobre o newspeak, que é a língua falada naquela sociedade do futuro, que tem pouco vocabulário e que reduz o pensamento.
E nesse apêndice o que diz é que “antigamente falava-se o newspeak”. Então, o discurso é todo feito no passado, como que a dizer que aquele período já passara… Ou seja, o próprio Orwell, em vez de fazer uma descrição do newspeak na atualidade, faz essa descrição como sendo no ano 2000. A mesma coisa, por exemplo, com outro texto lindíssimo: “The Handmaid’s Tale”, da Margaret Atwood, que nos faz um retrato muitíssimo distópico de uma sociedade em que a mulher é um objeto e serve apenas para a reprodução.
É horrível ler aquilo. E depois tem de se ver que no final, há uma parte que se chama historical notes, onde se lê que “antigamente era assim, mas hoje já não é”. Portanto, eu aconselharia “1984”, para se perceber, por um lado, que a distopia é importante enquanto alerta para não se seguir por ali, e, por outro lado, se perceber que realmente há um sentido construtivo. E, já agora, diria outra coisa: se não quiserem ler, vejam filmes: podem ver o Ray Bradbury- “Fahrenheit 451”, do François Truffaut; ou, por exemplo, “Laranja Mecânica” – mas aí, vejam o filme e depois leiam a edição inglesa do livro, que é diferente da americana. A edição inglesa termina com um capítulo em que o Alex – que no filme e na edição americana volta a ser um rufia – é casado, tem filhos e é um cidadão completamente normal.
E, já agora, aconselharia a espreitarem o site Bergonia, para perceberem que a literatura pode tomar outras formas que não necessariamente as da literatura inglesa.

E portugueses? Não há utopismo português?

Há, há. E até começava com uma utopia satírica: “O que há-de ser o mundo no ano 3000?”, assinada por Sebastião José Ribeiro de Sá. Eu descobri que é uma adaptação de uma distopia de Émile Souvestre (“Le monde tel qu’il sera”) e é muito interessante ler o texto francês e depois o português, porque não têm absolutamente nada a ver – isto, porque no século XIX, quando se traduziam livros, adaptava-se; traduzir, diziam os teóricos, era adaptar à realidade portuguesa.
Depois, há um caso muito interessante: a “Irmânia”, escrita pelo Ângelo Jorge no princípio do século XX, retrata uma sociedade completamente vegetariana e espelha um pouco o pensamento que grassou no Porto. E mais recentemente foi publicado “Novelos de Sintra”, de Jorge Menezes, um livro que explora a ideia de Sintra ser uma sociedade utópica, muito dinâmica.
Mas há uma utopia que me parece essencial, até para a história do pensamento utópico. O José Vieira de Pina Martins escreveu uma utopia que se chama “Utopia III”.
É a continuação da “Utopia” de Thomas More e é fantástico! E há outros livros que são claramente passados pela utopia ou pela distopia: a “Jangada de Pedra” do José Saramago, o “Rafael” do Manuel Alegre, muito da obra do Gonçalo M. Tavares…

Entrevista conduzida por António Baldaia


  
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