Pelo seu caráter singular, mas simultaneamente universal, a experiência é um argumento de profunda democraticidade da Escola e apela sobretudo à paixão; é o nosso modo muito próprio de viver as coisas, de as vivenciar, de as compreender.
Há uma tendência circular na evolução da educação; quero dizer, a educação parece evoluir, por vezes, numa espécie de regresso ao mesmo. Sou hoje meio autobiográfico, não para anunciar uma qualquer espécie de mea culpa, esse vocábulo tão judaico-cristão que nos encerra a compreensão dos fenómenos no desligamento dos outros, mas para desvendar sentidos não desvelados no quotidiano, que se acumulam para construírem uma espécie de cansaço com esta coisa inesgotável de sentido que pode ser, e é, a educação. Torramos a cabeça a engendrar modos de fazer acontecer a educação; lemos para baixo, para cima, para os lados, aprendemos com o que não sabemos, cremos crer que damos o nosso melhor, mas acabamos indecisos, e isso corrói-nos, até... Não compreenderemos que educação e solução não são sinónimos? Que educação e resultados da educação não são um e o mesmo tempo? Que ser educador transcende o tempo (e o espaço, já agora) de fazer educação? Porquê interrogar o bater do coração da educação? Porque ela está para além de uma métrica, de uma parametrização, de uma equação. O que é que torna a educação um campo de saber sem aparente saber? A procura da sua materialização numa prédica de ensino que se materializa sem lugar para a imaterialidade. Por voltas e voltas que se procure dar, parece incontornável associar educação e ensino – associação que seria feliz se não se estabelecesse ao ensino um campo de saber ideologicamente determinado, materialmente subordinado por um suposto saber suscetível de ser convertível em produção, em trabalho socialmente rentável.
Montante e jusante. Vamos a isto: nove, agora 12, anos no mínimo de uma vida deslocada do presente porque sempre fará sentido, um dia, mesmo que não o compreendamos por ora. Falamos do sistema de ensino e podemos perguntar-nos: o que faz a Escola face a um público que lhe chega com um grau de acessibilidade à informação que, era suposto, ela própria garantiria? A montante, a Escola deixou de ser o lugar do novo. E mesmo para aqueles que não têm acesso a este manancial de informação, o que traz a Escola de novo? Dizia Jean-Yves Rochex [«Le sens de l’expérience scolaire», 1997] haver crianças que chegam à escola e, pura e simplesmente, não entendem o que diz o(a) professor(a). A Escola continua deslocada daqueles a que nunca conseguiu aceder e está agora deslocada daqueles a quem supostamente facilmente acederia. A jusante, a Escola viveu (e vive?) do sentido futuro porque havia, em tempos, uma codificação relativamente estável entre qualificações académicas e lugares de trabalho. Ela desapareceu; o tempo das certezas, o tempo das promessas, como dizia Rui Canário, deu lugar ao tempo das incertezas. Já nem este papel a Escola cumpre: as qualificações não terão perdido o seu valor, mas perderam certamente o seu valor de garantia. Sem me estender, ainda hoje a operadora de caixa que me atendeu num supermercado revelava ter o mestrado em ensino do 1o Ciclo. Triste? Não, simplesmente desperdício.
Significado da experiência. Retomo então a pergunta: porquê interrogar o bater do coração da educação? Porque é ele que pode ajudar a olhar esta questão, esta dissociação entre uma subjugação do ensino a um tempo que dele se distancia e a uma reabilitação do sentido da educação – que igualmente perpassa o ensino – de um modo que não se subordine a esta relação de desafetação do presente. Defendo, em reflexão que pareço nunca mais conseguir concluir (!), o quanto a mobilização do significado da experiência no contexto escolar poderia ser positiva: pelo seu caráter singular (temos uma relação experiencial única com a vida), mas simultaneamente universal (todos temos experiências de vida), a experiência é um argumento de profunda democraticidade do sistema de formalização da educação que é a Escola. E, como diz Jorge Larrosa, contrariamente à prática (que apela à ação), a experiência apela sobretudo à paixão; é o nosso modo muito próprio de viver as coisas, de as vivenciar, de as compreender. Singular, sim, porque, por um lado, é tempo de deixar de viver essa Escola, apenas justificada num tempo postergado, e, por outro lado, é tempo de deixar cair essa Escola do ‘igual para todos’, como se isto fosse uma garantia de a todos(as) garantir igual. Ah, e escolarizar o Pré-Escolar está longe de ser a solução! Não tem que ser! O coração da educação tem razões que a razão desdenha!
Henrique Vaz
|