Fruto da incapacidade ou pouca disponibilidade para educarmos os nossos jovens de outra forma, alguns deles experimentam substâncias psicoativas que lhes facilitam sensações novas. E continuarão a fazê-lo, independentemente da ação mais ou menos disciplinadora, ou repressora, dos artífices da moral. Criemos, pois, condições para dialogar com eles.
As drogas, os seus usos, protagonistas e circuitos constituem, para o cidadão comum, verdadeiros mistérios e enigmas, onde sob a ignorância e o desconhecimento recaem estereótipos e falsas crenças a seu propósito. Mas não é apenas pelo olhar comum que as drogas se constroem com base em preconceitos morais. É também o olhar frio e distante de alguns políticos, juristas, psicólogos, educadores, assistentes sociais, jornalistas, opinion makers, entre outros, que se edifica a base moral com que se olham as drogas, no quadro de um certo ‘aparelho moral’. É precisamente sob esse ‘aparelho’ que assenta aquilo a que chamamos de alarme social. Porque tudo o que é moral sinaliza perigos e interditos e, consequentemente, convoca práticas disciplinares para aqueles que infringem ou possam vir a infringir a lei ou a regra. E, mais grave ainda, é em nome dessa pretensa moral que se criam ‘infernos’ e constroem ‘demónios’ em torno daquilo que se teima em disciplinar e docilizar. A juventude, essa flor cândida da natureza humana, é, por vezes, incluída no seio deste caldo de ‘infernos’ e ‘demónios’, onde aos jovens deverá ser prestado todo o cuidado deste e do outro mundo para que não caiam na terrífica tentação do prazer, uma proposta de ascese ao jovem, o argumento segundo o qual após o prazer virá, mais cedo ou mais tarde, com essa conduta, primeiro o desleixo escolar e depois o laboral e familiar. São, por isso, os pilares sociais normativos – a Escola, o Trabalho e a Família – que ficam em causa quando a juventude embarca nesses desvarios do consumo de drogas, seja quais forem, a que alturas forem consumidas, ou em que quantidade sejam administradas. Porque a moral não vê cinzento: ou vê preto ou vê branco.
Mudar a agulha. Enquanto psicólogo e investigador na área das drogas, proponho que nos afastemos momentaneamente desse ‘aparelho moral da droga’, do qual todos nós, queiramos ou não, fazemos parte, aparelho esse que insiste em ver o consumo de drogas, particularmente dos jovens, como veículos para a degradação sanitária, moral e ética da juventude. Coloquemos, antes, a questão de uma outra forma, analisemo-la de um outro ângulo, de um ponto de vista alternativo a partir de duas questões: - qual a raiz dos nossos medos face ao ‘perigo’ de os jovens consumirem drogas? o que se esconde, afinal, por trás desse nosso medo e da nossa vontade instintiva de controlar, disciplinar e docilizar os seus comportamentos? - o que se esconderá, do ponto de vista dos jovens, por detrás dos consumos de drogas que alguns deles fazem nos recreios das escolas ou nas esquinas das ruas, com os seus pares? À primeira questão, não hesito em defender que o nosso medo e, consequentemente, a ‘disciplina cega’ a que ele nos impele face a ‘educar os jovens para não usarem drogas’, radica na nossa incapacidade de gerarmos as condições para um outro debate pedagógico, mais profundo e denso, precisamente aquele que coloca a tónica no valor inalienável das relações humanas, no sentido do mundo para os jovens, na sua educação para a fraternidade, para a igualdade e para a justiça. A azáfama do mundo em que vivemos torna as nossas práticas educativas, pedagógicas e até mesmo terapêuticas centradas numa lógica de remediação dos problemas, com o foco naquilo que saiu dos eixos e que importa concertar, revelando-se incapaz de operar a um nível mais profundo, se quisermos mais radical, de vermos os problemas e gerarmos as soluções para os mesmos. O mundo anda com tal velocidade que nos resta pouco tempo para escutar os problemas que as nossas cabeças criam; criámos, então, ‘demónios’, para que seja mais fácil e concreta a nossa luta, sobretudo, que ela tenha um alvo exterior muito claro. A segunda questão encontra-se intimamente ligada à primeira. Fruto da incapacidade ou da pouca disponibilidade para educarmos os nossos jovens de uma outra forma, vendo sempre ‘demónios’ em ‘infernos’ nas nossas práticas educativas, que importa ‘combater’ a todo o custo, alguns jovens experimentam, de facto, substâncias psicoativas que lhes facilitam uma sensação nova jamais sentida. E, por mais ‘demónios’ que vejamos em ‘infernos’ imaginários ou reais das nossas cabeças, a realidade é que eles continuarão a fazê-lo, independentemente da ação mais ou menos disciplinadora ou mais ou menos repressora dos artífices da moral.
Apostar no diálogo. A psicologia do desenvolvimento já demostrou há muito tempo, que a adolescência é a fase da moratória por excelência, onde o indivíduo se abre a uma série de experiências e descobertas que são importantes para descobrir o mundo. Isso não dispensa, evidentemente, um olhar educativo atento a essas condutas juvenis, mas deve diminuir o alarmismo em torno das mesmas e coloca-nos perante a inevitável e necessária atenção às condições sociais segundo as quais certos jovens o fazem e, sobretudo, por que o fazem. Quando, no decurso da sua moratória, os jovens de hoje olham para o mundo, o que veem, afinal? Uma guerra contra o terrorismo sem um alvo definido, por muito que queiramos defini-lo em torno de certos grupos; uma crise económica e financeira sem precedentes, que lhes esvazia as possibilidades de realização futura; uma violenta corrosão ética, cívica e moral da sociedade, em paralelo com uma aguda crise da nossa identidade coletiva. A questão das drogas não deve nem pode ser dissociada destas questões sociais; a droga – os seus usos – é o reflexo das mesmas, espécie de sintoma de todo um magma que lhe subjaz. É assim que, para todos os professores, psicólogos, educadores sociais, assistentes sociais, psicopedagogos e outros ‘engenheiros da moral’, como lhes chamou um dia Howard Becker, cito apenas o refrão de uma das músicas dos Pink Floyd: Hey, teacher, leave the kids alone! Deixemos os jovens em paz e criemos as condições – nós, adultos, psicólogos, educadores em geral – para dialogar com eles. E, sobretudo, discutamos com eles que mundo queremos, afinal, construir coletivamente.
Simão Mata
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