A ausência do estudo e do diálogo empurra-nos a verdades inquestionáveis, ou seja, a erros imperdoáveis; ao dogmatismo, afinal, que mais não significa do que esclerose e esterilidade do poder criador – como já assinalou Bachelard, uma cabeça que se julga bem feita é uma cabeça mal feita que tem a necessidade de ser refeita.
1. Se bem compreendo a ideia de ‘sistema’, podemos concebê-lo como uma totalidade organizada, com inter-relações constantes entre os elementos que o constituem. Como se aprende no Método-1, de Edgar Morin: “Fora dos sistemas, há apenas dispersão particular (...). Aquilo a que chamamos natureza não é outra coisa senão essa estranha solidariedade de sistemas emaranhados, construindo-se uns sobre os outros, pelos outros, para os outros, com os outros, contra os outros.” Portanto, um chefe prepotente, que se instalou na convicção de que não tem dúvidas, porque vive de princípios absolutamente indiscutíveis, ou um treinador desportivo que vive no conforto de critérios que julga superiores ao tempo e à história, hoje, ambos mostram uma redonda ignorância do que é a verdade, do que é a certeza. Certeza só há uma: a verdade não existe no reino do humano e encontramo-nos tanto mais próximos da inalcançável verdade quanto mais, simultaneamente, praticarmos e dialogarmos e estudarmos a área de conhecimento em que nos consideram (e nos consideramos) especialistas. Ninguém, nem nenhuma instituição, possui a verdade. Uma verdade possuída não passa de uma trapaça, ou de um logro, ou de uma ilusão de um doente mental. A verdade é um processo em constante construção e, porque humana, não é a-histórica, imperturbável, inamovível, mas um processo em incessante dialética, em imparável devir. Daí a necessidade absoluta do estudo e do diálogo. A ausência do estudo e do diálogo empurra-nos a verdades inquestionáveis, ou seja, a erros imperdoáveis; ao dogmatismo, afinal, que mais não significa do que esclerose e esterilidade do poder criador – como já assinalou Bachelard, uma cabeça que se julga bem feita é uma cabeça mal feita que tem a necessidade de ser refeita.
2. Com estudo, com diálogo, e quando consciencializo que sou parte de um todo, surgem em mim, como por milagre, qualidades inesperadas, inéditas e novas, as chamadas ‘emergências’, que assim se definem em Edgar Morin: “qualidades ou propriedades de um sistema que apresentam um caráter de novidade em relação às qualidades e propriedades dos componentes considerados isoladamente, ou posicionados de maneira diferente num outro tipo de sistema”. Reside na ideia de ‘emergência’ a pedra angular do pensamento sistémico, pois que só há emergência, novidade, progresso, quando há diálogo, inter-relações, sistema. Quando um dirigente desportivo (fenómeno evidentíssimo no futebol) se desentranha em apóstrofes às execráveis atuações da arbitragem, está, normalmente, a desviar as atenções dos sócios e simpatizantes da verdadeira patologia de que sofre o seu clube. Porque, por mais que se vista com as lantejoulas da retórica, a sua presença nos pedestais, nos lugares-de-honra da vida desportiva portuguesa, significa, antes do mais, que há, aqui e além, demasiada ignorância e um pavoroso oportunismo em certos dirigentes do futebol. De facto, se tudo é sistema, se tudo é uma unidade complexa de vários elementos, as culpas das crises que vergam os clubes não se refugiam tanto nos árbitros, mas nos sistemas que os clubes são. E começam precisamente na incapacidade de autocrítica dos seus dirigentes, na falta de hábitos de estudo dos seus técnicos e na ausência do velho – e dizem que extinto – ‘amor à camisola’ de alguns jogadores. Esperava-se de algumas pessoas que tivessem uma mensagem a dar, um sólido projeto a desenvolver, uma obra a construir. E, por vezes, terminam os seus mandatos com pouca mensagem, com limitadíssimos projetos e com um currículo gotejando inêxitos. Mas com muito ressentimento e muito azedume...
3. Somos campeões europeus de futebol; é português o melhor jogador do mundo; José Mourinho e Fernando Santos podem ombrear com os melhores treinadores da atualidade; os treinadores portugueses têm um árduo, mas vitorioso, caminho percorrido ao serviço de clubes estrangeiros; Fernando Gomes impõe-se pela estatura mental e moral, pelo inigualável currículo ao leme da Federação Portuguesa de Futebol e pela exemplar discrição. Sabemos, portanto, qual o caminho difícil, pedregoso, do êxito para um dirigente, para um treinador: educação e conhecimento; liderança e capacidade de comunicação; condição ética, pela competência, pelo trabalho, pela solidariedade. Os economistas, se bem leio, procuram ensinar que é “informacional” e “global” a economia capitalista: informacional, porque a produtividade e a competitividade dos seus agentes muito dependem da sua capacidade de criar e aplicar informação baseada em conhecimento; global, porque tudo se organiza, principalmente a competitividade, à escala global. Mas é preciso não desistir da luta persistente, na esteira de Edgar Morin, por uma ciência com consciência. É que o progresso, no âmbito da tecnociência, como esconder-se? E, no entanto, é também inquestionável o recrudescimento do desemprego e de uma alta competição marginalizante. Devem-se à tecnociência progressos fundamentais no bem-estar de cada um de nós, mas ainda se investe demasiado na ignorância das maiorias como forma de manutenção de um status quo manipulador e alienante. Alguns treinadores e jogadores prestam-se a situações ridículas, não por falta de talento futebolístico, mas porque a alta competição, sem o apoio de certos valores e de um rigoroso espírito crítico, deixa nos ‘agentes do futebol’, mais tarde ou mais cedo, uma imagem degradada, amesquinhada, deles próprios.
4. Tudo é sistema. Quero eu dizer: numa situação de crise, todos os elementos do sistema, por ação ou cobardia, por cegueira ou interesse, têm a sua quota-parte, na crise que se lamenta. Há um escopo primacial a transmitir – é preciso mudar de paradigma! Por outras palavras, é preciso uma revolução paradigmática. Só que uma revolução paradigmática “depende de condições históricas, sociais e culturais, que nenhuma consciência poderia controlar. Mas depende também de uma revolução na consciência das pessoas. O novo paradigma só pode conceber-se e compreender-se, através de um pensamento complexo. Só que este ainda não está enraizado na nossa cultura” (Edgar Morin). E, por isso, em situações de crise, ninguém quer esclarecer o que parece disperso, vago, informe. Ninguém tem culpa; a culpa é sempre do outro. E porque ninguém tem culpa, a culpa não existe! Só uma adjetivação luxuriante cede o passo a palavras ásperas e hostis. Mas fica tudo na mesma – porque não há culpados, ou seja, ninguém põe em causa as suas certezas, os seus axiomas, os seus métodos. E assim, os discursos, de tão agrestes, permanecem exteriores uns aos outros, recusam o necessário diálogo ou a indispensável interdisciplinaridade. No entanto, tudo é sistema: voluntária ou involuntariamente, a crise (e as causas) está em todos os elementos da mesma totalidade. Não há ideias puras, não há factos puros, não há homens puros. Dentro de cada um de nós, o trigo e o joio crescem inextricavelmente unidos. Não escondamos o joio que há também em nós... Para que a crise se resolva! Entretanto, tudo é sistema; tudo está em tudo!
Manuel Sérgio
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