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Difícil é viver bem

Para que o ensaio seja um ensaio, a sua génese radica numa ideia, ou num lugar, cujas aberturas nem sempre se fazem em direção à claridade ou à explicação de qualquer coisa que se considera à partida incerta e mal formada.

Num ensaio a propósito das convenções da ficção, o escritor britânico G. K. Chesterton (1874-1936) refere-se, logo nas primeiras linhas, à discussão tida entre muitos eruditos acerca da hipótese, na sua opinião estéril, de a arte poder abolir a moralidade das suas convenções.
O que lhe parece, porém, esquisito é o facto de “a arte moderna ter conseguido tantas vezes abolir a moralidade sem abolir a convenção (...) é como se as pessoas conseguissem livrar-se dos mandamentos, mas não das convenções”, continua Chesterton, dando o exemplo das sobras de estilo, “tímidas e inofensivas”, com que a arte adorna a literatura e, em particular, a escrita de ficção.
Na tradução portuguesa, este pequeno texto integra um volume intitulado «Ficar na cama e outros ensaios» (2016), um título que é em si uma ironia perante o exercício disciplinado no qual, à época de Chesterton, se havia tornado a prática do ensaio. O salto no escuro, assim defendia Chesterton aquela que, para si, seria a única razão de ser do ensaio, compreende, na verdade, um ato precipitado. O que acontece é uma tentativa e ao mesmo tempo uma total ausência de modelo, e por isso é que a sua escrita pode corresponder a uma experiência, ainda que o tom persuasivo e dogmático que frequentemente se atravessa na prática literária surja como uma ameaça à aventura que pode ser pensá-lo.
Do mesmo modo que a perfeição não serve de desígnio para a escrita, ensaiar vai implicar um trabalho de negação, o que não quer dizer simplesmente renúncia, pessimismo ou indiferença em relação à possibilidade de, algum dia, o realizarmos. O problema – agora quanto a mim – é a tendência para, no contexto pedagógico, colocarmos o ensaio num plano de oposições ou de distrações a tudo aquilo que alicerça a boa e séria literatura.

De Chesterton a Montaigne. Para que o ensaio seja, na sua génese, um ensaio, tal radica numa ideia, ou num lugar, cujas aberturas nem sempre se fazem em direção à claridade, ou à explicação de qualquer coisa que se considera à partida incerta e mal formada. No volume referido, mas num outro texto, Chesterton admite, aliás, que “qualquer pessoa que escreva sabe o que é escrever mal; da minha parte, posso dizer que o faço constantemente. (...) escrever mal é, em quase todos os casos do género, a definição de uma vida honesta”.
Percebe-se neste curto fragmento – ainda que seja eu a assumir o anacronismo de ligar uma coisa com a outra – o modo como Montaigne, séculos antes, se confessava igualmente esquisito perante a ideia de uma perfeita inteligência, a mesma que, repetidamente e vinda de longe, persiste em designar a boa verdade, seja da escrita, da vida ou do pensamento, pela medida do juízo. “Deixo-me andar tal como me acho”, escreve Montaigne num ensaio cujo propósito é a leitura. Nos livros, acrescenta depois, “busco só o dar-me prazer através de uma decente distração ou então, se estudo, neles procuro apenas a ciência que trata do conhecimento de mim mesmo e me ensina a bem morrer e a bem viver.”
Parece-me haver aqui uma dura honestidade, e não é por estar a referir-me a um ensaio de Montaigne. De facto, nem Chesterton nem Montaigne nos dão a ver, nestas breves passagens, a certeza de um juízo através do qual pudessem propor, e corajosamente, um ideal de bem viver. Não é isso que interessa. E não é dessa matéria que, por princípio, a arte se ocupa, mesmo permeada por todas as convenções que historicamente cada um de nós é capaz de nela reconhecer.
Não que a arte, aquela da qual nos servimos para falarmos do difícil que é viver (pois é só isso que podemos fazer), não possua uma dimensão pedagógica, o que é diferente de dizermos valor. Contudo, quando é um ensaio, ela pode ajudar-nos a ver essa ilusão que desde o início nos chega como uma imagem, a bondade regular na qual a pedagogia aprendeu a ver a vida da literatura e da arte. Porém, pelo meio, há gente que – por devoção e prazer, diria Chesterton – continua a correr atrás do seu próprio chapéu.

Paulo Nogueira


  
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