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Observações (im)pertinentes

O modo como ocorre a apreensão da aprendizagem experiencial tem em si próprio, nas suas práticas discursivas como nas suas práticas sociais, um potencial tanto para a emancipação como para a opressão, para a libertação como para a domesticação.

No âmbito da nova política pública para o setor da Educação e Formação de Adultos em Portugal, agora designada de Programa Qualifica, “o Governo estabeleceu como prioridade política de âmbito nacional a revitalização da educação e formação de adultos, enquanto pilar central do sistema de qualificações, assegurando a continuidade das políticas de aprendizagem ao longo da vida e a permanente melhoria da qualidade dos processos e resultados de aprendizagem” (www.qualifica.gov.pt).
Nesse sentido, volta a apostar-se, por exemplo, na criação de novos dispositivos de apoio aos profissionais no terreno que se enquadram em orientações muito práticas e se estruturam transversalmente em torno da ideia de reconhecer competências advindas da aprendizagem experiencial.

Vigilância crítica. A aprendizagem experiencial tem vindo a constituir-se como uma das áreas mais significativas para a prática e a investigação neste subsetor do sistema de educação, pelo que, ao nível da sua utilização, também tem sofrido uma acentuada e progressiva dinâmica de construção, desconstrução e reconstrução de sentidos particularmente assinalável, sendo atualmente uma expressão corrente, normalmente pouco problematizada, amplamente difundida e aceite, tanto ao nível das práticas – e das representações sobre as práticas que os atores criam no terreno – como dos discursos normativos e políticos produzidos e difundidos a nível nacional ou supranacional.
No âmbito da revalorização, em curso, dos saberes adquiridos por via experiencial, parece consensual que interessa não esquecer a ideia de que a vida dos indivíduos adultos é constituída por milhares de experiências, umas de caráter trivial, outras de cariz mais significativo, implicando uma seleção orientada para um tipo de reflexão capaz de efetuar um exercício de tradução, de resto sempre balizado pelos dois referenciais de competências-chave, que são talvez a única invariável neste panorama desde que o sistema português de reconhecimento, validação e certificação de competências se constituiu enquanto oferta pública em 2001.
Não obstante, parece-nos que a atual disseminação do conceito de ‘aprendizagem experiencial’ nos documentos normativos e nas esferas públicas da comunicação de massas pressupõe, precisamente pela popularidade alcançada, a necessidade da sua vigilância crítica, sobretudo porque se trata de uma noção ambivalente e capaz de comportar vários sentidos, entre os quais parece prevalecer aquele que a circunscreve a uma esfera individualizada da experiência.

A experiência enquanto texto. Ou seja, para promover uma cidadania efetiva e criticamente competente, seria previsivelmente mais consequente trabalhar em simultâneo a esfera sociológica da experiência – o que significa parar de ver a aprendizagem experiencial em termos puramente logocêntricos, isto é, como caraterística natural de um adulto individual, para a considerar mais em termos de contextos socioculturais e institucionais, nos quais os coletivos funcionam e dos quais derivam as suas aceções.
Poderia ser, portanto, mais vantajoso para os fins referidos considerar a ‘experiência enquanto texto’; desta forma, a experiência pode ser vista como algo profundamente contextual e conjuntural. Transforma-se num texto que pode ser lido e relido e que, deste modo, nunca tem um significado permanente nem definitivo. A aprendizagem experiencial, assim fundamentada, significa que o adulto aprende a ser sujeito, no sentido freiriano, com a experiência de refletir acerca da metalinguagem com que lê a sua experiência. E entenda-se: ler o esquema de leitura socialmente pré-existente é um exercício político-filosófico fundamental, para nós, quando se trata de contribuir para emancipar adultos em situação de vulnerabilidade social que procuram reconhecer, validar e certificar os seus adquiridos experienciais.

Dicotomização improdutiva. A nossa continuada investigação empírica neste âmbito permitiu constatar que os dispositivos existentes têm sido usados para trabalhar, frequentemente, aspetos gerais de uma aprendizagem experiencial muito pouco problematizada naquilo que a experiência tem de contingente e de contextual.
A dimensão sociológica da experiência tem sido praticamente invisível nas práticas observadas tanto nos centros de reconhecimento, validação e certificação de competências (2001-2005), como nos centros novas oportunidades (2006-2012) e nos centros para a qualificação e ensino profissional (2013-2016), onde tem sido recorrente opor-se um conhecimento experiencial, ou prático, a um conhecimento teórico, ou abstrato, insistindo numa dicotomização que, além de falsa, é realmente improdutiva.
O potencial transformativo da aprendizagem experiencial tem estado prisioneiro de uma aplicação restrita e instrumental do conceito, preocupada em aferir instrumentos de medição e dispositivos de avaliação de adquiridos que, sendo experienciais, não são, porém, críticos. São, então, necessários momentos de discussão crítica da realidade, para permitir aos adultos envolvidos compreenderem melhor os mecanismos segundo os quais o modo como ocorre a apreensão da aprendizagem experiencial tem em si próprio, nas suas práticas discursivas como nas suas práticas sociais, um potencial tanto para a emancipação como para a opressão, para a libertação como para a domesticação.
Compreendendo esses mecanismos, os educadores e os adultos em processo de reflexão autobiográfico poderão visibilizar criticamente um processo sociopolítico que tem como epicentro relações e conceções de poder que não podem ser desarticuladas das questões que envolvem a educação, a formação, a aprendizagem, o ensino e o desenvolvimento dos adultos. Se os recém-criados centros Qualifica (2017) proporcionarão as condições para que os envolvidos no reconhecimento de adquiridos experienciais possam cortar este nó górdio, só o tempo dirá.

Rosanna Barros


  
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