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Hierarquias, rituais e tradições

Zafón coloca na boca de uma das suas personagens a observação de que a maioria das tradições não passam de doenças da sociedade. Algumas parecem mesmo doenças infantis, que voltam a provocar danos sempre que se abrande o plano de vacinas. Entre elas, há uma com vários nomes, que atravessa o sistema educativo.

Pensava que não ia retomar o assunto, mas estava enganado.
Chama-se, entre os mais pequenos, “fazer mal”, foi disfarçada com o nome inglês bullying quando chegamos à segunda escola e passa a ser uma suposta tradição tribal com o nome de “praxe” quando se inicia a terceira escola. Esta doença societal, de ataque à dignidade do outro, tem sintomas que são fáceis de reconhecer. São fáceis de assimilar, também; tão fáceis, que muitos ficam surpreendidos quando voltamos a chamar a atenção pelo facto que elas evidenciam dor.
Tal como ninguém reage a uma garganta seca ou um espirro, mas se preocupa quando o que assim começou se transforma em gripe com febre alta, também os primeiros sintomas desta agressão são minimizados. Coisas de miúdos inconscientes...

Coisa de miúdos. Coisa de quem interpreta a hierarquia que observou e à qual se sujeitou – voluntariamente ou por força – como uma forma de poder coerciva.
Quem viveu a instrução, a ensinagem mais do que a aprendizagem na escola, não se habituou aos rituais dialógicos, à necessidade de confrontar as suas reflexões com as reflexões dos outros e de as expor publicamente numa comunidade de autores-aprendentes.
No espaço-tempo da construção do conhecimento, a autoria e a autoridade acerca de um assunto, em diferentes camadas de profundidade, origina hierarquias: hierarquias de entendimento do saber concetualizado, hierarquias na capacidade de provocar o diálogo e a comunicação.

Brincadeira inocente. No templo do conhecimento transmitido, não raras vezes, a hierarquia confunda-se com a coerção. Foi-me dado a aperceber violentamente, há pouco tempo, quando me confrontei com a receção ao caloiro, numa terceira escola – uma que anuncia formar docentes. Vi como nessa escola, que inscreve no seu plano de trabalho o objetivo de fazer aprender a profissão de docente, os novos estudantes são caloiros desprezíveis – sobre as suas cabeça, os outros tomaram hierarquicamente o poder de entornar líquidos.
Aprendi que não é fácil, nem bem recebido, questionar o acontecimento. Fez-se-me observar que nada de grave aconteceu. Tratou-se de uma brincadeira inocente de estudantes mais velhas na receção a estudantes mais novas. Não tinha que me preocupar, porque dentro do recinto da escola, “praxes violentes” não são autorizadas.

Praxes violentas... Existe também uma hierarquização das praxes, portanto. E enquanto umas obrigam a vacina, outras não precisam de cuidados específicos.
Com a lógica de mandarmos os doentes o mais rápido possível para fora do hospital ou do consultório médico, deixamos de ter de nos preocupar hoje com a praxe, amanhã com o bullying, com o ‘fazer mal’ depois de amanhã, desde que não ocorra dentro do recinto onde se exerce a hierarquia.

O acolhimento não é, também, um processo de diálogo? Desenvolver um ritual de acolhimento difere de uma tradição de inserção: as tradições de inserção no grupo revelam procedimentos de alinhamento coercivo; um ritual de acolhimento é um processo de construção e reconstrução de histórias, de construção e reconstrução da pessoa, de apropriação e construção de conhecimento. Não têm as instituições de initial teacher education – educando mais do que formando – um papel nessa construção?
Suspendo a minha atividade com a instituição e com quem confunde o ritual nobre com a tradição fácil. Manifestei – em particular, como agora manifesto publicamente – a minha disponibilidade para coconstruir um ritual de acolhimento na terceira escola, baseado no diálogo e na construção conjunta de plataformas de relacionamento. Trata-se do trabalho de aprofundamento de uma ética que aspira ser cosmopolita. Também, e sobretudo, na Escola.

Pascal Paulus


  
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